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sexta-feira, 27 de março de 2020

Amirável mundo novo


Terminei de ler nessa semana “Admirável mundo novo”, do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), publicado pela primeira vez em 1932. Ou seja, ele foi escrito 17 anos antes da obra “1984”, de George Orwell, lançada em 1949. No entanto, eu não quero fazer aqui um comparativo das duas obras, que relativamente fazem o mesmo exercício literário, intelectual e filosófico. Sobre o livro de Orwell, eu publiquei uma resenha no dia 14 de janeiro de 2016 aqui neste mesmo espaço. Apesar disso, vou começar destacando três diferenças visíveis entre as duas obras, para depois ficar apenas na de Huxley.
A primeira e grandíssima diferença é o tempo. Enquanto Orwell tenta imaginar em 1949 como seria o mundo em 1984 (apenas 35 anos de intervalo), Huxley projeta um mundo seis séculos à frente. Por um lado, poderíamos imaginar uma primeira etapa do futuro imaginado com a sociedade programada por Orwell e, na sequência, uma “evolução” até Huxley. Mas não vou fazer esse exercício, como comentei antes.
A segunda diferença, e que chama bastante a atenção de quem gosta do tema, como eu, é o sexo. Enquanto na sociedade de Orwell o sexo é reprimido pelo Grande Irmão, que tudo controla e tudo vê, na de Huxley ele é estimulado. Você querer ter apenas um parceiro ou exigir exclusividade é considerado imoral. A nova moral prevê que todos tenham vários parceiros e nada de fidelidade ou sentimentos românticos. Óbvio que, a essa altura, a ciência já havia eliminado as DSTs dessa época primitiva em que vivemos.
A terceira diferença está na forma de controlar a sociedade. Em Orwell, o ponto principal é a vigília, enquanto em Huxley a força da manutenção do governo/status quo, para garantir a felicidade e a estabilidade, é o condicionamento. Ou seja, o sujeito é condicionado, desde que nasce, a acreditar naquilo que vai garantir a estabilidade e a felicidade de todos. Já em Orwell, como percebemos quando lemos, há espaço para uma rebeldia, ou seja, o sujeito está sendo vigiado e ameaçado pelo Grande Irmão, finge acreditar em tudo, mas no fundo não acredita. Em Huxley não há espaço para isso. A não ser com uma exceção e, paramos aqui com as comparações.
Antes de voltarmos ao enredo, vou comentar minhas impressões pessoais ao ler a obra. Confesso que, quando comecei a ler, não gostei muito. Achei as primeiras páginas um tanto entediantes e com umas previsões sem sentido, já superadas, e que mostram que o autor estava preso ao tempo em que vivia. Por exemplo: estudantes anotando a lápis em caderno. Pelo nosso tempo, isso seria em 2632. Se em 2020 já é rara essa cena, imagina daqui a seis séculos. Outra coisa bizarra é a imaginação em torno dos meios de comunicação. O telefone ainda funciona com ligações pedindo uma chamada para o número tal (celular, nem pensar), o rádio com receptores grandes e o jornal impresso ainda são a principal mídia. Enfim, tirando essas bizarrices tecnológicas, principalmente da metade para o final da obra, há muitos pontos interessantes. Voltamos, assim, ao enredo.
O ano seria 2632 na nossa contagem atual ou, na contagem da narrativa, 632 Depois de Ford. Deus, Jesus Cristo e toda o tipo de religião são substituídos por Ford. Começa, então, a crítica de Huxley a uma sociedade utilitarista com uma busca incessante à felicidade e à estabilidade. Como disse, ser pervertido é falar em casamento, em família, essas coisas. As crianças são geradas em laboratórios, ou seja, não existem mais pais nem mães para “estragar” os sujeitos. Desde pequenos ouvem mensagens milhares de vezes que são repetidas automaticamente quando adultos. Os sujeitos são divididos em tipos de seres humanos que vão servir para alguma coisa útil na linha de produção e vão ser condicionados a serem felizes assim, sem questionamentos. Numa das explicações, o Diretor do laboratório explica aos alunos: “Mas nos Ípsilons – disse com muita propriedade o sr. Foster – nós não precisamos de inteligência humana” (p.34). Ou seja, quem vai ser administrador nasce e é criado para isso, quem vai apertar botões nasce e é condicionado para isso e assim por diante.
As crianças são estimuladas ao sexo desde cedo e aprendem a não sofrer com a morte. Também tem a “soma”, que seria uma droga perfeita, mas que não causaria ressaca ou qualquer efeito colateral. Elas são tomadas em doses de meia grama e evitam que qualquer sujeito se sinta triste, com raiva, desesperado, chateado, etc. Além disso, os bebês são estimulados a pegarem livros. No entanto, quando eles colocam suas pequenas mãozinhas em um livro, levam grandes choques. Assim, ficam condicionados a nunca quererem chegar perto de um livro ao longo da vida. “Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam de ódio instintivo aos livros e às flores. Reflexos inalteravelmente condicionados. Ficarão protegidas contra os livros e a botânica por toda a vida” (p.42). É mais ou menos o que está tentando ser feito através das redes sociais por governos como Trump e Bolsonaro. Tentam enfiar na cabeça das pessoas que livros, cultura e arte fazem mal. Assim, os zumbis dessa era primitiva ficam condicionados a aceitar e acreditar nas mentiras impostas por eles. O pior é que está funcionando.
Feita essa contextualização geral da sociedade, vou aos personagens, que substituem as famosas frases “Jesus!” ou “Em nome de Jesus” ou “Deus nos salve!” ou “pelo amor de Deus” por “Ford!”, “Em nome de Ford”, “Ford nos salve!” ou “Pelo amor de Ford!”.
Bom, um dos personagens principais é Bernard. Ele é um cara meio deslocado que os outros dizem que recebeu uma dosagem errada de álcool quando foi fabricado. Ele tem uma necessidade quase instintiva a ser como nós, humanos da era pré-Ford: se apaixona, tem curiosidade em conhecer o mundo, questiona, etc. Ele é amigo de um escritor do departamento de textos sensíveis que também é meio inconformado: ele pensa que escrever apenas o que é permitido é muito chato, mas não sabe dizer sobre o que gostaria de escrever. E, toda vez que sente esse vazio, ele toma uns comprimidos de “soma” para voltar ao normal. Os dois são amigos. Bernard se apaixona por Lenina. Lenina acha Bernard muito esquisito, pois ele não anda com várias mulheres, como os cidadãos de bem do mundo fordiano. Lá pelas tantas, porém, Bernard consegue uma autorização do Administrador Mundial para ir ver um campo de selvagens (que seria mais ou menos o que sobrou da nossa sociedade primitiva do século XXI, ou seja, que se apaixona, se casa, crê em Deus, etc) nos Estados Unidos (a história se passa em Londres e línguas como francês, português ou espanhol já foram extintas). O campo de selvagens é mais ou menos como um safari africano, mas com pessoas que são chamados de indígenas – outra previsão bizarra, pois no início do século XXI os índios já foram praticamente dizimados na sua totalidade pelos homens brancos.
Nesse campo de selvagens, Bernard encontra Linda, uma mulher que se perdeu durante um safari e ficou morando com os selvagens. Ela acabou engravidando (uma tremenda obscenidade) e se tornou mãe! (pelo amor de Ford!) de John. Ela conta que o pai é o diretor do laboratório, assim, Bernard e Lenina levam Linda e John para a sociedade civilizada de Londres. Obviamente há N histórias paralelas, a vida dos dois selvagens são contadas por Huxley, etc. Mas, resumindo, eles voltam para a civilização e aí a confusão está feita (por isso que eu comecei a gostar mais do livro desse ponto em diante). A verdade sobre o diretor é revelada e o Selvagem tenta incutir ideias nos humanos-zumbis civilizados. Para impedir que a sociedade se contamine com ideias e infelicidades (afinal, família, amores, mortes, etc, só trazem infelicidade, segundo os fordianos civilizados) Bernard e o amigo escritor são enviados para ilhas isoladas, Linda morre, e John tem um caso que vira briga ferrenha com Lenina (sua prostituta, cortesã!!). E aí já nos encaminhamos para o final, e eu nem vou contar que John se mata na última cena na frente de milhares de seres humanos condicionados, o que deixa em aberto um futuro nebuloso (que poderia ter seguido com um segundo volume da obra) pois os humanos-zumbis nunca tinham ouvido falar em suicídio. Na minha imaginação, todas as testemunhas são isoladas para não contaminar o resto (#ficaemcasa) e são tratadas com mais milhares de horas de condicionamento, como é feito hoje pelos seguidores do Bolsonaro que, a cada cagada dele, ficam se mandando fake news absurdas pelas redes sociais que justificam as baboseiras proferidas pelo presidente.
Enfim, é isso. Vou partir para o próximo livro o mais breve possível, se Ford assim permitir. Amém!

segunda-feira, 23 de março de 2020

The Godfather


Eu devia ter uns 18 ou 19 anos, não lembro bem. Isso significa que estávamos lá por 1999. Naquele tempo, as locadoras de fita em VHS bombavam. Ter uma locadora era um negócio bem lucrativo. Para conseguir assistir aos lançamentos nos sábados era preciso reservar com algumas semanas de antecedência. Uma alternativa era alugar filmes em dia de semana, mas para quem estudava, era quase impossível. De vez em quando eu encontrava na Max Locadora, em Santo Ângelo, o meu amigo Vinícius Stein, mais conhecido como Vini. Na verdade, foi por essa época que conheci ele, jogando futebol e truco com a gurizada que se encontrava no colégio Onofre Pires. Nesses poucos encontros que houve na locadora ele sempre indicava filmaços. Era mais ou menos como um guia: perguntava que tipo de filme eu estava a fim de assistir e, diante da minha resposta, fazia indicações. Comédia, drama, ação, suspense, etc. Num desses encontros casuais ele disse que eu tinha que assistir ao Poderoso Chefão (Godfather, no original). “Mas tem que assistir os três em sequência... São três filmes de três horas cada”, ele me aconselhou e, ao mesmo tempo, advertiu. Aquilo ficou gravado em minha massa cinzenta e não foi apagado nem com todos os tragos e outras substâncias que ingeri ao longo dessas duas décadas.
No decorrer desses vinte anos eu sempre esperei uma oportunidade pra assistir ao Poderoso Chefão. Porém, toda vez que aprecia uma brecha, eu adiava pelos mais variados motivos. Veio o DVD no início dos anos 2000 e, como nem todas as locadoras tinham os clássicos disponibilizados na nova tecnologia e o vídeo cassete foi aposentado, o Poderoso Chefão foi ficando pra trás. Surgiu a internet e, novamente aquela conversa lá do final dos anos 1990 seguidamente voltava à minha memória. E, man, o Vini manjava de filmes! Devo ter alugado, naqueles tempos, uns seis ou sete filmes com indicação dele e todos me impressionaram. Não lembro o nome de nenhum (desconfio que o Resgate do Soldado Ryan foi um deles), mas o fato é que na minha mente ficou associada a imagem do Vini à de um especialista em bons filmes.
O barco foi andando, nesse tempo me tornei pai e troquei os longas que eu gostava pelos infantis. Agora, de uns tempos pra cá, estou voltando a ver filmes (ainda engatinho nas séries). E, no final das férias e início de confinamento pelo Coronavírus eu tenho feito algumas maratonas cinematográficas. Assim, finalmente, 20 anos depois daquele encontro, exatamente HOJE (dia 23 de março de 2020) eu assisti ao terceiro filme da trilogia Todo Poderoso Chefão. E, man, valeu a pena esperar.
Primeiro, sinto-me feliz por ter assistido apenas agora, com 38 anos. Provavelmente não teria aproveitado tanto se assistisse lá em 1998/99. Claro, seria uma boa ter assistido naquele tempo para, 20 anos depois, reassisir. Mas confesso que raramente vejo uma película duas vezes. As exceções são as que a minha nenê assiste, mas aí não tenho opção. Ela liga na TV e, pá, assisto dez vezes a mesma coisa.
Assisti ao Poderoso Chefão na quinta-feira (dia 19 de março), na sexta-feira (20 de março) e hoje (23 de março). Fiquei pensando como foi a espera do pessoal da época entre o lançamento do segundo (1974) e do terceiro filme (1990). Foi para simular essa espera que aguardei entre sexta e segunda para ver a última parte. 16 anos em dois dias.
E quais foram as minhas impressões sobre a trilogia? Bom, primeiro, foi a melhor trilogia que já assisti (até porque não vi muitas). Também colocaria o Todo Poderoso Chefão, sei lá, no mínimo numa lista dos 10 melhores filmes que já vi. Lembro que naquele tempo, final dos anos 1990, eu fazia listas de melhores filmes num caderno velho. Sempre que eu via um filme novo, eu a atualizava. Agora não faço ideia de quais seriam os meus cinco filmes favoritos – nunca mais parei pra pensar no assunto. Tem filme que eu vi e não lembro nem do título, nem da história. Alguns poucos ficaram gravados na minha mente sendo que, pessoalmente, o principal foi Forrest Gump (talvez porque dos filmes que vi naquela época é o que tenho uma lembrança mais nítida).
Sei que, certamente, a saga da família Corleone, a história de Vito Corleone contada nos dois primeiros filmes, a matança dos líderes das outras famílias da máfia em Nova York quando Michael assume a função de Dom Corleone quando Vito morre no final do primeiro filme, o assassinato do Mão Negra por Vito Corleone contado em retrospectiva no segundo filme e a ascensão de Vicenzo no terceiro – entre outras tantas cenas – também vão ficar na minha lembrança por um bom tempo. Creio que, se eu chegar aos 60 ou 70 anos, ainda vou lembrar algumas cenas clássicas desse filme.
Chego, então, às duas perguntas que – penso eu – todos os que viram a trilogia acabam se fazendo em algum momento da vida. Primeira: qual dos três filmes é o melhor? Eu, particularmente, descarto o terceiro. Talvez seja pelo longo intervalo entre os dois lançamentos, ou talvez pela ausência de Dom Vito, mas achei o terceiro o menos empolgante dos três. O motivo mais óbvio, no entanto, é pelo fato de Michael ficar querendo sair da máfia enquanto a máfia não sai dele. Achei o mais melodramático dos três. Ficaria, então, entre os dois primeiros. Qual o melhor? O primeiro ganhou o Oscar e tem a atuação impecável de Marlon Brando. No entanto, eu gostei muito da narrativa retrô de Dom Vito quando era jovem. Assim, cheio de dúvidas e por uma votação interna apertada (43 bilhões + 1 contra 43 bilhões de neurônios duduzianos) eu afirmo que gostei mais do segundo filme. Possivelmente porque é nele que estão as duas cenas que mais gostei de toda a trilogia (e essa é a segunda questão: qual a melhor cena dos três filmes?). Primeiro, o trecho que mostra como Dom Vito se tornou mafioso, desde que perdeu o emprego para o sobrinho do Mão Negra (o principal mafioso da época, início do século XX) até o momento em que ele mata o velho mandachuvas de Little Italy em Nova York e começa a mandar no bairro.
Segundo, o momento em que Vito vinga o seu pai matando um Dom Não Sei das Quantas, na Itália. Você realmente sente prazer ao ver ele enfiar a faca na pança do velho gordo pouco depois de ter beijado a sua mão e pedido a benção.
Bom, não vou contar todo o filme aqui. E, depois de mais de 20 anos, tenho que agradecer ao Vini pela dica, afinal, se não tivesse vindo dele, provavelmente eu nunca teria assistido. Em tempos de confinamento, fica a dica. Se não confiam no meu gosto cinematográfico, confiem no do Vini – que na época devia ter uns 15 anos, mas que aposto que não mudou de opinião agora, com cerca de 35 (acertei?). Deixo pra ele mesmo responder, se assim desejar.
Hasta!

sexta-feira, 20 de março de 2020

Sobre livros, filmes e o confinamento


Desde as férias até esse início de confinamento por conta do Coronavírus, eu tenho dedicado um bom tempo à leitura e ao cinema visto dentro de casa. Nem cheguei a resenhar tudo o que li e vi aqui. Acabou passando alguns livros mais acadêmicos, como o Veias Abertas da América Latina, e outros que sublinhei e rabisquei pra caralho, mas fiquei com preguiça de sentar e escrever sobre eles, como o “O sequestro dos uruguaios”. Desse livro-reportagem, escrito pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha, eu parti direto para o “Longa pétala de mar”, de Isabel Allende, esse sim, devidamente resenhado anteriormente para o imaginário e existente leitorinho.
Sobre o livro “O sequestro dos uruguaios”, que terminei há cerca de duas semanas, não tenho muito a dizer a não ser indicar para todos. Ficar comentando aqui as atrocidades das ditaduras é desgastante, pois já estou careca de falar, de postar, de berrar aos quatro ventos. Talvez, o fato “novo”, para quem apenas conhece a ditadura brasileira é a abordagem sobre a ditadura argentina e uruguaia, especialmente esta última, que foi uma das mais cruéis de todas. Há inúmeras bizarrices e é espantosa a semelhança dos discursos dos militares negando o óbvio com as mentiras descaradas ditas todos os dias pelo presidente Bolsonaro. Vocês sabem: Bolsonaro diz que inventaram que ele falou uma baboseira. Aí mostram ele negando e em sequência mostram ele dizendo a baboseira. E assim por diante.
Enfim, o livro trata da ação conjunta entre as ditaduras uruguaia e brasileira para sequestrar, em novembro de 1978, um casal de uruguaios e duas crianças, de 3 e 8 anos. Na ocasião, Luiz Cláudio Cunha recebeu uma ligação anônima na sucursal de Veja em Porto Alegre, onde ele trabalhava e, acompanhado pelo fotógrafo, tornou-se testemunha do sequestro. Isso mudou tudo, pois fora esses quatro uruguaios, todos os outros latino-americanos que passaram pela situação de serem pegos fora do país de origem, foram assassinados. Isso, no entanto, não impediu a prisão e a tortura dos dois uruguaios sequestrados em Porto Alegre. A história toda ainda tem a pitoresca presença de um ex-jogador do Inter, Didi Pedalada: depois de deixar os gramados ele se tornou policial e torturador.
Também tem um puta material sobre a já comentada ditadura uruguaia e, ao final, um ótimo texto sobre a Operação Condor, que tratava justamente dessa cooperação internacional entre as ditaduras latino-americanas com o financiamento e participação direta dos Estados Unidos. Em síntese, vale muito a leitura. Na primeira parte, Luiz Cláudio Cunha narra o sequestro e apresenta os personagens. Posteriormente, ele conta o drama que foi para comprovar o que ele viu com os próprios olhos, tendo que lutar contra mentiras deslavadas de políticos e militares. Por fim, ele faz esse apanhado geral do contexto do Uruguai, da América Latina e da Operação Condor. Vale a leitura.
No final das férias eu ainda aproveite para colocar parcialmente em dia a minha lista de filmes, já que nos últimos anos eu não me dediquei muito às telinhas. O resumo da minha dedicação ao audiovisual recentemente (excetuando o jornalismo e o futebol) abrange nada muito além de Friends e Californication.
Comecei assistindo ao Coringa. Achei um puta filme, mas confesso que pelo alarde que fizeram, esperava um pouco mais. Na verdade, é genial a sacada de relacionar um puta problema social com um dos personagens mais conhecidos das histórias de super heróis/vilões. Isso atraiu milhões de pessoas para assistir a um drama que não tem nada de super-poderes e nem é interplanetário: é terreno, é humano e está nas cidades de todos os países do mundo. A maneira como as sociedades lidam com os doentes mentais de todos os tipos é ridícula e o filme tem o mérito de escancarar isso na fuça do telespectador.
Depois, assisti A história de um casamento. Outro puta filme. Mostra o drama de milhões de pessoas ao redor do globo que se separam com filhos pequenos. Claro, tem toda a facilidade da história toda acontecer nos Estados Unidos, onde os personagens não têm muitas preocupações financeiras e tudo é facilitado pela grana. Apesar disso, curti pra caralho, pois a psicologia, as filhas da putice e os procedimentos de uma separação com filhos pequenos também estão ali, escancarados aos olhos dos espectadores.
Não lembro se essa é exatamente a ordem dos filmes, mas na mesma semana assisti ao Parasita, vencedor do Oscar. Achei genial. Também mostra problemas sociais, desigualdades, além de questões históricas e culturais da Coréia (como a “casa” subterrânea escondida nas habitações para casos de catástrofes). Para completar, tem um bem refinado, quase perfeito. No entanto, achei que o banho de sangue do final destoou do restante do filme. Se eu fosse o roteirista, teria criado outro final. Não sei qual, mas seria diferente. E bem melhor. Azar dos coreanos. Poderiam ter levado todos os Oscars comigo.
Também vi Era uma vez em Hollywood. Comentei com um amigo meu que esse foi um filme feito para especialistas em fotografia e cinema ou para quem vive a vida paralela de Hollywood. Ele, que é fotógrafo e especialista, adorou. Já eu, achei o pior dos indicados ao Oscar de 2020. Possivelmente é ignorância minha.
Falta ver os outros indicados a melhor filme. Estou na caça do 1917, mas não sei onde achar. Depois, vi ainda o Green Book, vencedor do Oscar 2019. Puta filme. Todo mundo deveria assistir. Mas cansei, não vou contar agora. Tem no Google.
E ontem e hoje, cumpri uma promessa antiga. Desde os meus 17 anos eu pretendia assistir às três partes de O poderoso Chefão. Comecei ontem com a primeira e hoje vi a segunda.
Do jeito que a coisa anda, vou ter tempo para ver a terceira e comentar aqui. É um classicão e valeu a pena esperar 21 anos para assistir. Achei até melhor: se tivesse visto antes não teria aproveitado tanto. Ah, e nessa madrugada assisti ainda a um documentário na Netflix: A terra é plana. Esse também merece um post a parte.
Bueno, é isso por hoje. Cansei. São muitas imagens e palavras para serem absorvidas. A diferença é que agora temos tempo para isso. Só lançar um pouco de vinho no cérebro e tudo se processa claramente. Hasta!

quarta-feira, 18 de março de 2020

Longa pétala de mar


Em tempos de Corona Vírus e confinamento a melhor alternativa para não morrer de tédio é a leitura. Claro, também pretendo assistir a uns filmes, estudar, antecipar aulas e brincar com a minha pequena pelos próximos, sei lá, 40, 60, 90 dias (vá saber?). Pois sigo com o meu projeto de resenhar os livros que vou lendo para consulta-los futuramente, quando eles já tiverem sumido da minha massa cinzenta. E, quando eu não estiver mais aqui nesse planeta, pode ser útil para alguém que leu esses livros e também já não lembra mais do que se trata, ou ainda, para quem quer saber o enredo da obra em questão (apesar de que aqui eu conto o final, sem pudor).
Numa época em que o tema universal é um vírus, fiquei me questionando como as obras chegam às nossas mãos. Pois é, a descoberta da existência de um livro é mais ou menos como pegar um vírus: você tem que ter algum contato com ele. Porém, as semelhanças param por aí, pois um livro precisa ser escolhido.
A primeira vez que ouvi falar sobre “Longa pétala de mar” ocorreu, por coincidência, enquanto eu lia o “Viver para contar”, do Pablo Neruda (já comentado aqui). Estava eu, em janeiro, assistindo ao Manhattan Connection numa noite de domingo quando vi o Lucas Mendes e o Diogo Mainardi rindo da obra de Isabel Allende, que trata da travessia de dois mil refugiados espanhóis para o Chile durante a Guerra Civil do país europeu. Sabendo do que se tratava, ignorei a ignorância dos dois globais e fui atrás da obra. Descobri que havia sido lançada no Brasil em 2019. Dias depois desse episódio fui até a loja da L&PM, a Pocket Store, no Moinhos de Vento, em Porto Alegre, para entrevistar o Pinheiro Machado (o PM do nome da editora) para o programa Café Literário, e me deparei com uma pilha de livros formada pelo “Longa pétala de mar”. Não tive dúvidas de comprar na mesma hora.
Na última sexta-feira, quando anunciaram a suspensão das aulas na universidade em razão da pandemia do Corona Vírus, comecei a ler o livro de Isabel Allende. Foram cinco dias lendo as 278 páginas da edição publicada pela Bertrand Brasil, do grupo Record. Uma média de quase 60 páginas por dia. Isso demonstra, de cara, que se trata de uma narrativa de fácil leitura, com linguagem clara e algumas referências históricas que, alguém que de repente não sabe nada sobre o contexto histórico, talvez fique boiando um pouco, mas nada que comprometa o entendimento geral do romance. Algumas perguntas-respostas:
Primeiro: quem é Isabel Allende? Bem rapidamente, Allende nasceu no Peru, se criou no Chile, morou na Venezuela e hoje mora nos Estados Unidos e é naturalizada americana. É sobrinha do ex-presidente do Chile, Salvador Allende, assassinado no ataque de 11 de setembro de 1973, financiado pelos Estados Unidos, que colocou o general Pinochet no comando do país por cerca de 17 anos.
Segundo: é uma ficção ou uma não-ficção? Olha, eu classificaria como uma obra mista. O contexto histórico é todo real, os personagens secundários (políticos) também são reais. E os personagens protagonistas, mesmo sendo fictícios, foram construídos a partir de entrevistas, conversas e contatos feitos pela autora com um dos espanhóis que a inspirou para a criação do personagem principal. “Este é um romance, mas os fatos e as pessoas que pertencem à história são reais”, escreveu a autora nos agradecimentos. Além disso, ela conta que Victor Pey, a principal fonte consultada, morreu aos 103 anos de idade, quando a obra foi finalizada.
Para contar a história, eu vou dividir tudo em duas categorias: a dos acontecimentos históricos (fatos reais que aparecem na obra) e o drama dos personagens (baseados em fatos reais, mas com algumas doses de ficção).
Em 1936 estourou a Guerra Civil Espanhola. Allende usa algumas dezenas de páginas da primeira parte da obra contando sobre a guerra através dos personagens. Em síntese, um governo de esquerda havia sido democraticamente eleito, e a direita, comandada pelos militares, planejou um golpe militar, tomando as principais cidades espanholas. O que significava tomar as cidades? Matar todos os apoiadores do governo, fossem civis ou militares. Enfim, uma guerra sem leis, uma perseguição cruel e sanguinária semelhante a que Hitler faria depois no nazismo contra os judeus. O troço todo foi liderado pelo General Franco (que ao término da guerra, ficou espantosamente 40 anos no poder da Espanha. Um fascista dirigindo um dos países mais importantes da Europa, nas barbas do mundo, até nada mais nada menos do que 1975). Em síntese, quando a guerra civil acabou, começou a Segunda Guerra Mundial.
O curioso é que Franco venceu com o apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista, sem nenhuma intervenção internacional em sentido oposto. Estados Unidos e União Soviética não se meteram e isso foi determinante para a vitória franquista/nazista/fascista. O que isso quer dizer? Que se Eua ou URSS tivessem entrado na Guerra Civil espanhola antes, a Segunda Guerra também teria iniciado mais cedo. Por exemplo, o troço todo poderia ter descambado em 1937... Mas, não foi assim que aconteceu e os defensores do governo eleito foram derrotados e os mesmos que venceram o nazismo e o fascismo na Segunda Guerra Mundial fingiram que nada acontecia na Espanha até a morte de Franco, em 1975.
Sendo perseguidos e executados a sangue frio, sem qualquer tipo de julgamento, os refugiados derrotados partiram para a França (eu fiz essa viagem de Barcelona para a França ano passado e, realmente, é uma viagem bem curta). O resultado disso? Milhões de espanhóis na fronteira tentando ingressar no país vizinho. E os franceses? Não queriam aqueles espanhóis miseráveis e vermelhos nem a pau! Fecharam as fronteiras e milhares morreram ali mesmo. Alguns conseguiram entrar clandestinamente e foram postos em campos de concentração em território francês, sendo tratado pior que cachorro de rua. Mulheres grávidas e crianças morriam como moscas. Diariamente eram atirados alguns poucos pães duros como pedra pelos soldados para o povo maltrapilho em pleno inverno europeu. Foi nesse contexto que Pablo Neruda, que então era embaixador chileno na França, conseguiu o navio para levar dois mil desses refugiados espanhóis que estavam presos em solo francês para o Chile, em 1939.
Vamos agora aos personagens. Víctor Dalmau é o principal protagonista. Ele é estudante de medicina quando estoura a Guerra Civil. Enquanto o irmão mais novo, Guillem, vai para o front como soldado, ele é improvisado como médico para atender aos feridos do lado que defendia o governo de esquerda democraticamente eleito. Enfim, tem todas aquelas histórias dramáticas de guerra. Os pais da dupla, no passado, haviam adotado uma garota chamada Roser. Ela sofria de maus tratos e foi retirada da família por um pastor de direita que a colocou em uma escola de música em Barcelona. Lá, o professor dela (pais dos dois irmão) viu o seu talento e a adotou tardiamente. Durante a guerra, nas idas e vindas de Guillem de Madrid para Barcelona, ele começa a se envolver com Roser. Em determinada cena ele volta para casa com tifus e quase morre. Roser cuida dele durante semanas e, quando ele está quase bom, o desejo os envolve e o coito acontece. Ele volta para a guerra enquanto Roser está grávida. Quando os defensores da república estão praticamente derrotados, o pai dos irmãos morre. Víctor pede que um amigo leve Roser grávida e a mãe para a França para que eles todos se encontrem do lado de lá da fronteira. Nesse meio tempo, Guillem morre em uma batalha. Víctor fica sabendo, porém não quer contar para Roser antes da criança nascer. Enquanto iam para a França, a mãe da dupla – que não concordava em deixar a sua casa para trás – resolve fugir e se perde no meio dos campos de refugiados. Assim, o amigo deles consegue conduzir apenas Roser para a França. Ela é presa e posta num campo de concentração.
Certamente morreria com a criança no ventre, ou daria a luz para um bebê que duraria poucos dias, mas um amigo da família de Víctor acaba indo ao seu encontro e a levando para uma fazenda para fazer o parto e, posteriormente, trabalhar no campo. O bebê nasce e, através dessa amiga, Víctor acaba localizando Roser. Ele fica sabendo que a mãe se perdeu e conta para Roser que Guillem, o pai da criança, morreu.
A situação é caótica quando Víctor fica sabendo da embarcação organizada por Neruda. Porém, como não há lugar para todos, é feita uma seleção, pois o governo chileno pede que levem apenas pessoas que possam contribuir para o país. No entanto, como Roser tinha um filho e cunhado não é parente, os dois resolvem se casar para tornar possível a ida de Víctor, Roser e da criança. Assim, o trio embarca rumo ao Chile.
Na minha humilde opinião, essa primeira parte é a mais interessante do livro, pois os dramas aparecem e mudam a todo instante e te envolvem a cada parágrafo. Depois, o romance deixa um pouco de ser tão histórico (mas cheio de vida) para ser mais pessoal – com dramas mais universais, tipo amor, paixão, traição, intrigas, etc.
Sintetizando tudo, chegando ao Chile, Roser e Víctor combinam que vão seguir casados (até porque não existia divórcio no país sul-americano). Curiosamente, o Chile já vivia o contexto da guerra fria e, novamente, há o eterno confronto direita x esquerda. Víctor se envolve com uma grã-fina que já é noiva. Os dois se apaixonam e ela acaba engravidando. Para não haver o escândalo, ela não conta nada a Víctor sobre a gravidez e vai para uma fazenda onde um padre convence a família a dar a criança para a adoção. No entanto, eles deixam a moça dopada e, quando ela acorda, falam que a criança nasceu morta.
O tempo passa e, com o passar dele, Víctor e Roser vão se apaixonando. Vou dar um pulo aqui para o contexto dos atentados de 11 de setembro de 1973. Quando Pinochet toma o poder, novamente Víctor e Roser se veem perseguidos por um governo militar e de extrema direita. Víctor é preso e torturado durante um ano. Quando consegue passar para o regime semi aberto (após salvar a vida de um militar do alto escalão) ele e Roser conseguem asilo na embaixada da Venezuela. Assim, partem para o país vizinho, tornando-se, mais uma vez, refugiados. Quando estão velhos, já nos anos 1980, cai o governo Pinochet e eles voltam ao Chile. Depois de todo esse tempo, quando Roser já havia morrido, aparece uma senhora na casa de Vìctor, que está com mais de 80 anos. A mulher diz ser filha dele e conta então a história da grã-fina. Acontece que a mãe da grã-fina, com peso na consciência, acabou entregando o jogo quando já está prestes a morrer e, assim, o nó foi desfeito. Claro que há páginas e páginas, voltas e reviravoltas e todo o drama que pode envolver uma história dessas, mas o resumão é esse. Ah, e nesse meio tempo, não lembro como, Víctor acha a mãe que, apesar da idade e da confusão nos campos de refugiados, estava viva e, assim, vai viver com ele e Roser no Chile.
Moral da história? A humanidade sempre foi e sempre será uma merda. Os conflitos que vivemos hoje (direita louca x esquerda radical) nunca pararam e nunca vão parar. Talvez a notícia boa é que hoje, raramente, há casos de perseguição em massa, com presos e execuções aos milhares, como foi há bem pouco tempo (não por falta de vontade de Bolsonaros da vida e seguidores: “Vamos metralhar a petralhada do Acre!!!”). Outra “coincidência”: o início e o fim dos regimes militares sempre foi comandado pelos Estados Unidos. Ou seja, os americanos – quando tem um presidente tipo Nixon ou Trump – financiam e apoiam a todo o custo governos autoritários que vão proteger os interesses americanos. Depois, quando entra um governo Democrata, a coisa alivia, mas nunca completamente. E assim a humanidade (pelo menos no lado das Américas) segue seu rumo. Sempre andando em círculos. E sempre se surpreendendo, como se o novo não fosse velho. Para finalizar, indico o livro, não só pela riqueza histórica, mas pela excelente narrativa, que envolve, emociona e ajuda a entender um pouco melhor essa espécie incompreensível chamada humanidade.
Ah, e por que o título do livro se chama “Longa pétala de mar”? Porque era assim que Pablo Neruda se referia ao Chile no continente americano: uma longa e cumprida pétala banhada pelas águas do Pacífico.
Hasta!