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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O reino deste mundo

 

Apesar da capa bonita da edição da Martin Fontes de 2009 e de ter apenas 132 páginas, “O reino deste mundo” não é um livro fácil. As sinopses que tem por aí, também enganam. Dizem que essa obra publicada em 1949 pelo escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980) foi uma das precursoras do realismo mágico sul-americano, inspirando “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez. Se foi ou não, eu não sei, mas são textos bem diferentes, estilisticamente falando. Enquanto na do escritor colombiano você consegue acompanhar a narrativa de boa, na do cubano é bom você ler com o celular do lado para entender o que certas palavras ou personagens significam. Aliás, mesmo mesclando personagens reais com fictícios, ele não cita nenhuma data e, como tais personagens não são famosos na história ocidental, como um Napoleão ou um Getúlio Vargas no caso brasileiro, você precisa dar um “Google” para sabem quem foi quem na vida real – ou vai ficar boiando, porque Carpentier não dá maiores explicações sobre quem é cada um, cagando para o burrinho leitor.

Por isso, e muito mais, “O reino deste mundo” não é fácil. A linguagem é um tanto quanto hermética e isso quer dizer que quando você pega esse livro para ler é bom estar bem concentrado. Não é uma narrativa para tentar acompanhar enquanto tem gente conversando ao redor ou na hora em que rola um jogo de futebol na TV. Pelo primeiro parágrafo, já dá para se ter uma ideia. “Entre os vinte garanhões trazidos ao Cabo Francês pelo capitão de barco que andava de conchavo com um criador normando, Ti Noel escolhera sem vacilação aquele reprodutor corpulento, de garupa redonda, bom para a remonta de éguas que pariam potros cada vez menores”.... E assim segue.

Antes de ler, eu achava que se tratava de um livro sobre a revolução haitiana, que começou em 1791 e foi até 1804. Porém, na verdade ele pega o antes, o durante e o depois, mas sem explicar exatamente o que e quando está acontecendo. Assim, eu descobri as datas da revolução no Google, bem como sabia o ano em que a história estava se passando quando apareciam nomes de personagens que, deduzi, poderiam ser históricos. Um deles é Mackandal, que inicia um dos levantes dos negros escravizados pelos franceses, e que nasceu em 1702 e morreu em 1758, queimado. Assim, quando matam o personagem na narrativa, eu sei que estava no ano de 1758. O mesmo vale para o resto da história: se você for pesquisando quem foi quem, você descobre o ano em que o fato aconteceu, bem como quem foi cada personagem. Lá pelas tantas, por exemplo, aparece Paulina Bonaparte, que eu, do alto da minha ignorância, não sabia quem era, apesar do famoso sobrenome. Por saber que esse período mais ou menos coincide com o da Revolução Francesa, imaginei que fosse alguma parente direta de Napoleão. E pesquisando no Google, descobri que, sim, era a irmã de Napoleão, pois Carpentier não se preocupa em explicar nem contextualizar absolutamente nada – você que lute, como diriam os jovens de hoje em dia. Você está lá, lendo a trajetória de Ti Noé – personagem principal – e de repente aparece Paulina Bonaparte, sem mais nem menos, e você não faz ideia quem ela é, de onde ela veio, o que ela representa e, muito menos, que é a irmã do Napoleão.

O problema maior, no entanto, é que a revolução começa e termina sem você perceber, pois décadas se passam em questão de poucas páginas. Em nenhum momento o autor diz: começou a revolução. Você descobre que falta pouco o que está rolando fazendo essas pesquisas paralelas. Isso me faz perguntar como as pessoas liam e compreendiam antes da internet? Digamos, um leitor de 1980. Teria que ler o troço todo com uma enciclopédia da história do Haiti ao lado para não ficar boiando.

Algumas coisas você até deduz, mas sempre fica suscetível a cometer erros de interpretação. Quando aparece Henri Christophe, por exemplo. Aos poucos você percebe que era um novo chefão do Haiti. Mas você se pergunta se é antes ou depois da revolução, pois se foi antes, o sujeito devia ser branco, se foi depois, seria negro. Ai vou no Google e descubro que ele foi o primeiro rei negro após a revolução. Isso muda tudo. Porque o personagem, em pouco tempo, está trabalhando de escravizado para Christophe. Isso fica claro mais adiante, mas dá um nó na cabeça do leitor que vai lendo sem antecipar essa informação na internet.

Bueno, em resumo, “O reino deste mundo” é um quebra-cabeça para quem gosta de história e literatura. Na medida em que você vai montando, você vai gostando, porque conta a história de um dos únicos países em que os escravizados fizeram uma revolução “bem sucedida”, matando todos os colonizadores (incluindo mulheres e crianças) e instaurando uma República com praticamente toda a população negra. É como se a “Revolta Malês”, do Brasil, tivesse dado certo. Porém, também mostra os problemas pós-revolução, pois o novo governo, formado por ex-escravizados, escravizam os mais fracos, criando um novo clã e uma nova aristocracia com divisões de classes sinistras. O último capítulo, inclusive, é arrebatador. Numa metáfora, Carpentier compara o nosso sistema de viver em sociedade à história de uma comunidade de gansos, que começa a viver em paz, mas que em pouco tempo tem dois gansos disputando o poder. “O clã mostrava-se agora uma comunidade aristocrática, absolutamente fechada a todo indivíduo de outra casta. O Grande Ganso de Sans-Souci não queria o menor contato com o Grande Ganso de Dondón. Se tivessem se encontrado frente a frente, teria estourado uma guerra. Por isso Ti Noel logo compreendeu que, embora insistisse durante anos, jamais teria o menor acesso às funções e ritos do clã. Foi-lhe dado a entender claramente que não lhe bastava ser ganso para acreditar que todos os gansos fossem iguais”. Simples assim.

Enfim, é um livro que, se você tiver paciência e disposição, vale a pena ler, pois te faz refletir sobre a condição humana e a bestialidade da nossa espécie, que nos dá exemplos de desumanidade diariamente no século XXI. Caso contrário, não se deixe enganar pela capa bonitinha e pelo resumo pomposo da orelha do livro, pois não é nenhum mamãozinho com açúcar literário para ser lido como mero passatempo.

Hasta!

 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

O estrangeiro


 Acabei de ler há poucos minutos “O estrangeiro”, do escritor franco-argelino Albert Camus. É o primeiro livro que leio de Camus, considerado por alguns como o autor da literatura francesa mais lido no mundo (é o que diz na “orelha” da obra, que tem apenas 126 páginas, publicado originalmente em 1942). Mas, vamos ao que interessa.

O estrangeiro é uma narrativa em primeira pessoa escrita na voz do personagem Meursault, um funcionário de escritório que vive na Argélia. Eu diria que Meursault mistura um pouco de estilo niilista com um pragmatismo cético e ateísta. Em outras palavras, quando comecei a ler o texto, fiz a seguinte comparação: trata-se de um Bukowski, mas sem a parte da bebedeira, dos palavrões e da putaria. O astuto leitor pode se perguntar: mas o que seria do Bukowski sem a bebedeira, os palavrões e a putaria? Eis a resposta: seria o próprio Meursault. Ou seja, a forma de encarar a vida e os fatos são semelhantes. A diferença é que o Bukowski completa o vazio do significado da existência com sexo, palavrões e putaria, enquanto que Meursault fica mais na dele mesmo.

Antes de seguir falando do Meursault, vou dar um resumão do enredo, sem contar o final, até porque Camus consegue deixar o leitor curioso sobre o desfecho até as últimas páginas e eu seria um grande filho da puta se desse esse spoiler. A história começa com Meursault partindo para o velório da mãe dele, que faleceu no asilo onde vivia. Ele a mandou para lá, pois não tinha mais condições de sustentá-la. Ao voltar do velório, ele sai com uma mina que ele era afim, vai ao cinema assistir a uma comédia, e depois ajuda o vizinho dele a dar uma lição na amante (uma surra, diga-se de passagem). Mais adiante, ele vai ao almoço do amigo em uma casa na praia e leva Marie, que em poucos dias se torna sua namorada, junto. Uns árabes seguem para acertar as contas sobre a surra que o amigo deu na irmã de uma deles. Eles se encontram com os árabes na praia e, depois de uma série de acontecimentos que demandaria muitas linhas para contar, Meursault mata o árabe. Fim da primeira parte.

A segunda parte é baseada na prisão e julgamento de Meursault, até a leitura da sua sentença, que não vou contar aqui qual é para não irritar o nervosinho leitor. E, ao final há uma série reflexões do personagem, que também não vou antecipar, pois seria impossível fazer isso sem entregar o final do romance (ou seria novela?). Uma das graças da segunda parte é que, o que era para ser o julgamento sobre o assassinato do árabe, acaba se transformando no julgamento da indiferença de Meursault sobre a morte da mãe dele no asilo.

E, então, podemos voltar para o início para fazer algumas considerações sobre essa narrativa, escrita quando Camus tinha apenas 29 anos e considerada por muitos (novamente a “orelha”) como a principal obra dele.

Pois, para isso, volto ao Bukowski. Eu tinha lido (e visto vídeos) com comentários sobre esse início da narrativa, mas acho que ninguém havia descrito o sentimento que eu tive ao ler tais linhas: eu achei um tanto quanto cômico. Achei engraçado o Meursault indo de ônibus para o enterro, indiferente sobre a partida da velha, e reclamando do cansaço e do calor. Assim como, na primeira página, achei hilária a passagem em que ele pede dois dias de licença para ir ao enterro da mãe, justificando que “com uma desculpa destas, ele não podia recusar” (p.13). A descrição sobre o velório e o enterro no asilo também me divertiram. Como disse, parecia um Bukowski são, de mau humor por estar sem bebida e sem sexo em uma tarde quente no norte da África. Aliás, Meursault é um sujeito fora do lugar o tempo todo, sem entender muito bem o que está fazendo no mundo. Ele se surpreende, por exemplo, quando termina o velório e os velhinhos vem lhe dar os pêsames. “Ao saírem, e para grande espanto meu, vieram todos apertar-me a mão como se esta noite, em que não havíamos trocado uma só palavra, tivesse aumentado a nossa intimidade” (p.21).

As descrições metafóricas também são um ponto alto do clássico, pois ajudam a visualizar as cenas, mas até para isso Camus apresenta um humor fino. Um exemplo é quando ele descreve o carro fúnebre: “envernizado, comprido e reluzente, me lembrava um porta-canetas. Ao lado dele estava o agente funerário, homenzinho de roupas ridículas, e um velho com um ar constrangido” (p.23).

A descrição, com tom de indiferença em relação ao fato principal (que seria a morte da mãe) dá esse tom ao mesmo tempo bizarro e filosófico sobre a cena toda. Meursault é, antes de tudo, um sujeito anti-social ao extremo. Na página 29, por exemplo, ele não vai almoçar no restaurante onde sempre almoça “porque, com certeza, me fariam perguntas, e não gosto disso”.

Já na página 31, ao ler toda a descrição do narrador sobre a cidade, eu me senti assistindo a um programa do National Geographic sobre animais selvagens, pois Meursault descreve tudo como se não fosse parte daquela sociedade ou sequer da mesma espécie. “Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram na rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes tinham gestos mais decididos do que de costume, e calculei que haviam visto um filme de aventuras. Os que regressavam dos cinemas do centro, chegaram um pouco mais tarde. Pareciam muito sérios”. E assim segue.

A porra toda aconteceu na quinta e na sexta-feira, o que deixou o patrão dele puto, pois assim ele teve quatro dias “de folga”. Ao voltar, porém, ele oferece uma vaga em Paris, mas a falta de ânimo de Meursault diante da notícia acaba decepcionando o boss. A descrição indiferente e crítica feita sobre os vizinhos do personagem também são divertidas. Um dos personagens apresentados é Emmanuel e o seu velho cachorro, que passeiam juntos há anos e todos os dias repetem a mesma cena: Emmanuel, um velho meio caduco, passeia com o cusco e xinga o animal o tempo inteiro de imundo e nojento. A situação de escassez financeira do personagem, aliado a sua preguiça, também me fez lembrar os meus tempos de faculdade. Em certa cena, um vizinho o convida para jantar, e Meursault aceita, concluindo: “pensei que isso me pouparia fazer minha comida e aceitei”. Depois, quando o vizinho pergunta se Meursault quer ser seu amigo, ele responde que “tanto faz”. Aliás, esse é um dos pontos mais destacados nas críticas que li previamente sobre o livro: “tanto faz” era a resposta preferida de Meursault. “Tanto fazia ser ou não amigo dele, e ele parecia realmente ter vontade disso” (p.40). A mesma resposta o personagem dá para Marie, o caso/namorada dele, quando ela pergunta se ele quer casar. “À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar” (p.48). É óbvio que ela ficou puta. Da página 53 até a 64 é narrada a cena do assassinato desde o início e, então, começa o capítulo 2, com o julgamento.

Mas aí já é outro assunto, que se me der la gana, futuramente volto para escrever. Caso não volte, na edição que comprei, sublinhei as partes interessantes para caso algum dia eu queira recuperar as cenas que a minha precária massa cinzenta tiver apagado. Mas o resumo é aquele que já mencionei: vão julgá-lo pelo assassinato, mas o foco na fala do defensor público e do promotor acaba sendo a indiferença de Meursault sobre o mundo e os outros, especialmente no que diz respeito à morte da mãe, além do seu ateísmo declarado.  

Hasta! 

 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Nada será como antes – I’m back – Again!

 


Estou de volta neste abandonado canal, um ano e meio depois da última postagem. Tudo porque, depois de ler a biografia do Lula, li alguns livros e acabei não resenhando em lugar nenhum. Apenas escrevi brevíssimos comentários na minha coluna do Diário Popular, de Pelotas. Assim, como percebi que alguns livros que li há cerca de um ano eu já mal recordo a história e os personagens, lembrei que esse espaço tem como principal finalidade fazer resenhas públicas dos livros que leio para consultar anos depois, quando minha massa cinzenta já tiver deletado a porra toda do meu cérebro corroído pelos anos de uso e pelo álcool.

Bom, sem mais delongas, acabei de ler outra biografia: Nada será como antes, sobre Elis Regina, escrita pelo jornalista Julio Maria. Antes de falar da obra, conto rapidamente como cheguei nela. Certa madrugada, depois de muitos latões de cerveja, estava ouvindo no youtube “Como nossos pais”, da Elis, quando pensei: “meu, essa mulher é foda”. Tomei mais um gole e completei: “Deve ter tido uma vida do caralho!”. E então, eu pesquisei no Google uma boa biografia sobre Elis. No dia seguinte, acordei e levei minha vida normalmente, até que recebi um e-mail da Estante Virtual dizendo que meu pagamento havia sido aprovado. “Como assim, pagamento?”, perguntei a mim mesmo. “Caralho, clonaram meu cartão!”. Abri o e-mail, apavorado, mas tomei um susto ao ver que eu, de fato, havia encomendado a biografia da Elis Regina, “Nada será como antes”, com pagamento à vista, por 90 reais, às 4h30 da madrugada. Puta que pariu, preciso parar de beber.

Enfim, o livro chegou e acabei lendo todas as suas 417 páginas. O investimento acabou valendo a pena, pois, de fato, a biografia da Elis é foda pra caralho. O livro, inclusive, é como a vida da Elis: cheio de altos e baixos. Os pontos mais altos, na minha humilde opinião, é o início e o fim, com a narração dramática da morte da cantora. Ali, realmente Julio Maria conseguiu fazer a narrativa “cena a cena” do New Journalism, lembrando, além dos jornalistas literários americanos, os grandes biógrafos brasileiros, tais como Fernando Morais e Ruy Castro. Nestes dois trechos, o texto que te transporta para o apartamento da Elis, para o seu último dia de vida, etc e tal. Mas o miolo do livro, que efetivamente narra a carreira de Elis, varia entre outros momentos em que você se sente ao lado dela na sua vida vivida andando sempre a 200 por hora, e contações de histórias de bastidores da Música Popular Brasileira, algumas maçantes e que não acrescentam muita coisa ao principal, que é a vida de Elis.

Eu até entendo o Julio Maria, porque ao final do livro tem a lista de todas as pessoas entrevistadas e, tenho certeza, ele deve ter ficado tremendo de êxtase ao ouvir cada uma delas. Só que algumas histórias acabaram não acrescentando muita coisa à narrativa como um todo. Enfim, críticas à parte (que nem tenho moral para fazer, afinal, o cara fez a biografia de uma das maiores cantoras da história do Brasil entrevistando um monte de lendas vivas da cultura brasileira), o que interessa para o eu do futuro é: afinal, quem foi Elis Regina? Vou pontuar algumas impressões que tive, lendo a obra.

1)   Elis Regina, enquanto pessoa, é o que hoje seria considerada alguém clinicamente doente, com uma bipolaridade extrema. Como eu convivi durante anos com pessoa portadora dessa doença, sei que não é fácil. Só de ler determinadas histórias da artista, tive calafrios. Pensei: caralho, eu não gostaria de ter conhecido ela pessoalmente. Não vou descrever a doença, mas, em toda a narrativa, percebi ela na vida de Elis. É aquela coisa de enlouquecer todos que estão ao seu redor para fazer com que TODOS se sintam igual a você: quando estou feliz, todo mundo tem que estar feliz; quando estou puto, todo mundo tem que estar puto, não importa se você ganhou na megasena ou acabou de ter um filho; quando estou deprê, todo mundo tem que ficar deprê. Na boa, nem se tratando de Elis Regina eu viveria um inferno desses de novo.

2)      Como bipolar, ela vivia tudo intensamente. Se ficava brava com o marido/namorado buscava nos braços de outro algo que sentia falta. Depois, se arrependia e fazia o inverso: destratava o amante e caia nos braços do marido. Traia e era traída. Tinha ciúmes e sofria pelos ciúmes dos outros. Enfim, tudo vivido com o pé no acelerador, numa montanha russa de emoções que, com uma pitadinha de elementos químicos faria tudo ir pelos ares.

3)      Na biografia escrita por Julio Maria, repórter especializado em música, senti falta de “romantizar” mais a infância, fazendo a narrativa cena a cena para alguns episódios. A infância/adolescência é contada mais por cima, talvez porque não tivesse tantas fontes para descrever detalhes de certos episódios. Mas aí acho que ele poderia ter liberado a veia ficcionista e criado mais em cima do que ouviu. Apenas compartilho aqui um palpite que me ocorreu enquanto lia. Por outro lado, outros episódios não tão importantes receberam páginas e páginas, tornando alguns trechos da leitura monótonos, por mais que a história fosse sempre acelerada.

4)      O legal de ler hoje em dia, com a internet, é poder ler sobre a história de uma música ou de um show e ir buscar lá no youtube. Um exemplo foi quando li a boa história da gravação de Elis Regina com Tom Jobim nos Estados Unidos e, ao concluir esse trecho, catei vários vídeos dos dois artistas cantando músicas como “É pau, é pedra” no estúdio ou em shows e por aí vai.

5)      Agora, para alguém como eu, que peguei o livro para ler apenas sabendo que Elis era uma lenda da música nacional e que havia morrido de overdose, há a curiosidade de saber como era essa relação dela com as drogas. E aí vai um pequeno spoiler: o livro inteiro praticamente não fala disso. E o motivo é bem simples: durante a vida toda, ela detestou qualquer tipo de droga, com exceção da bebida, mas no seu último ano de vida, ela começou a usar cocaína. E aí é a fórmula perfeita para a tragédia: um bipolar em grau máximo, sem tratamento psiquiátrico, bebendo e usando cocaína. É como ver um sofá pegando fogo e atirar um galão de gasolina para tentar apaga-lo. Explodiu tudo e a tragédia foi certa.  

6)      O fim do livro, com as últimas 24 horas da Elis, é espetacular, mas me fez pensar que, de fato, o ser humano não sabe lidar com relacionamentos. Não sei é justo dizer isso, mas a misturança de drogas e álcool que a levou ao óbito surgiu da imaturidade de dois adultos de lidar a temática. Para piorar, como quase sempre, quem mais sofrem são os filhos, no caso, três, na época, de quatro a onze anos.

7)      Sobre política, há trechos interessantes. A questão da ditadura militar e todo o seu absurdo aparece de maneira marcante, pois inicialmente Elis foi acusada pela esquerda mais militante de ser “chapa branca” com os milicos, porém, depois, ela se engajou a tal ponto de ter um dossiê detalhado sobre a sua vida no DPOS, além de ter sido ameaçada por militares. O capítulo 19 também mostra que ela queria contar as feridas sociais nas suas músicas e descreve, na página 323, como ela conheceu o presidente Lula e sobre como ambos se identificaram um com o outro. Lula, inclusive, esteve no velório de Elis Regina, lamentando a morte da cantora.

Enfim, há outros pontos diversos, mas estou fora de ritmo e por hoje deu. Se me der la gana, futuramente volto aqui para comentar mais.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Lula – Biografia – Volume 1

 


            Terminei de ler o primeiro volume da biografia do ex-presidente Lula com um mix de opiniões e sentimentos. Vou tentar organizar essa miscelânea de pensamentos, primeiramente, contando muito resumidamente a divisão da narrativa. Fernando Morais, um dos maiores escritores da literatura brasileira, dedica as primeiras 160 páginas para contar sobre a prisão de Lula, em toda a sua particularidade e complexidade. Ou seja, só esse episódio já renderia um livro de mil páginas a parte, então, em determinados trechos ele contextualiza a Vaza Jato de forma mais ampla e, em outros, ele narra os momentos específicos que antecederam a prisão e o cotidiano de Lula na cadeia em Curitiba até ele conquistar a liberdade. Nas páginas seguintes, há uma longa narrativa, com destaque para atuação de Lula no sindicalismo até a criação do PT, mas que inclui a infância e adolescência do personagem e todo o drama familiar que engloba agressões pesadas de seu pai, trabalho infantil, fome, pobreza e tudo o mais. A história toda vai até a eleição de Lula como deputado, antes da campanha presidencial de 1989. Morais conta no posfácio que o volume dois vai tratar das três derrotas (uma para Collor e duas para FHC) e das duas vitórias (2002 e 2006) nas campanhas presidenciais. Aguardemos.

            Antes de falar sobre as minhas opiniões e sentimentos, gostaria de ressaltar que a biografia de Morais dá um soco no estômago nos slogans preconceituosos que foram colados na testa de Lula. Primeiro: a fama de analfabeto. Lula estudou até o quinto ano e, parou, para trabalhar. Na fábrica aonde trabalhava, fez um curso de torneiro mecânico, profissão que exerceu nos anos seguintes. Ou seja, ele não era analfabeto no sentido em que as pessoas queriam que ele fosse: o de não saber ler, nem escrever. E, segundo, ele trabalhou dos 8 aos 38 anos, ou seja, ele não foi um cara escorado no sindicalismo e que depois passou a “viver de política”. Em outras palavras, aquelas frases toscas como “Lula é analfabeto” ou “Lula nunca trabalhou” são lorotas para boi dormir. Outro ponto importante é o drama da perda do dedo, que foi um acidente de trabalho que ocorreu justamente pelo cansaço de seu colega. Lembre-se disso quando ouvir algum animal falando algo como: “O vagabundo analfabeto de nove dedos”.  

            Dito isso, vamos às considerações. Primeiro, jornalisticamente. Confesso que quando acabei de ler fiquei com aquela sensação de, pô, a história por si só já é espetacular, o Fernando Morais não precisava ter sido tão engajado politicamente na porra toda. No entanto, agora de noite, vendo os comentários em uma notícia sobre protestos pela volta às aulas presenciais em um instituto federal de Pelotas, em que pessoas alienadas e bolsonaristas acéfalos defecam nas redes sociais todo o seu ódio por professores, pesquisadores e intelectuais, eu voltei atrás e concluí: sim, Fernando Morais acertou em se engajar na narrativa desconstruindo os preconceitos que foram colados à imagem de Lula por uma elite decadente ao longo de décadas. Inclusive, há um apêndice interessante na obra em que Morais apresenta uma pesquisa sobre as horas/páginas dedicadas pelos grandes veículos da mídia brasileira para condenar Lula moralmente antes da aberração da Vaza Jato. Nada de novo, afinal, como conta Morais, o ex-presidente passou por perseguições semelhantes nos seus primeiros anos de política, inclusive, sendo preso pela ditadura militar do período.

            Terminada a leitura, ainda pesquisei no Google as reportagens sobre as condenações de Lula – tanto da época, quanto as de agora, sobre a anulação das provas de Moro. Para mim é tudo muito simples: pega-se os argumentos/provas da defesa de Lula (muitas são citadas no livro), pega-se os argumentos/provas da acusação (que, bizarramente, inclui o próprio juiz do caso, o político Moro) e se faz a relação entre os argumentos/provas. Simples. Reli as “provas” que justificariam a prisão do Lula e confesso que ri sozinho, no sofá. Claramente não há nenhuma prova clara e documental. Há indícios, sendo que muitos poderiam ser facilmente produzidos pelas autoridades/acusadores, especialmente em um país como o Brasil, onde a polícia coloca arma na mão de defunto para dizer que matou em uma “troca de tiros com a polícia” (ver Rota 66, de Caco Barcelos). E, obviamente, tudo fica mais claro quando se tem um juiz que combina com a acusação as estratégias para condenar o réu (conforme provou o Intercept Brasil, em uma das grandes reportagens mais importantes desse século) e esse mesmo juiz vira, primeiro, ministro do governo eleito graças a decisão dele, de tirar Lula das eleições de 2018, e que, para piorar, vira candidato à presidência contra o próprio réu (Lula) em 2022!!!! É surreal demais para ser verdade.

            Então, concluo dizendo que, por um lado, essa não vai ser a biografia definitiva de Lula, tendo em vista que, sim, percebe-se um comprometimento do autor com o biografado (o que jornalisticamente é ruim). Creio eu que uma biografia de Lula mais fiel à realidade pode ser escrita daqui à 40 ou 50 anos, com outro jornalista, mais isento, utilizando os dois volumes escritos por Morais como fonte, mas acrescentando episódios e informações que, mesmo quando folclóricas, foram deixadas de lado numa tentativa (ao que me parece) de não denegrir de forma alguma a imagem do biografado, que é ainda candidato à presidente. Sendo mais claro: sim, o livro de Morais peca, nesse sentido, por deixar claro – para os leitores mais atentos – que havia uma preocupação em não mencionar nada que pudesse comprometer a imagem de Lula, até porque o lançamento do livro ocorre em ano eleitoral... E, para ser mais claro ainda: sim, é uma biografia que mostra apenas um lado da moeda (não no sentido de honestidade ou corrupção, mas no sentido de que ninguém é perfeito) e, espero eu, como disse, daqui a algumas décadas algum bom jornalista, como o Morais fez com Chatô e outros, possa escrever olhando a história de Lula de fora e sob todos os ângulos e sem se preocupar se vai desagradar ele ou não. Até porque, de certa forma, sabe-se que ficou um sentimento de gratidão à Lula por parte do autor, pois ele dependeu do consentimento do ex-presidente para ter acesso à sua vida, tanto em entrevistas, quanto em testemunhos de acontecimentos importantes para a história do personagem.

            Para finalizar, colocando tudo na balança, entendo as “falhas” de Morais, pois esse foi um livro necessário no momento em que vivemos, afinal, é importante separar o joio do trigo e colocar os pingos nos is. E, para o futuro do país, temos de um lado uma possiblidade de voltarmos a ter esperança com Lula governando pelas reposições salariais, pelo acesso à comida, à educação, enfim, ao capital e aos serviços, e de outro um maluco de atirar pedra e outro que, claramente, trocou a toga pelos holofotes e que não pode ser levado a sério pelas manchas que deixou na sua bizarra atuação no próprio judiciário. Ou, se preferirem, posso resumir tudo em uma palavra e um número. Se antes eu só achava, agora tenho certeza: é Lula 2022!

Hasta!

sábado, 29 de janeiro de 2022

Sobre férias, praia, livros e filmes

 


Estou de férias em Xangri-lá, na casa dos meus pais. Aliás, esse tem sido o destino das minhas férias nos últimos cinco ou seis anos. Sou um semimorador de Xangri-lá, pois fico por aqui mais ou menos uns dois meses por ano. Essa é uma praia tranquila, colada em Capão da Canoa, a casa no litoral de muitos porto-alegrenses. Eu me implico com eles, os porto-alegrenses. No geral, eles chegam aqui e pensam que estão lá: não respeitam faixa de segurança, sinais de trânsito, filas preferenciais nos mercados e tudo o mais o que eles fazem na caótica e suja capital dos gaúchos. Acabo resmungando: por que não ficam por lá, diabedo? Esses dias fiz essa pergunta e minha pequena disse: mas tu também não mora aqui! Eu respondi, de bate pronto, que sou um semimorador, pois meus pais moram e eu fico 15% dos 12 meses do ano por estas bandas. Durante as férias, todos os dias possíveis eu corro/caminho na praia por cerca de duas horas. Esses dias fui correndo daqui, de Xangri-lá, até a frente da casa do meu amigo, escritor e médico Sérgio Stangler (aquele mesmo que previu a minha morte e que tem os originais inéditos do meu grande romance), perto do farol, em Araçá. Fui pesquisar no Google e descobri que percorri – entre ida e volta – mais de 10 quilômetros. Tu vês.

Também tenho aproveitado as férias para ler e ver filmes. Depois do livro do Jorge Amado, comentado por aqui no penúltimo post, eu li “O sol é para todos”, da Harper Lee. Um livro singelo, com uma história simples sobre o cotidiano da família de um advogado que é contratado para defender um homem negro acusado de estupro nos Estados Unidos segregacionista do início do século XX. Não vou dar detalhes, mas a escrita da autora nessa obra me fez lembrar alguns livros da primeira fase do Erico Verissimo, como “Olhai os lírios do campo” ou “O resto é silêncio”. Terminado o livro, fui procurar o filme, que ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado de 1963. Confesso que foi uma das melhores adaptações de livros para o cinema que já vi.

Não vou lembrar de todos os filmes que vi nesses dias. Destaco, positivamente, “The rescue” (O resgate), um documentário que trata do milagroso salvamento do time infantil de futebol que ficou dias preso em uma caverna alagada na Tailândia, em 2018. Vale muito a pena e, creio eu, deva disputar o próximo Oscar da categoria. Negativamente aponto “Faroeste Caboclo”, a adaptação da música do Legião Urbana. Fui ver na expectativa de ver o João de Santo Cristo roubar as velhinhas no altar, comer todas as menininhas da cidade e gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador na zona, mas nada disso acontece. Além disso, o pobre João só leva no cu (literalmente) durante o filme, mudaram a ordem dos acontecimentos e suprimiram as partes em que ele se dá relativamente bem. Pobre João. Uma injustiça. O resultado foi um filme decepcionante para quem, como eu, ouve o clássico de Renato Russo desde os 10 anos (três décadas curtindo esse som).

Voltando para a literatura, dia desses li “Todo o dia a mesma noite”, um puta livro-reportagem da jornalista Daniela Arbex sobre a tragédia da boate Kiss. Nessa semana ouvi na rádia que estão fazendo uma série na Netflix baseada na obra, que é dramática, emocionante, triste e revoltante. Também não darei “spoiler”. Paralelamente a tudo isso, estou lendo um livro técnico de quase 600 páginas: Mercado de Capitais, do professor da UFMG, Juliano Pinheiro. Um livro didático e excelente para se alfabetizar minimente sobre finanças. Ainda vou escrever mais sobre isso em breve, se a previsão do Stangler não se concretizar. E, por fim, estou na metade da biografia do Lula, obra de Fernando Morais, que dei de presente de Natal para o meu pai. Sobre ela talvez, se estiver inspirado, vou falar mais futuramente. Ah, e obviamente, se a previsão do Stangler falhar. Aliás, falando em morte, um dia talvez eu escreva um texto sobre o picareta Olavo de Carvalho, que voltou para o inferno há pouco. Mas não posso garantir, pois creio que ele não é digno da minha atenção. Se for, vai um texto para divertir o cruel, diabólico e insaciável leitor.

Bueno, chegou a hora da minha corrida/caminhada pela praia. Se eu não voltar nos próximos meses é porque o Stangler acertou e, talvez, ficou rico.

Hasta!

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A morte da assinatura de um assinante morto

 



            Cancelei a minha assinatura do jornal Dário Popular. Hoje. Está certo, atento leitor, eu sou colunista do Diário Popular, aqui de Pelotas. E, não se espante: sim, como colunista, se eu quiser ter acesso ao jornal, eu tenho que assiná-lo, pagando integralmente a anuidade ou a mensalidade. E vou morrer. Segundo o meu amigo, escritor e médico Sérgio Stangler, eu vou morrer em breve. Para a sorte do Sérgio, talvez ele fique rico por dois motivos: um, ele vai ter acertado a premonição e, portanto, vai poder além de ser médico dizer que é algo como Pai de Santo ou vidente; e, dois, eu tenho um livro escrito, o melhor que já produzi (de todos os quatro) que está nas mãos dele, pois não encontrei nenhuma puta editora que tope publicá-lo me pagando um mínimo percentual das vendas. Assim, pedi para que, quando eu morrer, ele fique responsável de publicar todas as bobagens que são doidas demais para não serem compartilhadas com humanidade. E, na cabecinha dele, isso deve ter algum valor monetário (algo que eu não acredito muito em um país como o Brasil). Mas tudo bem, cadum, cadum.

            E o que uma coisa tem a ver com a outra??? Ora, muito fácil. Primeiro vou explicar os motivos do meu cancelamento da assinatura. Creio que, assim, rapidamente o astuto leitor vai ligar uma coisa com a outra. A minha assinatura semestral venceu dia desses. Veio a cobrança e eu não paguei. Assim, imaginei que parassem de enviar o jornal. A minha ideia era parar com a assinatura no último mês de 2021, pois fico até metade de fevereiro de 2022 fora de Pelotas, assim, voltaria a assinar quando voltasse, normalmente, tudo na paz do Nosso Senhor. No entanto, a cobradora do jornal veio me cobrar. Disse que eu devia para o jornal. Eu quis saber como ãnsim (?!), como perguntam lá nas missões. Ela explicou que eu não havia pago o boleto que tinham me enviado. Então eu expliquei toda essa história da viagem e tals. Ela cagou pra mim e disse que eu não podia fazer isso, pois teria que pagar pelos jornais que recebi, em um tom que me senti um vigarista, um Zeca Urubu, um caloteiro que queria ficar rico dando golpes em inocentes jornais do interior gaúcho. Tentei dizer que eu era assinante e colunista, que eu só queria negociar o troço todo, mas ela cagou pra mim e ponto. Para ela, o negócio se resumia a: VOCÊ DEVE, VOCÊ PAGA! That’s it.

            Achei tudo meio estranho. Estou fazendo um curso de finanças e, além do que já havia estudado sobre administração durante o próprio curso de Jornalismo, eu havia aprendido que as empresas não sobrevivem sem cientes. E um leitor de um jornal, para uma empresa jornalística, é um cliente. Se são 20 mil assinantes, são 20 mil clientes, e se tratar todos assim durante muito tempo, cedo ou tarde a casa cai, mesmo que leve gerações. Então, lembrei de todos os lugares em que trabalhei e que convivi com funcionários que cagavam pra todo mundo. Pensei: “essa é um desses tipos”. Contatei instâncias superiores e obtive o mesmo resultado: cagaram pra mim novamente. Bueno, diante disso, só vi uma solução: cancelar a assinatura para toda a eternidade.

            Entenderam a relação disso com a minha morte?? Não?!?! Está bem, vou desenhar para o burrinho leitor compreender. Imaginemos que eu mantivesse a assinatura do Diário Popular. E, uma semana depois, a premonição do Sérgio Stangler se confirmasse e eu batesse as botas. Eles continuariam com todos os meus dados e seguiriam enviando o jornal para o meu endereço. Tentariam me cobrar no celular, no e-mail, enviariam mil boletos para lotar a caixinha de correspondência, que chegaria para futuros inquilinos desse apartamento e que as colocariam no lixo sem abrir. Eu, como estaria mortinho da Silva, não responderia às mensagens de whatts nem aos e-mails. A cobradora rapidamente concluiria que eu havia sumido para dar golpes em outras cidades interioranas no meu plano de enriquecer rapidamente. Assim, as cobranças viriam e viriam e viriam e viriam até que depois de, sei lá, alguns anos, alguém lá no jornal diria, com ar de Sherlock Holmes:

- Hei! Esse tal de Eduardo Ritter está recebendo o nosso jornal há décadas e nunca nos paga!!! Vamos pegar ele!!!

            Nesse período, a senhora patroa seria viúva e minha filha estaria formada, trabalhando, quando numa bela tarde de sol aparece um sujeito engravatado para entregar uma cobrança judicial. A viúva abriria o papelzinho e cairia dura para todo o sempre ao ver as cifras da cobrança. E minha pobre filha, teria que trabalhar arduamente durante anos e anos para pagar a dívida do velho pai morto, que não quis cancelar a assinatura do jornal que cobra infinitamente aos seus assinantes enquanto eles não procurarem o jornal para efetuar o cancelamento.

            Entenderam agora? Ah, e vocês também devem estar se perguntando: Bueno, o Stangler é um médico conceituado. Ora, se ele dissesse que eu iria morrer, eu procuraria todos os médicos para fazer todos os exames possíveis para evitar a minha partida para ao além. Mas calma, apressado e angustiado leitor. Os motivos não são um câncer ou veias entupidas, gases ou excesso de hemorroidas. Não. Segundo ele, eu vou morrer por causa da neblina que apareceu lá em Araçá, do lado de Capão, e por causa de uma toninha desfalecida encontrada na areia. E, para confirmar, teve o quero-quero que morreu do coração lá nas dunas enquanto perseguia a cadela dele. Eis a frase, ipsis litteris: “De tantos presságios, não pude evitar de entender o que me estava sendo avisado pelos céus: o Eduardo Ritter vai morrer!”. Bueno, diante disso, me sinto mais aliviado em ter encerrado a assinatura do Diário Popular.

Hasta o além!

 

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

I'm back!

 

Atendendo ao pedido de milhões de leitores (imaginários) dessa bagaça, e de um de carne e osso (meu amigo, escritor e professor Francisco Dandão) volto a escrever aqui. Passaram-se mais de três meses desde o último post. De lá para cá, tomei a segunda dose da vacina contra a Covid, peguei Covid, vi o Grêmio ser rebaixado, bebi um monte, vi o Galo ser campeão de quase tudo, vi o Menguinho tomar uma linda surra do Palmeiras e cair das tamancas na final da Libertadores, virei faixa cinza de judô e, mais recentemente, li um livro e assisti a três filmes. Foi para falar de um desses três filmes que fui intimado pelo professor Dandão a escrever sobre. No entanto, deixo essa película para o final.


Vou começar pelo livro. Terminei de ler ontem “Capitães da areia”, de Jorge Amado. Difícil escrever sobre essa obra, pois há inúmeras boas resenhas sobre ela na internet. O que me impressiona é o tempo em que foi produzida: década de 1930, sendo publicada, censurada e queimada pela ditadura de Getúlio Vargas em 1937. Dois fatos interessantes: essa obra prima, que trata da vida de órfãos de seis a 16 anos que viviam nas ruas de Salvador, foi escrita quando Jorge Amado tinha 25 anos. Um guri! Um gênio. Segundo consta na edição da Companhia das Letras, o escritor baiano foi viver um tempo com as crianças de rua para embasar a narrativa, dando um “quê” jornalístico ao texto. E outra: um ano depois da publicação, Lampião foi capturado e morto, sendo que ele é um dos personagens secundários da obra. Em síntese, não tem como não embarcar nas histórias e aventuras e dramas de Pedro Bala, Sem Pernas, Gato, Professor, Boa-Vida e toda a rapaziada. Mas não vou abordar o enredo pois, quem quiser, pode ler o livro ou, senão, pelo menos o resumo nos sites literários que habitam a internet.


Sobre os filmes, vou ir de trás para frente. Começo pelo que assisti hoje, indicação do meu amigo e colega Fábio Cruz: Rush – no limite da emoção. É uma produção de 2013 que trata da rivalidade histórica entre dois pilotos de Fórmula 1 dos anos 1970: Niki Lauda e James Hunt. Confesso que nunca tinha ouvido falar deles, mas o Fábio falou tão bem (mas tããããooooo bem) do filme que fiquei curioso. E não me decepcionei, pois nunca mais vou esquecer do bizarro, metódico, disciplinado, teimoso e corajoso Niki Lauda (tri-campeão mundial) e do irreverente, irresponsável, provocador, galã e igualmente corajoso James Hunt (campeão em 1976, campeonato abordado no filme). Também não vou comentar sobre o enredo para não dar spoiler, mas adianto que esse campeonato de 1976 (especialmente a última corrida) foi uma espécie de Batalha dos Aflitos da Fórmula 1. Ah, e os dois, apesar de terem personalidades antagônicas, são muito cômicos, com ótimas e hilariantes tiradas em diálogos entre eles e com outros personagens.

Já no domingo de noite, assisti na Globo News um documentário sobre o Chacrinha. Também muito bom. Conheci mais sobre esse fenômeno da TV brasileira que, na minha humilde opinião, junto com Sílvio Santos, foi o apresentador mais emblemático da história de nossos populares canais abertos, apesar de cada um ter seus defeitos (Chacrinha ser um bitolado por Ibope e Sílvio Santos apoiar a versão brasileira mal acabada de Hitler).


Por fim, chego ao comentário solicitado pelo professor Dandão. Ele também tem uma coluna e escreveu sobre dois filmes: Marighella e Pixinguinha, ambos com Seu Jorge como ator principal. Ao terminar de ler o texto, imediatamente coloquei o Marighella para assistir. São duas horas e meia de muita ação, suspense, luta, sonhos e história. Muita história. Trata-se também de um filmaço que reforça o que, de certa forma, quem já estudou o assunto sabe: o absurdo que foi a ditadura militar implementada no Brasil com o golpe de 1964. Difícil tentar pensar em um ponto específico para comentar aqui, pois são milhares de pontos que se relacionam dando sentido ao todo. Então, para não dar spoiler, vou me limitar a destacar a atuação perfeita de Seu Jorge como ator, interpretando Marighella.

E depois de tanto ouvir falar sobre o filme e sobre Marighella (uns criticando por transformar um terrorista em herói, outros aclamando a luta do herói diante da opressão), tiro minha própria conclusão para a pergunta crucial: afinal, Marighela foi terrorista ou herói? O próprio Marighella dá a primeira pista para a resposta no filme, quando ele berra com emoção: “sim, sou terrorista, sim!!!!”. Afinal, o “terrorismo” era a única forma de lutar em desvantagem contra um sistema fortemente armado, cruel, opressor, calculista e sanguinário. Um sistema mais terrorista do que o próprio “terrorismo” dos protestantes. Portanto, respondendo à questão, depois de ver o filme e pesquisar mais sobre ele, creio que Marighella foi os dois: terrorista e herói. Ou melhor, um terrorista criado pelo próprio sistema para lutar heroicamente contra as crueldades e desumanidades praticadas pelo seu próprio criador. Um terrorista-herói formado pelo sistema para lutar contra ele. Exatamente como fez o pequeno Pedro Bala, em Capitães da Areia.

Por hoje é isso. Um dia, talvez, eu volte again. Hasta!