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sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Para te comer melhor

Devia ser uma noite fria de agosto, como essa de hoje, há quase 15 anos. A aula acabou e eu e meu amigo e então colega de faculdade, Tiago Beck, atravessamos a rua e nos dirigimos à pastelaria/bar do outro lado da rua para tomarmos umas. Como quase sempre, o Aranha estava lá (já escrevi outros textos sobre ele nesse blog). Encontrava-se solitário numa mesa, lendo um livro, bebericando um copo de cerveja. Ao nos ver, puxou as cadeiras para sentarmos com ele. Lembro como se fosse hoje da minha pergunta, pois àquela altura eu já era um devorador de livros e o nosso gosto em comum por Bukowski era um dos fatores que havia nos aproximado.
- Que tá lendo? – perguntei.
- Para te comer melhor.
Rimos. Ele mostrou a capa e lá estava estampado: Para te comer melhor.
- Sobre o que é?
- Sobre tudo – ele respondeu, fazendo um gesto vago com as mãos.
Aquele título ficou na minha mente esses anos todos. Naquele tempo não tinha as facilidades do Google. Se você quisesse consultar no acervo da biblioteca da universidade ou encomendar um livro, você tinha que ir até a biblioteca ou até a livraria. O tempo passou, o Aranha nos deixou pouquíssimo tempo depois, mas o “Para te comer melhor” ficou gravado na minha mente. Sobre que seria essa história? Seria um estilo bukowskiano? Seria um romance pornô? Ou uma narrativa autobiográfica?
Então, de um tempo para cá, eu frequentemente pensava: tenho que checar na internet esse livro, ver quem é o autor, etc. Até que, um dia desses, mais de 10 anos depois da nossa conversa no bar, eu finalmente pesquisei no Google e descobri que o autor é Eduardo Gudiño Kieffer, um escritor argentino que começou a sua carreira na literatura nos anos 1960. E, tempos depois, procurando algo interessante para ler, finalmente eu fui até o site da Estante Virtual e encontrei diversos exemplares em língua portuguesa de edições dos anos 1970 e 1980 para venda. Paguei algo em torno de cinco reais mais o frete (que ficou em torno dos sete reais). Veio uma edição de capa dura, preto e branco, sem ficha catalográfica e sem qualquer indício de que ano foi publicada. Coloquei o livro na minha fila de leituras futuras até que, depois de terminar o “Viajando, viajando”, eu resolvi descobrir, finalmente, do que se tratava o Para te comer melhor.
Pois se trata de um livro sobre tudo, como bem tinha me avisado o Aranha naquela noite fria de agosto. É um puta livro sobre Buenos Aires e a Argentina dos anos 1960, com a contracultura, os ideais hippies, a perseguição ao comunismo e tudo o mais, sobre a vida, sobre romances fugazes e vidas intensas e breves (como foi a do Aranha). Enfim, é um livro foda e de fôlego. Trata-se de um romance fragmentado com uma linguagem altamente poética e literária. Se você é um apaixonado por literatura-cabeça, leia. Já se você é um leitor de best-seller, não force muito seu cérebro, pois vários de seus neurônios explodirão. É um daqueles livros que você precisa superar as 20 ou 30 páginas para começar a associar os personagens e a linkar as histórias, mas depois que você faz isso, a leitura fica muito prazerosa (a exemplo do que acontece com vários livros de García Márquez e Shakespeare, por exemplo).
Vou dar um resumão do enredo, apesar de que o enredo, na verdade, fica em segundo plano na narrativa. O que mais conta, nesse livro, são as ideias e a linguagem. Enfim, concluo hoje que é uma obra com a cara do Aranha: cheia de energia, de vida, de frases longas lançadas emocionalmente no papel, como que cuspidas por um poeta bêbado em uma noite inspirada no bar que a gente estava naquela noite fria de agosto.
Mas vamos ao resumão: a história conta com quatro personagens principais, todos eles jovens, na casa dos 19 anos, cheios de vida, de sonhos, de planos, de curiosidades, de rebeldia, etc. Sebastian é o personagem principal, dentre os principais. Ele tem um caso com Ana, mas é um caso não explícito, uma espécie de namoro não assumido. Sebastian tem dois amigos imaginários: Merdalhim e Merdalhão. Merdalhim é tipo o anjinho e Merdalhão o capetinha – como os que aparecem nos desenhos animados de Tom e Jerry. Além disso, ele tem uma namorada imaginária: Cecília (pelo menos eu entendi que é imaginária...) – que seria a musa dos sonhos dele e, justamente por isso, só existe em seus sonhos.
Já Robbie é amigo de Sebastian: judeu e de esquerda, tem uma cena bizarra com Dona Amparito (a gorda dona do apartamento onde mora o personagem principal) em que fica ilustrado o preconceito bolsonariano que se tinha na época contra judeus e contra qualquer um que apresentasse alguma tendência a ter ideias de esquerda (como no Brasil daquele tempo e de hoje, todos eram facilmente rotulados de comunista e, consequentemente, perseguidos). Por fim, a última personagem principal é Flor de Irupé – uma moça ingênua que saiu do interior com um canário numa gaiola para tentar se tornar uma cantora famosa em Buenos Aires. Aliás, a capital argentina é o palco onde tudo acontece. Para quem gosta de Buenos Aires, esse é um romance imperdível, pois são frequentemente mencionados praças, lugares públicos, ruas, bares, bairros, além de personagens históricos, como Perón e Evita.
Ana acaba “adotando” Flor de Irupé, mas Robbie a “rouba” para viver com ela. Então, a história passa a ter dois casais totalmente diferentes: Robbie e Flor de Irupé totalmente apaixonados resolvem encarar a vida juntos, enquanto Ana ama Sebastian que continua com ela, mas sem muita vontade. De pano de fundo, há todo o contexto histórico e cultural argentino do período; a mãe dondoca de Sebastian que tenta lhe arranjar uma namorada patricinha; a família de Robbie que odeia Flor de Irupé (dentre outras coisas, por ser indígena) e também quer que ele se case com uma judia de linha; Gardel, o canário de Flor de Irupé; o Cabeleira, um sujeito que vai apresentando a sua história brevemente ao longo do romance e que vai se ligar com os demais personagens apenas no final da narrativa; Romeo Tavares, um sujeito jovem que foge do presídio e que é acolhido por Sebastián, demostrando as diferenças entre um sujeito rebelde de família rica e um cara pobre que frequenta casas de detenção desde a infância, e por aí vai... Ou, como disse o Aranha, é um livro sobre tudo. Sobre a vida, sobre a morte, sobre o amor, sobre amizade, sobre vingança, sobre sentimentos, enfim, sobre everything.
E, como disse antes, é um livro que é a cara do Aranha, pois trata de pessoas de alma poética, inquietas, curiosas, rebeldes, apaixonadas e em uma cidade cheia de personalidade. Pessoas que tem o mesmo estilo daquele sujeito que estava sentado numa mesa de bar numa noite fria de agosto e que, mesmo morando em um país que, culturalmente falando, não olha para nada além de suas fronteiras e do hemisfério norte, consegue encontrar uma pérola literária como essa. Uma peça que, talvez, um dia ainda sirva para te comer melhor.