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sexta-feira, 29 de setembro de 2023

O estrangeiro


 Acabei de ler há poucos minutos “O estrangeiro”, do escritor franco-argelino Albert Camus. É o primeiro livro que leio de Camus, considerado por alguns como o autor da literatura francesa mais lido no mundo (é o que diz na “orelha” da obra, que tem apenas 126 páginas, publicado originalmente em 1942). Mas, vamos ao que interessa.

O estrangeiro é uma narrativa em primeira pessoa escrita na voz do personagem Meursault, um funcionário de escritório que vive na Argélia. Eu diria que Meursault mistura um pouco de estilo niilista com um pragmatismo cético e ateísta. Em outras palavras, quando comecei a ler o texto, fiz a seguinte comparação: trata-se de um Bukowski, mas sem a parte da bebedeira, dos palavrões e da putaria. O astuto leitor pode se perguntar: mas o que seria do Bukowski sem a bebedeira, os palavrões e a putaria? Eis a resposta: seria o próprio Meursault. Ou seja, a forma de encarar a vida e os fatos são semelhantes. A diferença é que o Bukowski completa o vazio do significado da existência com sexo, palavrões e putaria, enquanto que Meursault fica mais na dele mesmo.

Antes de seguir falando do Meursault, vou dar um resumão do enredo, sem contar o final, até porque Camus consegue deixar o leitor curioso sobre o desfecho até as últimas páginas e eu seria um grande filho da puta se desse esse spoiler. A história começa com Meursault partindo para o velório da mãe dele, que faleceu no asilo onde vivia. Ele a mandou para lá, pois não tinha mais condições de sustentá-la. Ao voltar do velório, ele sai com uma mina que ele era afim, vai ao cinema assistir a uma comédia, e depois ajuda o vizinho dele a dar uma lição na amante (uma surra, diga-se de passagem). Mais adiante, ele vai ao almoço do amigo em uma casa na praia e leva Marie, que em poucos dias se torna sua namorada, junto. Uns árabes seguem para acertar as contas sobre a surra que o amigo deu na irmã de uma deles. Eles se encontram com os árabes na praia e, depois de uma série de acontecimentos que demandaria muitas linhas para contar, Meursault mata o árabe. Fim da primeira parte.

A segunda parte é baseada na prisão e julgamento de Meursault, até a leitura da sua sentença, que não vou contar aqui qual é para não irritar o nervosinho leitor. E, ao final há uma série reflexões do personagem, que também não vou antecipar, pois seria impossível fazer isso sem entregar o final do romance (ou seria novela?). Uma das graças da segunda parte é que, o que era para ser o julgamento sobre o assassinato do árabe, acaba se transformando no julgamento da indiferença de Meursault sobre a morte da mãe dele no asilo.

E, então, podemos voltar para o início para fazer algumas considerações sobre essa narrativa, escrita quando Camus tinha apenas 29 anos e considerada por muitos (novamente a “orelha”) como a principal obra dele.

Pois, para isso, volto ao Bukowski. Eu tinha lido (e visto vídeos) com comentários sobre esse início da narrativa, mas acho que ninguém havia descrito o sentimento que eu tive ao ler tais linhas: eu achei um tanto quanto cômico. Achei engraçado o Meursault indo de ônibus para o enterro, indiferente sobre a partida da velha, e reclamando do cansaço e do calor. Assim como, na primeira página, achei hilária a passagem em que ele pede dois dias de licença para ir ao enterro da mãe, justificando que “com uma desculpa destas, ele não podia recusar” (p.13). A descrição sobre o velório e o enterro no asilo também me divertiram. Como disse, parecia um Bukowski são, de mau humor por estar sem bebida e sem sexo em uma tarde quente no norte da África. Aliás, Meursault é um sujeito fora do lugar o tempo todo, sem entender muito bem o que está fazendo no mundo. Ele se surpreende, por exemplo, quando termina o velório e os velhinhos vem lhe dar os pêsames. “Ao saírem, e para grande espanto meu, vieram todos apertar-me a mão como se esta noite, em que não havíamos trocado uma só palavra, tivesse aumentado a nossa intimidade” (p.21).

As descrições metafóricas também são um ponto alto do clássico, pois ajudam a visualizar as cenas, mas até para isso Camus apresenta um humor fino. Um exemplo é quando ele descreve o carro fúnebre: “envernizado, comprido e reluzente, me lembrava um porta-canetas. Ao lado dele estava o agente funerário, homenzinho de roupas ridículas, e um velho com um ar constrangido” (p.23).

A descrição, com tom de indiferença em relação ao fato principal (que seria a morte da mãe) dá esse tom ao mesmo tempo bizarro e filosófico sobre a cena toda. Meursault é, antes de tudo, um sujeito anti-social ao extremo. Na página 29, por exemplo, ele não vai almoçar no restaurante onde sempre almoça “porque, com certeza, me fariam perguntas, e não gosto disso”.

Já na página 31, ao ler toda a descrição do narrador sobre a cidade, eu me senti assistindo a um programa do National Geographic sobre animais selvagens, pois Meursault descreve tudo como se não fosse parte daquela sociedade ou sequer da mesma espécie. “Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram na rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes tinham gestos mais decididos do que de costume, e calculei que haviam visto um filme de aventuras. Os que regressavam dos cinemas do centro, chegaram um pouco mais tarde. Pareciam muito sérios”. E assim segue.

A porra toda aconteceu na quinta e na sexta-feira, o que deixou o patrão dele puto, pois assim ele teve quatro dias “de folga”. Ao voltar, porém, ele oferece uma vaga em Paris, mas a falta de ânimo de Meursault diante da notícia acaba decepcionando o boss. A descrição indiferente e crítica feita sobre os vizinhos do personagem também são divertidas. Um dos personagens apresentados é Emmanuel e o seu velho cachorro, que passeiam juntos há anos e todos os dias repetem a mesma cena: Emmanuel, um velho meio caduco, passeia com o cusco e xinga o animal o tempo inteiro de imundo e nojento. A situação de escassez financeira do personagem, aliado a sua preguiça, também me fez lembrar os meus tempos de faculdade. Em certa cena, um vizinho o convida para jantar, e Meursault aceita, concluindo: “pensei que isso me pouparia fazer minha comida e aceitei”. Depois, quando o vizinho pergunta se Meursault quer ser seu amigo, ele responde que “tanto faz”. Aliás, esse é um dos pontos mais destacados nas críticas que li previamente sobre o livro: “tanto faz” era a resposta preferida de Meursault. “Tanto fazia ser ou não amigo dele, e ele parecia realmente ter vontade disso” (p.40). A mesma resposta o personagem dá para Marie, o caso/namorada dele, quando ela pergunta se ele quer casar. “À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar” (p.48). É óbvio que ela ficou puta. Da página 53 até a 64 é narrada a cena do assassinato desde o início e, então, começa o capítulo 2, com o julgamento.

Mas aí já é outro assunto, que se me der la gana, futuramente volto para escrever. Caso não volte, na edição que comprei, sublinhei as partes interessantes para caso algum dia eu queira recuperar as cenas que a minha precária massa cinzenta tiver apagado. Mas o resumo é aquele que já mencionei: vão julgá-lo pelo assassinato, mas o foco na fala do defensor público e do promotor acaba sendo a indiferença de Meursault sobre o mundo e os outros, especialmente no que diz respeito à morte da mãe, além do seu ateísmo declarado.  

Hasta! 

 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Nada será como antes – I’m back – Again!

 


Estou de volta neste abandonado canal, um ano e meio depois da última postagem. Tudo porque, depois de ler a biografia do Lula, li alguns livros e acabei não resenhando em lugar nenhum. Apenas escrevi brevíssimos comentários na minha coluna do Diário Popular, de Pelotas. Assim, como percebi que alguns livros que li há cerca de um ano eu já mal recordo a história e os personagens, lembrei que esse espaço tem como principal finalidade fazer resenhas públicas dos livros que leio para consultar anos depois, quando minha massa cinzenta já tiver deletado a porra toda do meu cérebro corroído pelos anos de uso e pelo álcool.

Bom, sem mais delongas, acabei de ler outra biografia: Nada será como antes, sobre Elis Regina, escrita pelo jornalista Julio Maria. Antes de falar da obra, conto rapidamente como cheguei nela. Certa madrugada, depois de muitos latões de cerveja, estava ouvindo no youtube “Como nossos pais”, da Elis, quando pensei: “meu, essa mulher é foda”. Tomei mais um gole e completei: “Deve ter tido uma vida do caralho!”. E então, eu pesquisei no Google uma boa biografia sobre Elis. No dia seguinte, acordei e levei minha vida normalmente, até que recebi um e-mail da Estante Virtual dizendo que meu pagamento havia sido aprovado. “Como assim, pagamento?”, perguntei a mim mesmo. “Caralho, clonaram meu cartão!”. Abri o e-mail, apavorado, mas tomei um susto ao ver que eu, de fato, havia encomendado a biografia da Elis Regina, “Nada será como antes”, com pagamento à vista, por 90 reais, às 4h30 da madrugada. Puta que pariu, preciso parar de beber.

Enfim, o livro chegou e acabei lendo todas as suas 417 páginas. O investimento acabou valendo a pena, pois, de fato, a biografia da Elis é foda pra caralho. O livro, inclusive, é como a vida da Elis: cheio de altos e baixos. Os pontos mais altos, na minha humilde opinião, é o início e o fim, com a narração dramática da morte da cantora. Ali, realmente Julio Maria conseguiu fazer a narrativa “cena a cena” do New Journalism, lembrando, além dos jornalistas literários americanos, os grandes biógrafos brasileiros, tais como Fernando Morais e Ruy Castro. Nestes dois trechos, o texto que te transporta para o apartamento da Elis, para o seu último dia de vida, etc e tal. Mas o miolo do livro, que efetivamente narra a carreira de Elis, varia entre outros momentos em que você se sente ao lado dela na sua vida vivida andando sempre a 200 por hora, e contações de histórias de bastidores da Música Popular Brasileira, algumas maçantes e que não acrescentam muita coisa ao principal, que é a vida de Elis.

Eu até entendo o Julio Maria, porque ao final do livro tem a lista de todas as pessoas entrevistadas e, tenho certeza, ele deve ter ficado tremendo de êxtase ao ouvir cada uma delas. Só que algumas histórias acabaram não acrescentando muita coisa à narrativa como um todo. Enfim, críticas à parte (que nem tenho moral para fazer, afinal, o cara fez a biografia de uma das maiores cantoras da história do Brasil entrevistando um monte de lendas vivas da cultura brasileira), o que interessa para o eu do futuro é: afinal, quem foi Elis Regina? Vou pontuar algumas impressões que tive, lendo a obra.

1)   Elis Regina, enquanto pessoa, é o que hoje seria considerada alguém clinicamente doente, com uma bipolaridade extrema. Como eu convivi durante anos com pessoa portadora dessa doença, sei que não é fácil. Só de ler determinadas histórias da artista, tive calafrios. Pensei: caralho, eu não gostaria de ter conhecido ela pessoalmente. Não vou descrever a doença, mas, em toda a narrativa, percebi ela na vida de Elis. É aquela coisa de enlouquecer todos que estão ao seu redor para fazer com que TODOS se sintam igual a você: quando estou feliz, todo mundo tem que estar feliz; quando estou puto, todo mundo tem que estar puto, não importa se você ganhou na megasena ou acabou de ter um filho; quando estou deprê, todo mundo tem que ficar deprê. Na boa, nem se tratando de Elis Regina eu viveria um inferno desses de novo.

2)      Como bipolar, ela vivia tudo intensamente. Se ficava brava com o marido/namorado buscava nos braços de outro algo que sentia falta. Depois, se arrependia e fazia o inverso: destratava o amante e caia nos braços do marido. Traia e era traída. Tinha ciúmes e sofria pelos ciúmes dos outros. Enfim, tudo vivido com o pé no acelerador, numa montanha russa de emoções que, com uma pitadinha de elementos químicos faria tudo ir pelos ares.

3)      Na biografia escrita por Julio Maria, repórter especializado em música, senti falta de “romantizar” mais a infância, fazendo a narrativa cena a cena para alguns episódios. A infância/adolescência é contada mais por cima, talvez porque não tivesse tantas fontes para descrever detalhes de certos episódios. Mas aí acho que ele poderia ter liberado a veia ficcionista e criado mais em cima do que ouviu. Apenas compartilho aqui um palpite que me ocorreu enquanto lia. Por outro lado, outros episódios não tão importantes receberam páginas e páginas, tornando alguns trechos da leitura monótonos, por mais que a história fosse sempre acelerada.

4)      O legal de ler hoje em dia, com a internet, é poder ler sobre a história de uma música ou de um show e ir buscar lá no youtube. Um exemplo foi quando li a boa história da gravação de Elis Regina com Tom Jobim nos Estados Unidos e, ao concluir esse trecho, catei vários vídeos dos dois artistas cantando músicas como “É pau, é pedra” no estúdio ou em shows e por aí vai.

5)      Agora, para alguém como eu, que peguei o livro para ler apenas sabendo que Elis era uma lenda da música nacional e que havia morrido de overdose, há a curiosidade de saber como era essa relação dela com as drogas. E aí vai um pequeno spoiler: o livro inteiro praticamente não fala disso. E o motivo é bem simples: durante a vida toda, ela detestou qualquer tipo de droga, com exceção da bebida, mas no seu último ano de vida, ela começou a usar cocaína. E aí é a fórmula perfeita para a tragédia: um bipolar em grau máximo, sem tratamento psiquiátrico, bebendo e usando cocaína. É como ver um sofá pegando fogo e atirar um galão de gasolina para tentar apaga-lo. Explodiu tudo e a tragédia foi certa.  

6)      O fim do livro, com as últimas 24 horas da Elis, é espetacular, mas me fez pensar que, de fato, o ser humano não sabe lidar com relacionamentos. Não sei é justo dizer isso, mas a misturança de drogas e álcool que a levou ao óbito surgiu da imaturidade de dois adultos de lidar a temática. Para piorar, como quase sempre, quem mais sofrem são os filhos, no caso, três, na época, de quatro a onze anos.

7)      Sobre política, há trechos interessantes. A questão da ditadura militar e todo o seu absurdo aparece de maneira marcante, pois inicialmente Elis foi acusada pela esquerda mais militante de ser “chapa branca” com os milicos, porém, depois, ela se engajou a tal ponto de ter um dossiê detalhado sobre a sua vida no DPOS, além de ter sido ameaçada por militares. O capítulo 19 também mostra que ela queria contar as feridas sociais nas suas músicas e descreve, na página 323, como ela conheceu o presidente Lula e sobre como ambos se identificaram um com o outro. Lula, inclusive, esteve no velório de Elis Regina, lamentando a morte da cantora.

Enfim, há outros pontos diversos, mas estou fora de ritmo e por hoje deu. Se me der la gana, futuramente volto aqui para comentar mais.