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sábado, 25 de janeiro de 2020

De Los Angeles para Araçá


Nessa semana, viajei de Los Angeles, na Califórnia, diretamente para Araçá, no litoral norte do Rio Grande do Sul. Fiz a viagem sem pegar carro, trem, avião ou ônibus. Simplesmente desembarquei em uma noite qualquer do livro “O caminho de Los Angeles”, de John Fante, para “O melhor lugar do mundo é aqui mesmo em Araçá”, do gaúcho Sérgio Stangler. Fante cria em seu romance um personagem completamente maluco, megalomaníaco e egocêntrico. Já no livro de Stangler, a megalomania está apenas no título. Mas, como conversei com o Sérgio nessa semana, um pouco de megalomania e egocentrismo às vezes faz bem. Aliás, vez ou outra concluo que falta um pouco disso nos nossos autores contemporâneos: por isso é tão difícil achar novos Bukowsks, Thompsons, Kerouacks, Nietzches, Kants, etc. Humildade é bom, mas às vezes também é válido deixa-la um pouco de lado para colocar os colhões para fora, esfregando-os na cara do leitor. E, por isso, começo falando justamente sobre o livro de John Fante.
“O caminho de Los Angeles” não é um livro para fracos. Escrito nos anos 1930, quando Fante tinha pouco mais de 20 anos, ele é agressivo, preconceituoso e megalomaníaco. Porém, o tom cômico e caricatural do personagem nos faz rir vez ou outra, afinal. Arturo Bandini, o personagem principal, julga-se um gênio, o melhor escritor do mundo e um artista em construção que vive em Los Angeles nos anos 1930, trabalhando em subempregos (o principal é numa fábrica de peixes) para sustentar a irmã (que quer ser freira – e que é ferrenhamente zombada por ele) e a mãe (igualmente vítima do egocentrismo e do cinismo cruel do filho). O machismo dele em relação as duas é evidente. Em determinada cena, por exemplo, a mãe de Bandini pede uma explicação sobre uma frase complicada, ao que ele a olha de soslaio e sentencia: “você não entenderia, não passa de uma mulher”. No entanto, com o passar das páginas, você vai vendo que há algo de muito quixotesco em Bandini. Em outra cena, quando ele está massacrando caranguejos no praia com uma espingarda, ele diz ser o führer dos caranguejos. Uma frase dessas é quase impensável de ser dita hoje, porém, em 1930, antes da Segunda Guerra, demonstra como os americanos já sabiam desde cedo sobre o nazismo e o seu autoritarismo sanguinário. Porém, mais para o final do romance, quando ele resolve assustar um comerciante, Bandini mente que é um agente comunista a mando dos russos. A verdade é que o personagem é completamente megalomaníaco e cômico.
Ele se apaixona pelas mulheres de anúncios de revista e se esconde no guarda roupas da mãe com uma vela para “namorar” elas às escondidas. Ele ama profundamente cada uma delas, e a descrição desse amor é ao mesmo tempo intensa e bizarra – para não dizer doentia. Enfim, são várias cenas completamente inimagináveis nos dias de hoje que diversas vezes fazem você se pegar rindo da falta de noção do personagem. Aviso, porém, que há várias cenas com posturas racistas e machistas de Bandini, mas que, de certa forma, só tornam o personagem mais ridículo e fracassado (ok, não tanto quanto o nosso desprezível presidente, pois Bandini pelo menos tinha bagagem intelectual com 20 anos, coisa que o nosso mandatário tupiniquim não tem estando praticamente com os dois pés na cova...). Em síntese, é um livro para ser lido como entretenimento, pois não é nada “utilitarista”.
Aliás, esse foi um dos pontos que conversei com o Sérgio Stangler, autor dos livros citados nessa coluna em outros momentos: “Viajando, viajando” e “A penúltima fronteira”. Poucas pessoas pegam livros para ler simplesmente por prazer. Digo isso sem nenhuma base científica, mas às vezes tenho a impressão de que as pessoas só querem ler/assistir coisas que tenha alguma utilidade prática e imediata para as suas vidas. Daí o sucesso, por exemplo, de livros de autoajuda e manuais do tipo “como ficar rico em um mês”. Às vezes também lemos romances históricos ou que retratam um momento importante da humanidade. Eu, particularmente, adoro esses livros. Mas também gosto daqueles que te dão prazer apenas por conter boas histórias e, principalmente, nos fazer rir. Por isso não abro mão de Woody Allen ou Shakespeare, por mais escrotos que eles possam ter sido em suas vidas pessoais. É a leitura e a literatura como entretenimento e passatempo (um passatempo que, no fim das contas, acaba sempre nos sendo útil no longo prazo, mesmo que inconscientemente).
Assim, chego agora a Araçá. O livro “O melhor lugar do mundo é aqui mesmo em Araçá” é uma coletânea de crônicas de Stangler. Na verdade, são sete crônicas deliciosíssimas de ler divididas em 39 páginas. É uma leitura rápida e prazerosa. Eu li as três primeiras ontem de noite, balançando-me na rede que fica na frente da casa de meus pais, em Xangri-lá, e terminei hoje de tarde, sentado em uma cadeira de abrir de frente para o mar tomando latão de Heineken. Quando disse que iria escrever sobre o livro, o Sérgio sugeriu um título: “As crônicas que o Bukowski escreveria se fosse brocha”. É um puta título. Aliás, tanto ele, quanto o velho Buk são ótimos com títulos (coisa para a qual eu sou péssimo). Bukowski dizia que deu o título de um de seus livros de “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio” apenas porque achou que era um bom título para ser visto na vitrine de alguma livraria qualquer, pois as histórias dessa obra não se relacionam em nada com capitães ou marinheiros. E o Sérgio criou capítulos como esse: “Um estudo poético-científico baseado na observação dos pilares da antiga guarita de salva-vidas de Araçá”. Mas, se os títulos são bons, os textos são melhores ainda. Tem aquele tom típico de conversa fiada da crônica, porém, são textos que te prendem, pois parece que o autor está conversando contigo a cada linha, sempre com uma adequada dose de bom-humor.
Eu me identifiquei com diversas das reflexões apresentadas por Sérgio Stangler. Ele conta desde como encontrou uma casa no final de uma rua deserta em Araçá (praia de Capão da Canoa-RS) para transformá-la praticamente em um país independente do Brasil, mais ou menos como fez o personagem de “Um exército de um homem só”, do Moacyr Scliar. Quando você cruza o portão da casa, você realmente se sente como se estivesse entrando em outro país. A vantagem desse país é que o visto é carimbado pelo próprio Stangler e, se você for bem-vindo, tem comida boa e cerveja gelada. Lendo o livro depois de duas visitas a Araçá (uma feita no ano passado e outra nesse ano), eu ainda fiquei sabendo da história dos cachorrinhos que lá vivem, adotados por Stangler e pela esposa.
Um deles, inclusive, é o mais rápido do Velho Leste (cão da foto). Os nomes dos caninos também são sugestivos: a cadelinha Praia e o cusco Molusco. A Praia faz um barulho estranho para respirar que me deixou preocupado algumas vezes, fazendo com que volta e meia eu perguntasse para o Sérgio: “esse barulho é normal?”, mas é um ronco típico da raça (que agora eu não lembro e estou com preguiça de procurar no livro, pois o sono está batendo). Ah, e sugiro que a leitura seja feita – se possível – na praia, de frente para o mar, pois o oceano e as dunas são alguns dos temas principais dos textos. O Sérgio conta, por exemplo, que gosta de acordar cedo e caminhar na praia ainda deserta, catando conchas. Já eu, também adoro caminhar sozinho à beira mar – às vezes caminho por duas ou três horas – mas ainda estou na fase noturna, ou seja, durmo e acordo tarde. Funciono mais de noite e penso que nunca vou mudar. Hoje, por exemplo, acordei “cedo” para ver a final da Copinha (argh!) e agora, meia noite e quarenta e sete, estou caindo de sono. Em dois ou três dias volto ao normal: dormir às duas ou três da madrugada para acordar às onze horas ou meio-dia. Gosto de ler, pensar, imaginar, sonhar acordado, respirar, escrever, trabalhar, conversar, etc, à noite. Ou, pelo menos, depois das 18h. De manhã – quando estou acordado – não funciono.
Enfim, há inúmeros tópicos interessantes que o Sérgio Stangler traz para o leitor e cada um deles mereceria inúmeras reflexões. É um livro prazeroso e que faz pensar, e isso é o que pode haver de melhor em um livro. No entanto, como disse, estou com sono.
Não sei como você, imaginário leitor, pode adquirir o livro, mas presumo que pode falar diretamente com o Sérgio (só procurar ele no Facebook – foi de lá que roubei as fotos para o post). Certamente, depois que terminar esse texto, vou lembrar vários outros pontos que pensei em escrever e que esqueci, assim como depois que gravamos uma hora de entrevista para ir ao ar no meu programa sobre literatura na Federal FM, de Pelotas, assim que cheguei em casa, recordei de diversos tópicos que eu queria ter abordado e que acabaram se perdendo na conversa e nos copos de cerveja. Sim, meus alunos, eu não fiz o que aconselho para vocês: anotar pelo menos alguns tópicos principais numa folhinha para não acontecer isso na hora de gravar uma entrevista... Mas foi bom igual e, fuck!, eu estou oficialmente de férias. Em breve, a entrevista (gonzo?) estará no ar.
Hasta!

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Americanah


O livro Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que acabei de ler hoje, tem méritos espetaculares e defeitos incomodativos. Na verdade, são dois temas que aparecem no romance – que se passa entre Nigéria, Estados Unidos e Inglaterra – e a minha crítica (uma positiva e outra negativa) está relacionada diretamente a esses dois temas.
Inicialmente tentarei dar uma pincelada geral sobre o enredo. A narrativa é em terceira pessoa, mas gira principalmente em torno da protagonista Ifemelu. Ela é nigeriana e leva uma vida comum de classe média no país africano, filha de uma mãe ultra religiosa e cheia de crendices e de um pai que tem um bom emprego até ser demitido por se recusar a chamar a sua chefe de “mamãe” depois de dez anos de casa. Vivendo no regime militar, que imperou após a guerra de Biafra nas décadas de 1980 e 1990, as universidades e a educação passam a ser sucateadas (algo familiar para você, nobre leitorinho tupiniquim?). Ainda no ensino médio, Ifemelu forma o seu grupo de amigos e, dentre eles, está Obinze. Ao conhecê-lo, é amor à primeira vista. Eles namoram e começam a fazer faculdade na Nigéria, porém, as greves sem fim com atrasos de salários para professores (a mãe de Obinze é professora universitária) fazem com que muitos jovens tentassem desesperadamente deixar o país africano, tendo como principal destino os Estados Unidos e a Inglaterra. O sonho de Obinze é morar nos Estados Unidos, no entanto, ele não consegue o visto após sucessivas tentativas e é obrigado a permanecer em solo nigeriano. Já uma tia de Ifemelu, chamada de Tia Uju, é uma dondoca que faz o que, segundo Chimamanda, é quase uma regra entre as mulheres na Nigéria: a busca por um homem que possa, primeiro, sustentar a mulher e, segundo, dar status a ela (seja a mulher oficial ou amantes).
Assim, tia Uju se torna amante de um importante general do governo. Ganha uma casa, carro e uma barriga, pois dessa relação nasce Dike. O general morre em um acidente aéreo (aparentemente criminoso) e a mulher oficial ameaça tia Uju, que se vê obrigada a deixar o país com o filho por questões de segurança. Ela vai para os Estados Unidos e lá se estabelece para recomeçar a vida. Diante das intermináveis greves na Nigéria, em um telefonema, tia Uju faz a seguinte proposta para Ifemelu: ir estudar nos Estados Unidos e ajudar tia Uju a cuidar de Dike, pois ela gasta muito com uma babá, morando no Brooklyn, em Nova York. Assim, Ifemelu – que fazia medicina na Nigéria – concorre a uma vaga em uma universidade americana, sem muita esperança de ser aprovada, mas acaba ingressando no curso de Comunicação em uma universidade na Filadélfia. Obinze, que a essa altura já namora seriamente com Ifemelu, dá todo o incentivo para que ela vá, pois ele planeja ir para os Estados Unidos fazer pós-graduação depois de formado: assim, eles poderiam viver felizes para sempre no sonho americano.
O conto de fadas de repente vira drama. E nesse ponto creio que é importante dizer que o romance é semi-autobiográfico: a personagem Ifemelu segue praticamente os mesmos passos que Chimamanda deu no trajeto Nigéria-Estados Unidos. Ao chegar aos Estados Unidos, primeiro Ifemelu se depara com uma tia Uju estressada, trabalhando em três empregos para conseguir se sustentar e tentando revalidar o diploma de médica. Segundo, ela percebe que em um país predominantemente branco a raça é algo ultra valorizado, em uma escala em que os negros estão na parte mais baixa da pirâmide social. Bom, não vou dar o spoiler sobre essa questão, pois para mim é a cereja do bolo. Então, seguindo com o enredo, Ifemelu chega a Nova York, onde fica um tempo morando com tia Uju até as aulas iniciarem na Filadélfia. Chegando lá, ela não consegue emprego de jeito nenhum. Qualquer pessoa que viveu fora do país vai se identificar muito com as impressões e comentários dela.
Ifemelu entra em depressão quando sucumbe a um anúncio para “massagem relaxante” publicada por um professor de tênis. Sem dinheiro para pagar a universidade e o aluguel, ela acaba fazendo o serviço por 100 dólares. Em seguida, ela é contratada como babá por uma família branca e rica de um bairro nobre e rompe completamente com Obinze, não respondendo mais as suas mensagens e e-mails, envergonhada pelo que fez com o professor de tênis. A vida segue, Ifemelu namora primeiro um branco descrito como ricaço e bonitão da família que a contratou como babá e depois namorou seriamente um professor universitário negro-americano e ativista. Enquanto isso, Obinze fica deprimido na Nigéria, sem saber o que aconteceu com sua amada, mas segue a vida: tenta a sorte ilegalmente na Inglaterra, de onde é deportado, acaba ingressando no mercado imobiliário puxando o saco de um manda-chuvas local, torna-se super rico e se casa com uma negra linda com o perfil descrito antes: religiosa, tradicional e que acha que a função da mulher no mundo é achar um homem bem sucedido para lhe sustentar enquanto ela “dá conta da casa”. O tempo passa e, 13 anos depois de partir para os Estados Unidos, Ifemelu resolve voltar para a Nigéria. A essa altura ela mora junto com o professor universitário, publica um blog super famoso que aborda questões raciais nos Estados Unidos, tem o green card e ganha um bom dinheiro com isso. Ao voltar para a Nigéria, depois de terminar com o namorado americano, ela se depara com um país completamente diferente daquele que ela lembrava e um Obinze casado e com uma filha. A partir daí tudo se torna um dramalhão digno das piores novelas mexicanas. Ponto.
Agora, chego aos pontos positivos e negativos. O grande, grandíssimo ponto positivo é toda a reflexão que Chimamanda apresenta com Ifemelu sobre a questão racial e de imigração nos Estados Unidos. Há vários textos postados no blog que ela reproduz e que, creio eu, são os mesmos que a própria Chimamanda escreveu na vida real. Isso pega o período da eleição do Obama, então, tem um puta contexto histórico, pois é engraçado e triste ao mesmo tempo ver os personagens pensando que os racistas tinham sumido e não eram mais uma ameaça sabendo que em seguida o Trump se elegeu e os nazi-fascistas saíram do armário nos Estados Unidos e no mundo todo. Creio que vale a pena ler o livro – apesar da crítica que vem em seguida – por essa questão e pelo desenvolvimento dos personagens secundários, pois a história de tia Uju, Dike e de outros amigos de Ifemelu seguem se desenvolvendo ao longo das mais de 500 páginas do livro. Outro ponto interessante é que, assim como quando ela chega aos Estados Unidos ela percebe que a raça é uma questão importante para definir a posição social das pessoas, com um racismo visível, ao retornar para a Nigéria ela percebe que ninguém liga para a cor da pele dela.
E, mesmo na África, o branco fica em uma posição social superior no imaginário popular, pois quando Obinze começa a investir em imóveis um sujeito mais experiente dá a dica: arranje um amigo branco para lhe acompanhar, pois dá mais credibilidade. Lendo relatos como esses eu percebi que a humanidade ainda está há anos luz de chegar próximo de um desenvolvimento humano minimamente aceitável.
E o ponto negativo, que para mim seria facilmente resolvido com uma edição, é o romance mega e ultra clichê e, principalmente, o seu final piegas. Chimamanda fez mestrado em escrita criativa em Baltimore e acho que ela quis colocar em prática uma técnica narrativa que, na minha humilde opinião, é batida pra caralho, mas que ainda dá certo com as massas: o romance dramalhão com final feliz. Talvez por isso o livro dela virou best-seller, mas particularmente, esse excesso de romantismo me irritou um pouco. Se tirasse toda a questão da reflexão social e racial e ficasse apenas no caso de Ifemelu com Obinze o livro seria um fracasso total. Além disso, há outros pontos um tanto incomodativos na narrativa de Chimamanda, pois ela avalia todos os outros personagens, apontando defeitos morais, porém, ela descreve um Obinze completamente perfeito.
E, outra crítica, é que quase todos os ciclos frequentados por ela, na universidade americana e na Nigéria, são formados por pessoas descritas como lindas e ricas, sejam brancos, negros ou de qualquer outra etnia. Fiquei imaginando um mundo sem pessoas feias, gordas ou com “defeitos físicos”, nem pessoas pobres e miseráveis. Ela faz algumas referências, mas todas feitas completamente do lado de fora, de quem observa ao longe, por exemplo, feirantes apanhando da polícia em Lagos. E, como sei que Chimamanda é feminista ferrenha, também chamou a atenção o fato como ela tenta justificar o romance perfeito de Ifemelu e Obinze quando ela volta para a Nigéria. Obinze está casado e tem uma filha, porém, enquanto Chimamanda descreve outros casos extraconjugais como a tradicional caricatura da mulher piranha burra e do homem safado e sem vergonha, os dois personagens são endeusados com seus pensamentos e sentimentos puros, ou seja, todo o resto do mundo é podre e não presta, menos os dois bonitinhos que tem um amor de conto de fadas perfeito! Ifemelu corre atrás de Obinze, mas não é apresentada como uma piranha que vai tentar roubar o homem da outra mulher que tem uma filha, e Obinze se encontra todos os dias com Ifemelu, mas não é desenhado como o cachorro sem vergonha, porém, outros personagens em situações parecidas são criticados severamente pela autora. E, o final (se você não quer o spoiler, pare de ler aqui) é extremamente irritante, pois ele deixa a esposa e a filha para ser feliz para sempre com a amante (fiquei pensando ao terminar: bah, que feminista, heim?!).
Olhem só essa cena, em que Obinze está viajando: “Na última viagem de Obinze para lá, um homem assim, que ele mal conhecia, havia olhado por um tempo para duas jovens na outra ponta do balcão e lhe perguntou casualmente: ‘você tem uma camisinha sobrando?’ Obinze se afastara, chocado”. Ah, vá! Pobre Obinze! Super ingênuo... Chocado com isso, mas traindo a mulher às escondidas... Até fiquei com pena dele, pobrezinho, tão puro num mundo tão sem vergonha... Resumindo, ela tentou simplificar uma situação extremamente complexa e impossível de ser resolvida com a mágica literária, que são as paixões extraconjugais. Para esse tema, fico muito mais com Philip Roth e Henry Miller. Ficou uma sensação de: se os outros fizerem isso, os outros não prestam, mas se for eu, ah! eu sou especial, intelectual e romântico, escolhido por Deus e pela natureza, então, comigo é diferente... O meu amor com o/a outra é diferente. Porra, cada caso é um caso!
Enfim, achei esse e alguns outros pontos bem hipócritas – por exemplo, a série de julgamentos que ela faz dos negros americanos e dos próprios africanos que deixaram o país, criticando, por exemplo, os que adotam o sotaque americano, como se isso fosse um defeito ou um desvio de caráter. Ah, e quando ela critica excessivamente praticamente todos os outros personagens por terem mudado com o tempo. Achei isso extremamente bizarro, pois as pessoas mudam, gracias ao bom senhor!
Enfim, teria mais umas dezenas de páginas para falar sobre a obra, pois ela traz inúmeros pontos para diferentes e extensos debates, tanto sobre questões raciais quanto sobre relacionamentos amorosos, amizade, família... enfim, debates sobre a vida. Mas, esqueçam essas críticas, pois como disse em outro post estou ficando velho, chato e ranzinza. Leiam o livro – que é fundamental para pensar questões raciais em um mundo predominantemente branco e racista – e tirem as suas próprias conclusões. Para finalizar, apenas a lembrança do Meio Sol Amarelo que, na minha humilde opinião, é o melhor livro de Chimamanda. Leiam ambos. Hasta!

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

A nenê e o mar


Fui hoje de tarde para Capão da Canoa com a minha nenê, Lary. É chocante as mudanças que ocorreram nela do ano passado, quando ela tinha oito anos recém completos, para agora, que ela está com nove. Porém, uma coisa continua a mesma: a conturbada relação dela com o mar.
Desde bem pequenininha, a minha nenê mantém uma relação de amor e ódio com o mar, com as ondas, com a água salgada e com os seres que vivem lá. Lembro dela com um aninho na praia do Cassino, em Rio Grande: eu tentava levar ela para a água e ela abria o berreiro. Queria ficar apenas fazendo castelinhos com o vovô Nabuco na areia. Porém, de repente, ela aceitava ir até a beiradinha para fazer buracos na areia, esperando as ondas mais fracas chegarem para enchê-los. Um ano depois, em Miami, ela não se intimidou com a praia americana e fez a festa sem muita resistência. De volta à nossa infame pátria, Lary foi crescendo, meus pais se mudaram para Xangri-lá (praia colada em Capão) e nos últimos anos, quando a gente vem passar praticamente as férias inteiras na casa deles, há um ritual que se repente. Nos primeiros dias, a Lary não quer saber nem de molhar os pés na água. Vai lá, olha os bichinhos que se enterram e que servem de iscas para os pescadores, e murmura um “que nojo!”, cheio de caras e caretas. Ano passado ela tinha arranjado uma amiguinha da idade dela. Pensei: “agora a amiguinha nova vai convencê-la a entrar no mar”. O pai da guria disse: “Fulana, convida a Larissa para entrarem na água”. E lá foram as duas, rumo ao oceano. Vi que elas pararam na frente do mar e começaram a conversar. A Lary gesticulava, mexia os braços, palestrava. A guria ouvia tudo, com a testa franzida, atentamente. Em poucos minutos as duas voltaram: a Larissa convenceu a guria de que os bichos eram nojentos e agora a amiguinha também não queria saber da água, para desespero do pai dela.
A cada verão, passados os primeiros dias, ela resolve entrar no mar comigo. Lá vamos nós e, rapidamente ela está pulando ondas. Em seguida mergulha e a partir de então brincamos, rimos, até que eu canso e digo: “vamos sair?”. Que nada. Não quer sair de jeito nenhum. E não quer que eu saia também. O curioso é que o mar, que é ao mesmo tempo herói e vilão, castiga: creio que nos últimos três ou quatro anos, pelo menos uma vez por ano, uma água viva raspou nela. E então é aquela choradeira e a promessa de que nunca mais vai colocar os pés nas águas salgadas do litoral gaúcho. Dessa vez a água viva atacou ontem. Mesmo assim, hoje, depois de passar pelo ritual do nojo dos bichinhos e dos peixinhos que estavam dando o ar da graça para os veranistas, ela esqueceu da água viva e logo estava brincando e pulando sem parar. Volta e meia ela se empolgava e dizia “o mar é legal!”. Porém, se vinha uma onda mais forte, ela se virava para o horizonte azul e berrava: “eu te odeio, mar!!!”. Aproveitei para curtir a minha nenê, pois o tempo passa rápido demais. Duas coisas me fizeram ver como ela está crescendo rápido e como estou ficando velho.
Primeiro, a pracinha. Até o ano passado ela brincava na pracinha do centro de Capão. Agora, quando chegamos lá, eu perguntei: “vai querer brincar na pracinha?”, ao que ela respondeu de bate-pronto: “nem pensar!”. Olhei para as crianças e, realmente, nenhuma era do tamanho dela. Fiquei desolado. Foi-se o tempo de levar a Lary brincar na pracinha... A segunda é que, também até o ano passado, na beira do mar, eu dizia: “olha lá umas crianças, quer brincar com elas?”, e ela respondia “sim, mas tu pede”, e então eu tinha que chegar lá e perguntar se a Lary poderia se juntar ao grupo que se banhava na beira da praia.
Agora ela passou dessa fase de sair brincando com crianças desconhecidas. Eu perguntei isso hoje, ao que ela respondeu: “eu não, nem conheço elas!”. Não me dei por vencido e disse que eu pediria, ao que ela me fitou com olhar de Garfield e respondeu: “vão pensar que tu é maluco!”. Óxi! Que soco no estômago. Ela está crescendo muito rápido! Nove anos! Ano que vem já vai estar com dez!!! Vocês sabem o que é isso? Acho que já comecei a crise dos quarenta com dois anos de antecipação... Poderia a infância dos nossos filhos passar em câmera lenta? Please?