Em tempos de Corona Vírus e
confinamento a melhor alternativa para não morrer de tédio é a leitura. Claro,
também pretendo assistir a uns filmes, estudar, antecipar aulas e brincar com a
minha pequena pelos próximos, sei lá, 40, 60, 90 dias (vá saber?). Pois sigo
com o meu projeto de resenhar os livros que vou lendo para consulta-los
futuramente, quando eles já tiverem sumido da minha massa cinzenta. E, quando
eu não estiver mais aqui nesse planeta, pode ser útil para alguém que leu esses
livros e também já não lembra mais do que se trata, ou ainda, para quem quer
saber o enredo da obra em questão (apesar de que aqui eu conto o final, sem
pudor).
Numa época em que o tema universal é
um vírus, fiquei me questionando como as obras chegam às nossas mãos. Pois é, a
descoberta da existência de um livro é mais ou menos como pegar um vírus: você
tem que ter algum contato com ele. Porém, as semelhanças param por aí, pois um
livro precisa ser escolhido.
A primeira vez que ouvi falar sobre
“Longa pétala de mar” ocorreu, por coincidência, enquanto eu lia o “Viver para
contar”, do Pablo Neruda (já comentado aqui). Estava eu, em janeiro, assistindo
ao Manhattan Connection numa noite de domingo quando vi o Lucas Mendes e o Diogo
Mainardi rindo da obra de Isabel Allende, que trata da travessia de dois mil
refugiados espanhóis para o Chile durante a Guerra Civil do país europeu.
Sabendo do que se tratava, ignorei a ignorância dos dois globais e fui atrás da
obra. Descobri que havia sido lançada no Brasil em 2019. Dias depois desse
episódio fui até a loja da L&PM, a Pocket Store, no Moinhos de Vento, em
Porto Alegre, para entrevistar o Pinheiro Machado (o PM do nome da editora)
para o programa Café Literário, e me deparei com uma pilha de livros formada
pelo “Longa pétala de mar”. Não tive dúvidas de comprar na mesma hora.
Na última sexta-feira, quando
anunciaram a suspensão das aulas na universidade em razão da pandemia do Corona
Vírus, comecei a ler o livro de Isabel Allende. Foram cinco dias lendo as 278
páginas da edição publicada pela Bertrand Brasil, do grupo Record. Uma média de
quase 60 páginas por dia. Isso demonstra, de cara, que se trata de uma
narrativa de fácil leitura, com linguagem clara e algumas referências
históricas que, alguém que de repente não sabe nada sobre o contexto histórico,
talvez fique boiando um pouco, mas nada que comprometa o entendimento geral do
romance. Algumas perguntas-respostas:
Primeiro: quem é Isabel Allende?
Bem rapidamente, Allende nasceu no Peru, se criou no Chile, morou na Venezuela
e hoje mora nos Estados Unidos e é naturalizada americana. É sobrinha do
ex-presidente do Chile, Salvador Allende, assassinado no ataque de 11 de
setembro de 1973, financiado pelos Estados Unidos, que colocou o general
Pinochet no comando do país por cerca de 17 anos.
Segundo: é uma ficção ou uma
não-ficção? Olha, eu classificaria como uma obra mista. O contexto histórico é
todo real, os personagens secundários (políticos) também são reais. E os
personagens protagonistas, mesmo sendo fictícios, foram construídos a partir de
entrevistas, conversas e contatos feitos pela autora com um dos espanhóis que a
inspirou para a criação do personagem principal. “Este é um romance, mas os
fatos e as pessoas que pertencem à história são reais”, escreveu a autora nos
agradecimentos. Além disso, ela conta que Victor Pey, a principal fonte
consultada, morreu aos 103 anos de idade, quando a obra foi finalizada.
Para contar a história, eu vou
dividir tudo em duas categorias: a dos acontecimentos históricos (fatos reais
que aparecem na obra) e o drama dos personagens (baseados em fatos reais, mas
com algumas doses de ficção).
Em 1936 estourou a Guerra Civil
Espanhola. Allende usa algumas dezenas de páginas da primeira parte da obra
contando sobre a guerra através dos personagens. Em síntese, um governo de
esquerda havia sido democraticamente eleito, e a direita, comandada pelos
militares, planejou um golpe militar, tomando as principais cidades espanholas.
O que significava tomar as cidades? Matar todos os apoiadores do governo,
fossem civis ou militares. Enfim, uma guerra sem leis, uma perseguição cruel e
sanguinária semelhante a que Hitler faria depois no nazismo contra os judeus. O
troço todo foi liderado pelo General Franco (que ao término da guerra, ficou
espantosamente 40 anos no poder da Espanha. Um fascista dirigindo um dos países
mais importantes da Europa, nas barbas do mundo, até nada mais nada menos do
que 1975). Em síntese, quando a guerra civil acabou, começou a Segunda Guerra
Mundial.
O curioso é que Franco venceu com o apoio da Alemanha nazista e da
Itália fascista, sem nenhuma intervenção internacional em sentido oposto.
Estados Unidos e União Soviética não se meteram e isso foi determinante para a
vitória franquista/nazista/fascista. O que isso quer dizer? Que se Eua ou URSS
tivessem entrado na Guerra Civil espanhola antes, a Segunda Guerra também teria
iniciado mais cedo. Por exemplo, o troço todo poderia ter descambado em 1937...
Mas, não foi assim que aconteceu e os defensores do governo eleito foram
derrotados e os mesmos que venceram o nazismo e o fascismo na Segunda Guerra Mundial
fingiram que nada acontecia na Espanha até a morte de Franco, em 1975.
Sendo perseguidos e executados a
sangue frio, sem qualquer tipo de julgamento, os refugiados derrotados partiram
para a França (eu fiz essa viagem de Barcelona para a França ano passado e, realmente,
é uma viagem bem curta). O resultado disso? Milhões de espanhóis na fronteira
tentando ingressar no país vizinho. E os franceses? Não queriam aqueles
espanhóis miseráveis e vermelhos nem a pau! Fecharam as fronteiras e milhares
morreram ali mesmo. Alguns conseguiram entrar clandestinamente e foram postos
em campos de concentração em território francês, sendo tratado pior que
cachorro de rua. Mulheres grávidas e crianças morriam como moscas. Diariamente
eram atirados alguns poucos pães duros como pedra pelos soldados para o povo
maltrapilho em pleno inverno europeu. Foi nesse contexto que Pablo Neruda, que
então era embaixador chileno na França, conseguiu o navio para levar dois mil
desses refugiados espanhóis que estavam presos em solo francês para o Chile, em
1939.
Vamos agora aos personagens. Víctor
Dalmau é o principal protagonista. Ele é estudante de medicina quando estoura a
Guerra Civil. Enquanto o irmão mais novo, Guillem, vai para o front como
soldado, ele é improvisado como médico para atender aos feridos do lado que
defendia o governo de esquerda democraticamente eleito. Enfim, tem todas
aquelas histórias dramáticas de guerra. Os pais da dupla, no passado, haviam
adotado uma garota chamada Roser. Ela sofria de maus tratos e foi retirada da
família por um pastor de direita que a colocou em uma escola de música em
Barcelona. Lá, o professor dela (pais dos dois irmão) viu o seu talento e a
adotou tardiamente. Durante a guerra, nas idas e vindas de Guillem de Madrid
para Barcelona, ele começa a se envolver com Roser. Em determinada cena ele
volta para casa com tifus e quase morre. Roser cuida dele durante semanas e,
quando ele está quase bom, o desejo os envolve e o coito acontece. Ele volta
para a guerra enquanto Roser está grávida. Quando os defensores da república
estão praticamente derrotados, o pai dos irmãos morre. Víctor pede que um amigo
leve Roser grávida e a mãe para a França para que eles todos se encontrem do
lado de lá da fronteira. Nesse meio tempo, Guillem morre em uma batalha. Víctor
fica sabendo, porém não quer contar para Roser antes da criança nascer.
Enquanto iam para a França, a mãe da dupla – que não concordava em deixar a sua
casa para trás – resolve fugir e se perde no meio dos campos de refugiados.
Assim, o amigo deles consegue conduzir apenas Roser para a França. Ela é presa
e posta num campo de concentração.
Certamente morreria com a criança no ventre,
ou daria a luz para um bebê que duraria poucos dias, mas um amigo da família de
Víctor acaba indo ao seu encontro e a levando para uma fazenda para fazer o
parto e, posteriormente, trabalhar no campo. O bebê nasce e, através dessa
amiga, Víctor acaba localizando Roser. Ele fica sabendo que a mãe se perdeu e
conta para Roser que Guillem, o pai da criança, morreu.
A situação é caótica quando Víctor
fica sabendo da embarcação organizada por Neruda. Porém, como não há lugar para
todos, é feita uma seleção, pois o governo chileno pede que levem apenas
pessoas que possam contribuir para o país. No entanto, como Roser tinha um
filho e cunhado não é parente, os dois resolvem se casar para tornar possível a
ida de Víctor, Roser e da criança. Assim, o trio embarca rumo ao Chile.
Na minha humilde opinião, essa
primeira parte é a mais interessante do livro, pois os dramas aparecem e mudam a
todo instante e te envolvem a cada parágrafo. Depois, o romance deixa um pouco
de ser tão histórico (mas cheio de vida) para ser mais pessoal – com dramas
mais universais, tipo amor, paixão, traição, intrigas, etc.
Sintetizando tudo, chegando ao
Chile, Roser e Víctor combinam que vão seguir casados (até porque não existia
divórcio no país sul-americano). Curiosamente, o Chile já vivia o contexto da
guerra fria e, novamente, há o eterno confronto direita x esquerda. Víctor se
envolve com uma grã-fina que já é noiva. Os dois se apaixonam e ela acaba
engravidando. Para não haver o escândalo, ela não conta nada a Víctor sobre a
gravidez e vai para uma fazenda onde um padre convence a família a dar a
criança para a adoção. No entanto, eles deixam a moça dopada e, quando ela
acorda, falam que a criança nasceu morta.
O tempo passa e, com o passar dele,
Víctor e Roser vão se apaixonando. Vou dar um pulo aqui para o contexto dos
atentados de 11 de setembro de 1973. Quando Pinochet toma o poder, novamente
Víctor e Roser se veem perseguidos por um governo militar e de extrema direita.
Víctor é preso e torturado durante um ano. Quando consegue passar para o regime
semi aberto (após salvar a vida de um militar do alto escalão) ele e Roser
conseguem asilo na embaixada da Venezuela. Assim, partem para o país vizinho,
tornando-se, mais uma vez, refugiados. Quando estão velhos, já nos anos 1980,
cai o governo Pinochet e eles voltam ao Chile. Depois de todo esse tempo,
quando Roser já havia morrido, aparece uma senhora na casa de Vìctor, que está
com mais de 80 anos. A mulher diz ser filha dele e conta então a história da
grã-fina. Acontece que a mãe da grã-fina, com peso na consciência, acabou
entregando o jogo quando já está prestes a morrer e, assim, o nó foi desfeito.
Claro que há páginas e páginas, voltas e reviravoltas e todo o drama que pode
envolver uma história dessas, mas o resumão é esse. Ah, e nesse meio tempo, não
lembro como, Víctor acha a mãe que, apesar da idade e da confusão nos campos de
refugiados, estava viva e, assim, vai viver com ele e Roser no Chile.
Moral da história? A humanidade
sempre foi e sempre será uma merda. Os conflitos que vivemos hoje (direita louca
x esquerda radical) nunca pararam e nunca vão parar. Talvez a notícia boa é que
hoje, raramente, há casos de perseguição em massa, com presos e execuções aos
milhares, como foi há bem pouco tempo (não por falta de vontade de Bolsonaros
da vida e seguidores: “Vamos metralhar a petralhada do Acre!!!”). Outra “coincidência”:
o início e o fim dos regimes militares sempre foi comandado pelos Estados
Unidos. Ou seja, os americanos – quando tem um presidente tipo Nixon ou Trump –
financiam e apoiam a todo o custo governos autoritários que vão proteger os interesses
americanos. Depois, quando entra um governo Democrata, a coisa alivia, mas
nunca completamente. E assim a humanidade (pelo menos no lado das Américas)
segue seu rumo. Sempre andando em círculos. E sempre se surpreendendo, como se
o novo não fosse velho. Para finalizar, indico o livro, não só pela riqueza
histórica, mas pela excelente narrativa, que envolve, emociona e ajuda a
entender um pouco melhor essa espécie incompreensível chamada humanidade.
Ah, e por que o título do livro se
chama “Longa pétala de mar”? Porque era assim que Pablo Neruda se referia ao
Chile no continente americano: uma longa e cumprida pétala banhada pelas águas
do Pacífico.
Hasta!
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