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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Americanah


O livro Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que acabei de ler hoje, tem méritos espetaculares e defeitos incomodativos. Na verdade, são dois temas que aparecem no romance – que se passa entre Nigéria, Estados Unidos e Inglaterra – e a minha crítica (uma positiva e outra negativa) está relacionada diretamente a esses dois temas.
Inicialmente tentarei dar uma pincelada geral sobre o enredo. A narrativa é em terceira pessoa, mas gira principalmente em torno da protagonista Ifemelu. Ela é nigeriana e leva uma vida comum de classe média no país africano, filha de uma mãe ultra religiosa e cheia de crendices e de um pai que tem um bom emprego até ser demitido por se recusar a chamar a sua chefe de “mamãe” depois de dez anos de casa. Vivendo no regime militar, que imperou após a guerra de Biafra nas décadas de 1980 e 1990, as universidades e a educação passam a ser sucateadas (algo familiar para você, nobre leitorinho tupiniquim?). Ainda no ensino médio, Ifemelu forma o seu grupo de amigos e, dentre eles, está Obinze. Ao conhecê-lo, é amor à primeira vista. Eles namoram e começam a fazer faculdade na Nigéria, porém, as greves sem fim com atrasos de salários para professores (a mãe de Obinze é professora universitária) fazem com que muitos jovens tentassem desesperadamente deixar o país africano, tendo como principal destino os Estados Unidos e a Inglaterra. O sonho de Obinze é morar nos Estados Unidos, no entanto, ele não consegue o visto após sucessivas tentativas e é obrigado a permanecer em solo nigeriano. Já uma tia de Ifemelu, chamada de Tia Uju, é uma dondoca que faz o que, segundo Chimamanda, é quase uma regra entre as mulheres na Nigéria: a busca por um homem que possa, primeiro, sustentar a mulher e, segundo, dar status a ela (seja a mulher oficial ou amantes).
Assim, tia Uju se torna amante de um importante general do governo. Ganha uma casa, carro e uma barriga, pois dessa relação nasce Dike. O general morre em um acidente aéreo (aparentemente criminoso) e a mulher oficial ameaça tia Uju, que se vê obrigada a deixar o país com o filho por questões de segurança. Ela vai para os Estados Unidos e lá se estabelece para recomeçar a vida. Diante das intermináveis greves na Nigéria, em um telefonema, tia Uju faz a seguinte proposta para Ifemelu: ir estudar nos Estados Unidos e ajudar tia Uju a cuidar de Dike, pois ela gasta muito com uma babá, morando no Brooklyn, em Nova York. Assim, Ifemelu – que fazia medicina na Nigéria – concorre a uma vaga em uma universidade americana, sem muita esperança de ser aprovada, mas acaba ingressando no curso de Comunicação em uma universidade na Filadélfia. Obinze, que a essa altura já namora seriamente com Ifemelu, dá todo o incentivo para que ela vá, pois ele planeja ir para os Estados Unidos fazer pós-graduação depois de formado: assim, eles poderiam viver felizes para sempre no sonho americano.
O conto de fadas de repente vira drama. E nesse ponto creio que é importante dizer que o romance é semi-autobiográfico: a personagem Ifemelu segue praticamente os mesmos passos que Chimamanda deu no trajeto Nigéria-Estados Unidos. Ao chegar aos Estados Unidos, primeiro Ifemelu se depara com uma tia Uju estressada, trabalhando em três empregos para conseguir se sustentar e tentando revalidar o diploma de médica. Segundo, ela percebe que em um país predominantemente branco a raça é algo ultra valorizado, em uma escala em que os negros estão na parte mais baixa da pirâmide social. Bom, não vou dar o spoiler sobre essa questão, pois para mim é a cereja do bolo. Então, seguindo com o enredo, Ifemelu chega a Nova York, onde fica um tempo morando com tia Uju até as aulas iniciarem na Filadélfia. Chegando lá, ela não consegue emprego de jeito nenhum. Qualquer pessoa que viveu fora do país vai se identificar muito com as impressões e comentários dela.
Ifemelu entra em depressão quando sucumbe a um anúncio para “massagem relaxante” publicada por um professor de tênis. Sem dinheiro para pagar a universidade e o aluguel, ela acaba fazendo o serviço por 100 dólares. Em seguida, ela é contratada como babá por uma família branca e rica de um bairro nobre e rompe completamente com Obinze, não respondendo mais as suas mensagens e e-mails, envergonhada pelo que fez com o professor de tênis. A vida segue, Ifemelu namora primeiro um branco descrito como ricaço e bonitão da família que a contratou como babá e depois namorou seriamente um professor universitário negro-americano e ativista. Enquanto isso, Obinze fica deprimido na Nigéria, sem saber o que aconteceu com sua amada, mas segue a vida: tenta a sorte ilegalmente na Inglaterra, de onde é deportado, acaba ingressando no mercado imobiliário puxando o saco de um manda-chuvas local, torna-se super rico e se casa com uma negra linda com o perfil descrito antes: religiosa, tradicional e que acha que a função da mulher no mundo é achar um homem bem sucedido para lhe sustentar enquanto ela “dá conta da casa”. O tempo passa e, 13 anos depois de partir para os Estados Unidos, Ifemelu resolve voltar para a Nigéria. A essa altura ela mora junto com o professor universitário, publica um blog super famoso que aborda questões raciais nos Estados Unidos, tem o green card e ganha um bom dinheiro com isso. Ao voltar para a Nigéria, depois de terminar com o namorado americano, ela se depara com um país completamente diferente daquele que ela lembrava e um Obinze casado e com uma filha. A partir daí tudo se torna um dramalhão digno das piores novelas mexicanas. Ponto.
Agora, chego aos pontos positivos e negativos. O grande, grandíssimo ponto positivo é toda a reflexão que Chimamanda apresenta com Ifemelu sobre a questão racial e de imigração nos Estados Unidos. Há vários textos postados no blog que ela reproduz e que, creio eu, são os mesmos que a própria Chimamanda escreveu na vida real. Isso pega o período da eleição do Obama, então, tem um puta contexto histórico, pois é engraçado e triste ao mesmo tempo ver os personagens pensando que os racistas tinham sumido e não eram mais uma ameaça sabendo que em seguida o Trump se elegeu e os nazi-fascistas saíram do armário nos Estados Unidos e no mundo todo. Creio que vale a pena ler o livro – apesar da crítica que vem em seguida – por essa questão e pelo desenvolvimento dos personagens secundários, pois a história de tia Uju, Dike e de outros amigos de Ifemelu seguem se desenvolvendo ao longo das mais de 500 páginas do livro. Outro ponto interessante é que, assim como quando ela chega aos Estados Unidos ela percebe que a raça é uma questão importante para definir a posição social das pessoas, com um racismo visível, ao retornar para a Nigéria ela percebe que ninguém liga para a cor da pele dela.
E, mesmo na África, o branco fica em uma posição social superior no imaginário popular, pois quando Obinze começa a investir em imóveis um sujeito mais experiente dá a dica: arranje um amigo branco para lhe acompanhar, pois dá mais credibilidade. Lendo relatos como esses eu percebi que a humanidade ainda está há anos luz de chegar próximo de um desenvolvimento humano minimamente aceitável.
E o ponto negativo, que para mim seria facilmente resolvido com uma edição, é o romance mega e ultra clichê e, principalmente, o seu final piegas. Chimamanda fez mestrado em escrita criativa em Baltimore e acho que ela quis colocar em prática uma técnica narrativa que, na minha humilde opinião, é batida pra caralho, mas que ainda dá certo com as massas: o romance dramalhão com final feliz. Talvez por isso o livro dela virou best-seller, mas particularmente, esse excesso de romantismo me irritou um pouco. Se tirasse toda a questão da reflexão social e racial e ficasse apenas no caso de Ifemelu com Obinze o livro seria um fracasso total. Além disso, há outros pontos um tanto incomodativos na narrativa de Chimamanda, pois ela avalia todos os outros personagens, apontando defeitos morais, porém, ela descreve um Obinze completamente perfeito.
E, outra crítica, é que quase todos os ciclos frequentados por ela, na universidade americana e na Nigéria, são formados por pessoas descritas como lindas e ricas, sejam brancos, negros ou de qualquer outra etnia. Fiquei imaginando um mundo sem pessoas feias, gordas ou com “defeitos físicos”, nem pessoas pobres e miseráveis. Ela faz algumas referências, mas todas feitas completamente do lado de fora, de quem observa ao longe, por exemplo, feirantes apanhando da polícia em Lagos. E, como sei que Chimamanda é feminista ferrenha, também chamou a atenção o fato como ela tenta justificar o romance perfeito de Ifemelu e Obinze quando ela volta para a Nigéria. Obinze está casado e tem uma filha, porém, enquanto Chimamanda descreve outros casos extraconjugais como a tradicional caricatura da mulher piranha burra e do homem safado e sem vergonha, os dois personagens são endeusados com seus pensamentos e sentimentos puros, ou seja, todo o resto do mundo é podre e não presta, menos os dois bonitinhos que tem um amor de conto de fadas perfeito! Ifemelu corre atrás de Obinze, mas não é apresentada como uma piranha que vai tentar roubar o homem da outra mulher que tem uma filha, e Obinze se encontra todos os dias com Ifemelu, mas não é desenhado como o cachorro sem vergonha, porém, outros personagens em situações parecidas são criticados severamente pela autora. E, o final (se você não quer o spoiler, pare de ler aqui) é extremamente irritante, pois ele deixa a esposa e a filha para ser feliz para sempre com a amante (fiquei pensando ao terminar: bah, que feminista, heim?!).
Olhem só essa cena, em que Obinze está viajando: “Na última viagem de Obinze para lá, um homem assim, que ele mal conhecia, havia olhado por um tempo para duas jovens na outra ponta do balcão e lhe perguntou casualmente: ‘você tem uma camisinha sobrando?’ Obinze se afastara, chocado”. Ah, vá! Pobre Obinze! Super ingênuo... Chocado com isso, mas traindo a mulher às escondidas... Até fiquei com pena dele, pobrezinho, tão puro num mundo tão sem vergonha... Resumindo, ela tentou simplificar uma situação extremamente complexa e impossível de ser resolvida com a mágica literária, que são as paixões extraconjugais. Para esse tema, fico muito mais com Philip Roth e Henry Miller. Ficou uma sensação de: se os outros fizerem isso, os outros não prestam, mas se for eu, ah! eu sou especial, intelectual e romântico, escolhido por Deus e pela natureza, então, comigo é diferente... O meu amor com o/a outra é diferente. Porra, cada caso é um caso!
Enfim, achei esse e alguns outros pontos bem hipócritas – por exemplo, a série de julgamentos que ela faz dos negros americanos e dos próprios africanos que deixaram o país, criticando, por exemplo, os que adotam o sotaque americano, como se isso fosse um defeito ou um desvio de caráter. Ah, e quando ela critica excessivamente praticamente todos os outros personagens por terem mudado com o tempo. Achei isso extremamente bizarro, pois as pessoas mudam, gracias ao bom senhor!
Enfim, teria mais umas dezenas de páginas para falar sobre a obra, pois ela traz inúmeros pontos para diferentes e extensos debates, tanto sobre questões raciais quanto sobre relacionamentos amorosos, amizade, família... enfim, debates sobre a vida. Mas, esqueçam essas críticas, pois como disse em outro post estou ficando velho, chato e ranzinza. Leiam o livro – que é fundamental para pensar questões raciais em um mundo predominantemente branco e racista – e tirem as suas próprias conclusões. Para finalizar, apenas a lembrança do Meio Sol Amarelo que, na minha humilde opinião, é o melhor livro de Chimamanda. Leiam ambos. Hasta!

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