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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Estive em Lisboa e lembrei de você (Luiz Ruffato)

Acabei de ler hoje “Estive em Lisboa e lembrei de você”, de Luiz Ruffato. Antes que você, imaginário leitor, pense que estou inventando (pois há dois dias havia acabado de ler o Livro de Jô), explico: li em dois dias o texto do Ruffato, que faz parte da coleção Amores Expressos, da Companhia das Letras, pois são apenas 83 páginas. E esse é um livro que precisa ser lido rapidamente, pois são apenas dois capítulos com parágrafos longos e linguagem completamente oral. Seria bom, inclusive, ler essa obra em voz alta, pois você literalmente ouve a voz do personagem que narra toda a tramoia em primeira pessoa, como se estivesse sentado em uma mesa de bar.
Tenho apenas duas considerações a fazer sobre o livro de Ruffato, uma positiva e outra negativa. Comecemos pela negativa, pois a partir dela, chego à positiva. O título não tem nada a ver com o enredo. E também, a história não se encaixa na proposta do Amores Expressos, pois é uma história de tudo, menos de amor (diferentemente do que parece ser o filme baseado na obra). Ou, talvez, de um amor platônico, mas que não chega a ser exatamente o ponto principal do livro. Assim, você pega o livro com uma expectativa (imaginando um brasileiro que está em Lisboa e pensa em alguém que está no Brasil, como em “O beijo que não vem da boca”, do Ignácio Loyola Brandão), mas não encontra nada disso na narrativa. E, dessa maneira, chego ao ponto positivo, pois o livro é, de maneira geral, excelente. É o típico livro pra ser lido em uma ou duas sentadas. Mas, por outro lado, é aquele livro para você se concentrar para ler, pois se você ficar devaneando mentalmente enquanto passa os olhos sobre o texto, talvez você perca o fio da meada e não se encontre mais na história.
A narrativa em primeira pessoa é de um personagem brasileiro: o típico sujeito semianalfabeto de uma cidade muito pequena do interior de Minas (que é a mesma cidade natal de Ruffato) e que, estando completamente fodido na vida (desempregado, sem os pais, com a esposa internada numa clínica psiquiátrica e o filho com a guarda dos sogros filhos da puta) pega as suas trouxinhas, a pequena herança deixada pela mãe e vai para Portugal cheio de sonhos (o sonho típico do brasileiro pobre que pensa em trabalhar por um tempo no país europeu que fala português para voltar “por cima da carne seca” cheio da grana um tempo depois). Porém, o que acontece, é uma tragi-comédia shekespereana.
O livro me fez lembrar do Passageiros do Trem N, do Sérgio Villas Boas (apesar da narrativa de Rufatto ser curta e a de Villas Boas ser longa e ter um pé e meio na reportagem). Ambos trabalham com esse imaginário dos brasileiros de que tudo é melhor fora do país. E, no contexto político de 2018, quem não está pensando em abandonar o Brasil? Espero que não tenhamos que sair do país para ter aquilo que de mais precioso existe na vida do ser humano: a liberdade. #elenão

terça-feira, 25 de setembro de 2018

O capítulo que salva o Livro de Jô da decepção total

Considero um reducionismo criticar o Jô Soares pelos seus últimos anos como apresentador de talk show¬, pois a carreira dele foi muito mais do que isso. Eu comecei a assistir ao Viva ao gordo ainda criança. Depois, acompanhei o Jô Onze e Meia no SBT durante toda a década de 1990, bem como a transferência dele de volta para a Globo, onde seguiu com o Programa do Jô até 2016. Durante os anos 1990 até meados de 2000 eu deixava uma fita no ponto e, dependendo do entrevistado, eu gravava. Ainda tenho aqui a caixa com várias fitas com programas gravados. O Jô Soares foi um dos caras mais fodas da televisão brasileira. Por isso às vezes me irrito quando algumas pessoas querem criticá-lo de maneira rasa (principalmente intelectuais da academia). Ele foi (não morreu ainda, mas praticamente se aposentou da TV) uma enciclopédia da história do Brasil e da TV. Conviveu com nomes consagrados no Brasil e no mundo. E, para mim, o seu auge foi no SBT nos anos 1990. Concordo com as críticas de seus últimos anos como apresentador do Programa do Jô quando, de fato, ele passou a querer aparecer mais do que os entrevistados e, muitas vezes, parece que focava em tentar humilhá-los ou coloca-los em situações ridículas. Porém, agora, depois de ter lido a autobiografia dele, o Livro de Jô, eu entendo que, talvez, na velhice, ele retomou o seu estilo de garoto nascido em berço de ouro da infância que assistia aos mais velhos pregarem peças nos outros, muitas vezes numa tentativa infantil de se auto afirmar como alguém superior em relação aos outros. Talvez um psicólogo possa avaliar melhor essa relação da personalidade do Jô da infância/adolescência com o Jô da velhice.
Bom, divaguei muito para dizer justamente isso: acabei de ler hoje o Livro de Jô: uma autobiografia desautorizada.
Comprei o livro justamente por tudo aquilo que mencionei antes: eu acompanhei a carreira do Jô por aproximadamente duas décadas. E, assim como muitos, parei de assistir aos programas nos últimos anos por essa tentativa desesperada que ele passou a ter de aparecer mais do que os entrevistados. No entanto, como falei, na década de 1990 houveram entrevistas absolutamente geniais (várias eu gravei) com todos os tipos de pessoas (famosos e anônimos). E, por assistir aos seus programas, eu sei que a formação intelectual do Jô não é brincadeira. Porém, talvez por isso, comprei o livro esperando encontrar memórias do nível das escritas por Erico Verissimo, em Solo de Clarineta, ou do Gabriel Garcia Márquez, em Viver para contar. Doce ilusão. A minha crítica é que Jô adotou no livro o mesmo estilo dos últimos anos de talk show: contou muitos e muitos “causos” de muitas e muitas pessoas, mas não contou a fundo a sua própria experiência (principalmente os seus podres). Ele até revela a sua relação com os pais e como foi a sua infância de filho temporão, comenta a estada na Suíça por cerca de cinco anos, as viagens pelo mundo, mas não foi realmente a fundo em praticamente nada. Limitou-se a contar histórias dos conhecidos, apresentando poucas reflexões sobre a vida – diferentemente do que fizeram os outros dois escritores mencionados antes. E isso, para mim, foi uma grande decepção.
Também foi uma decepção porque eu li três dos quatro romances publicados por Jô: Xangô de Baker Street, O homem que matou Getúlio Vargas e Assassinatos na Academia Brasileira de Letras. Desses três, curti muito os dois primeiros: achei de uma criatividade surpreendente e envolvente, além de um humor refinado e inteligente. O terceiro, porém, não teve o mesmo efeito. Assim, nem cogitei de ler As esganadas (se for bom, pode me deixar um comentário, caro leitor imaginário). E, novamente, senti-me decepcionado ao acabar as memórias, o que me leva a crer em duas coisas. Uma, a boa fase literária do Jô está nos seus dois primeiros romances; e outra, uma biografia que fosse escrita por algum jornalista da área ficaria muito melhor, pois, como disse, ele praticamente não conta nada que tenha feito de “errado” na vida. Todos sabemos que o ser humano é, por natureza, imperfeito e contraditório. E, ao contrário do que Erico e Garcia Márquez conseguiram fazer em suas memórias, o Jô escondeu a sete chaves esse lado mais humano dele.
O que salvou a autobiografia de Jô foi o último capítulo. Ali, sim, eu vi o Jô Soares dos velhos tempos. Ali ele comenta o que ele sentiu quando houve o golpe de 1964. Ali ele contou que foi de manhã para o DOPS e saiu de madrugada, quando achou que nem fosse mais sair. Ali ele conta a relação dele com o filho Rafael, que sofria de autismo e faleceu aos 51 anos. Ali ele menciona um pouco mais os seus dois casamentos. Ali ele conta uma história fascinante do encontro dele com o taxista que atropelou e matou a sua mãe, dona Mêcha. Ali ele conta da relação quase familiar entre os atores da Família Trapo da Record. Ali ele se revelou mais intimamente. Pena que foi tarde, depois de mais de 400 páginas em que ele se escondeu demais atrás dos personagens históricos que, para quem não tem a idade dele e não conhece a maioria daqueles nomes, torna-se chato pra caralho. Uma ou outra anedota salva as primeiras 400 páginas.
Escrevi essa crítica para expor o que senti ao terminar o livro. E para dizer: leia o último capítulo. Esse, sim, vale muito a pena. Esse sim, salvou o Livro de Jô da decepção total. Ao final, ele promete um segundo volume. Talvez, quando ele partir dessa para a outra, por comoção e respeito a um cara foda da comunicação brasileira, eu acabe lendo. Afinal, nunca gosto de dizer nunca.



quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Bolsonaro: a transformação do Coiso no Bozo

No dia 21 de março de 1955, no pequeníssimo município de Glicério, no noroeste do estado de São Paulo, uma senhora paria o filho brasileiro do Capeta. Ao nascer, o Coiso não chorou e nem riu. Ele fez PAM PAM, afastando o pequeno polegar e o indicador de suas recém-nascidas garras. O Coiso cresceu no Brasil dos anos 1960. Ensinaram-lhe a seguir os passos de seu antepassado italiano Mussolini: o Exército era o caminho para o futuro. Para tanto, era necessário chegar ao topo da hierarquia. O Coiso pensou: essa é fácil, é só berrar alto, puxar o saco dos superiores, humilhar os que estão abaixo de mim, torturar e matar quem discorda ou questiona a farda, que chego lá. Mas ele não contava com uma pedra no seu caminho, que se chamava povo. O povo, cansado de ver gente sendo presa, humilhada e torturada injustamente e sem ter acesso à informação do que acontecia nos altos escalões do governo militar começou a perceber que alguma coisa estava errada e, então, foram para as ruas pedir o direito de eleger os seus governantes. O processo durou muitos e muitos anos e, com o nascimento da “democracia” no país, após séculos de ditaduras, o Coiso, que nunca aceitou a derrota moral da milicada ficou se remoendo por dentro. Então, ele permaneceu ali, pelo Exército, ganhando a sua graninha até que descobriu uma forma mais fácil de ganhar mais dinheiro: a política. Não hesitou e virou vereador de uma das maiores cidades do Brasil e, então, percebeu que poderia dar pulos mais altos no meio daquele monstro de milhões de cabeças não muito pensantes chamado povo. Elegeu-se deputado.
Durante 27 anos apresentou 170 projetos e só dois foram aprovados.
Não se preocupava muito com isso, afinal, estava recebendo o seu pomposo salário e tendo todas as regalias que um deputado tem, inclusive recebendo auxilio moradia tendo uma casa própria que, segundo ele, era usada para comer gente. Ainda cuspia na cara dos eleitores dizendo em entrevista que “o Congresso Nacional não serve para nada”. Mas, como bom filho do Capeta, continuava lá, ganhando o seu em Brasília. Defendeu que o Brasil fizesse uma guerra civil para matar pelo menos uns 30 mil. E se morressem uns inocentes, isso ia fazer parte da guerra. Afinal, já viu filho do Capeta ligar para a vida humana? Comparou negros a bois, não teve papas na língua para chamar alguns deles de vagabundos, bem como usou o mesmo adjetivo para xingar uma colega de legislativo: vagabunda. Disse que não contrataria mulher, se fosse empresário, porque elas engravidam. Afirmou em programa de TV que o seu sangue é diferente do sangue de um homossexual. Em outro, falou que não corre o risco de ver seus filhos namorarem uma negra porque ele os educou bem. Também disse que ser homossexual é falta de surra dos pais. E, para completar, em uma entrevista - quando já tinha se transformado em Bozo, o candidato - afirmou que o Brasil não tem dívida histórica com os negros e que os portugueses nunca pisaram na África para escraviza-los. Temos, então, o Coiso transformado em Bozo.
O Bozo adaptou-se ao espetáculo. Deu voz a muitos outros, que encontram nas redes sociais uma forma de amplificar os seus discursos fascistas. Alguns são ingênuos e o enxergam como um salvador da pátria. Outros são seus irmãos, igualmente filhos do Capeta (o Capeta não é fácil, ele gosta de sair por aí traçando mãezinhas inocentes). E outros são burros mesmo. Diversos encontram no Bozo um espelho de seu próprio caráter: também são racistas, machistas preconceituosos e criminosos, igual ao coronel Ustra, o mais sanguinário e psicopata militar brasileiro da ditadura militar, que torturou mulheres na frente dos filhos e prendeu crianças de 5 anos dizendo que elas eram comunistas (o grande ídolo do Bozo). E, uma grande parte (talvez a maioria) deles tem problemas cognitivos.
Os estudos de cognição preveem que o sujeito forma mapas mentais para interpretar as mensagens que recebe. Assim, ele precisa ter memorizado algo para decodificar os seus códigos. Um exemplo bem raso: se você perguntar para um morador de Xangai como faz para ir do ponto A ao ponto B na cidade chinesa, ele vai lhe indicar o caminho sem pestanejar. Já você, não vai ter ideia do que fazer sem a ajuda dele. Tudo porque, no cérebro desse morador de Xangai, ele tem os códigos necessários para decodificar tal mensagem. Simples, não? No caso dos eleitores do Bozo, a grande maioria, nunca leu nada sobre a escravidão no Brasil e no mundo, nunca pegou um livro sobre a Segunda Guerra Mundial, nunca leu nenhum romance crítico sobre a sociedade (como 1984, Revolução dos Bichos, O homem invisível, Cem anos de solidão, Nada de novo no front, Cale a boca jornalista, Incidente em Antares e muitos outros). Então, eles não têm a capacidade cognitiva para associar o Bozo com o fascismo, com o nazismo e com todos os regimes autoritaristas e opressores que existiram até hoje, inclusive os de esquerda. Pois assim como o nazismo e o fascismo foram de direita, o comunismo de Castro e a ditadura de Mao Tse Tung são igualmente abomináveis. Inclusive, creio que nem o Bozo tem aparato cognitivo para interpretar isso.
Pois o Coiso, transformado em Bozo, tornou-se o palhaço do espetáculo. As massas estão adorando. Principalmente a classe média-alta masculina, branca e com curso superior que partilha da lei de darwinismo social: as coisas são como são porque tem que ser assim. A lei do mais forte. Quem pode, pode. Quem não pode, se contente com o que tem e não atrapalhe os “cidadãos de bem”. Que de bem não tem nada, pois são representados pelo filho do Capeta. Um posa de machão, mas adora pular a cerca com outros homens. Outro tem filho fora do casamento que não assumiu. Outro bate na esposa e nos filhos. Outra é racista e ensina para o neto piadas contra negros. Outro bebe, enche a cara, cheira cocaína, mas quer um policiamento mais ostensivo (sem saber que é exatamente ele o tipo que vai para o camburão). Outro trabalhou em obras federais e reformou a própria casa “pegando” um pouco de material por dia sem ninguém saber.
Outra nasceu em berço de ouro e defende o estado mínimo, mas sempre foi sustentada pelos pais... e por ai vai...
O Bozo logo achou seus pares. Aliás, apenas caricaturas de artistas lhe apoiam: Alexandre Frota, Felipe Melo, Ronaldinho Gaúcho, Ratinho, apenas figuras públicas que não primam pela sua capacidade intelectual. São filhos da avareza cognitiva: a tendência do ser humano de buscar soluções simples para tudo. E o brasileiro é especialista nisso. Há problema com a violência? Arma-se a população. As mulheres ficam grávidas e não podem trabalhar? Não se contrata mais elas ( elas que voltem para a cozinha). Os negros estão reclamando que seus antepassados foram sequestrados em massa da África para fazer trabalho escravo em outros continentes? Eles que voltem para lá. E assim por diante. Essa é a mentalidade da massa espectadora e seguidora do Bozo, o Coiso ou, simplesmente, o Filho do Capeta.