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terça-feira, 28 de maio de 2019

Chegando em Burgos


No dia 23 de dezembro partimos para Burgos, no norte da Espanha, para passar o Natal com a tia Ella, o tio Chema (não sei como escreve, então coloco como se diz mesmo...) e o primo Alex. Na verdade, são todos parentes da patroa Cris, mas tomo a liberdade de surrupia-los para a minha família também. Para chegar a tempo, tive que tomar uma decisão difícil: cancelar a ida que estava programada para o Palácio de Versalhes. Na minha ingenuidade, eu pensava que daria conta do palácio na manhã do dia 23, mas conversando com diversas pessoas que conhecem o local, desisti, pois é preciso um dia inteiro para aproveitar. E outra: só vale a pena não pagar o ticket e explorar apenas a parte externa na primavera e verão, e estávamos no inverno, o que significava nada de gramados e árvores verdes por todos os lados. No fim, essa decisão foi a mais sábia possível. Dei-me conta disso ao perceber que na véspera da véspera de Natal todo mundo parecia querer deixar Paris. Versalhes fica para a próxima.
Saímos cedo no dia 23, mas levamos mais de duas horas para deixar o engarrafamento parisiense para chegar até a autoestrada. Além disso, houve vários imprevistos. Primeiro, era domingo, e uma das avenidas principais próximas ao hotel estava fechada. Devia haver alguma feira, maratona, atentado, protesto ou algo assim. A única certeza é que fui dobrar numa esquina e dei de cara com um guarda gordinho com testa enrugada e cara de bravo. Perguntei: “está fechada?”, ao que ele confirmou, sem dizer um piu. Vendo que éramos “gringos”, mandou a gente voltar e pegar outra rua. O negócio é que o GPS tinha bugado e o do celular só atualizava quando estava online. Assim, pelo mapa, eu tentava voltar para a rota, mas não tinha jeito. Depois de tanto rodarmos, quando vi que não tinha mais jeito para voltar à rota, acabei entrando na contramão numa ruazinha. Levei uns buzinaços e uns xingamentos em francês, mas depois do susto (meu, da Cris e dos outros motoristas) estávamos de novo na linha rosa do GPS, que indicava a rota a ser seguida!
- Você é louco? – perguntou a Cris.
- Com se você não soubesse... – respondi tranquilamente.
Ora, pois, se não fosse maluco não estaria dirigindo por Paris, entrando na contramão, rumo ao desconhecido. Um pouco de insanidade, às vezes, faz bem.
A viagem demorou mais do que o previsto. Havia engarrafamento, inclusive, nas autoestradas. Como disse, parecia que todos os parisienses estavam indo passar o Natal no interior. Assim, andamos, andamos e andamos. Em algumas paradas, fui me dando conta de que Paris não diz quase nada sobre a França. I mean, no que se refere à França como um todo. Assim como o Brasil é muito mais do que São Paulo, Rio de Janeiro e as capitais, a França é algo totalmente diferente de Paris. No interior, as pessoas praticamente não falavam inglês, nos postos, restaurantes e lanchonetes. O negócio era colocar em prática as habilidades aprendidas quando jogava Imagem e Ação com a Laura, quando ela tinha uns 10 anos... Mímica sempre tem a sua utilidade em terras estrangeiras. Sobrevivemos, almoçamos, jantamos e, já de madrugada, cruzamos a fronteira.
Chegar à Espanha me deu um alívio. As estradas, lá, estavam vazias. Novamente, andamos, andamos e andamos. A cada placa que indicava Burgos, respirávamos aliviados. Até que chegamos. Porém, o acesso ao bairro aonde a tia mora não é lá muito fácil de interpretar e, assim, saí da rota do GPS mais algumas vezes. Dessa vez, para não infringir a lei, a cada erro eu ia até o final da rua para fazer o retorno no lugar certo. Vá que levei multas em Paris, Milão, Zurique, Barcelona, etc. Um pouco de prudência, às vezes, também faz bem... Não queria ir à falência pagando multas para os europeus...
Levamos um pouco mais de tempo, mas lá por volta das duas ou três da manhã do gelado inverno de Burgos finalmente chegamos à frente da casa da tia. Porém, não tínhamos certeza se aquela era a casa certa. A Cris fez o que geralmente as mulheres fazem nessa situação:
- Desce lá e vê!
- E se não for?
Pois é, e se não fosse? Problema meu, uai! Apertei a campainha pronto para ver um espanhol aparecendo na janela com espingarda em punho, xingando-me. Mas, para a minha sorte, quem abriu a porta foi a tia. Depois de, sei lá, mais umas 14 horas de viagem, finalmente chegávamos são e salvos. Àquela altura já estávamos no dia 24 de dezembro. Subimos ao quarto, gentilmente cedido pela tia e pelo tio, e dormimos até tarde no outro dia para passar, pela segunda vez na vida, o Natal longe de terras brasucas... Mas essa já é outra história, que fica para a próxima.

domingo, 19 de maio de 2019

Viajando nas páginas de Airton Ortiz


Nos últimos meses, tenho mergulhado nas narrativas de viagem do jornalista e escritor gaúcho Airton Ortiz. Desde 1999, quando começou o seu projeto literário e profissional, Ortiz lançou um livro por ano, atingindo, até o momento, a publicação de 19 livros, entre crônicas, romance-reportagem e narrativa de ficção. Ler a obra de Ortiz é viajar pelo mundo com ele, conhecendo diferentes culturas, diferentes povos e diferentes pessoas. Mas uma das curiosidades que eu tinha desde que descobri esse autor que ainda não tem o devido reconhecimento no cenário da literatura nacional era: quem é esse sujeito? Quem é esse cara que consegue viver de literatura e de viagens? Será um milionário sem ter o que fazer que passa torrando o seu dinheiro para viajar pelo mundo e escrever sobre ele? Será um filho de alguma família rica do Rio Grande do Sul que é patrocinado pelos seus antecedentes? Ou será um jornalista que conseguiu meter a cara e conquistar patrocinadores e o público que bancam essa carreira invejável? Bingo para quem apostou na última alternativa. Mas, antes de chegar lá, vou contar um pouco da história dele, que tive acesso com entrevistas informais feitas por whattsapp e por e-mail em diversos e diferentes dias deste ano de 2019, além de leituras e pesquisas sobre material já escrito por ele e sobre ele.
Airton Ortiz nasceu em Rio Pardo em novembro de 1954. Desde a infância, sempre foi um apaixonado por rádio. Foi ouvindo as grandes reportagens radiofônicas, ainda na infância, vivida em parte no município de Candelária-RS, que ele teve desperta a vontade de viajar e conhecer o mundo. Em 1968, por exemplo, ele ganhou um prêmio literário na escola ao escrever sobre a amizade de Brasil e Portugal. Além disso, ele passou a trabalhar na Rádio Cachoeira, ode estreitou ainda mais os seus laços com o jornalismo quando começou a contribuir para a editoria de esportes do Jornal do Povo. Em 1975, mudou-se para Porto Alegre onde encontrou no jornalismo uma forma de conhecer o mundo.
Formou-se na PUCRS no início dos anos 1980 e, dentre outros trabalhos, criou a editora Tchê! (eu já li alguns livros dessa editora, como o Erico Verissimo, escrito pelo meu orientador de mestrado, Antonio Hohlfeldt, mas nem sonhava que fosse dele). Nesse meio tempo, também concluiu um curso de pós-graduação em Administração de Empresas pela UFRGS, onde, também ampliou o seu conhecimento sobre outras línguas, dentre as quais o espanhol e o inglês. Na capital, atuou também na Rádio Farroupilha, onde trabalhou com Flávio Alcaraz Goms, que já escreveu livros fantásticos de viagem, como Um repórter na China (vale muito a pena!).
Admirador da música e da cultura gaúcha, ele também participou do programa Galpão do Nativismo, da Rádio Gaúcha, como comentarista, e mais tarde do programa Mapa Mundi, da Rádio Bandeirantes, dessa vez falando sobre turismo.
Além de criara  editora, Ortiz também lançou e editou o Jornal Tchê, focado justamente na cultura gaúcha. Tudo isso durou até 1997, quando ele encerrou as suas atividades na editora para trabalhar como freelancer e focar no seu projeto de jornalismo literário de viagem. Chegamos, então, a reposta da pergunta apresentada no primeiro parágrafo.
Já sendo um jornalista relativamente conhecido no Rio Grande do Sul, Ortiz encontrou em grandes editoras (como a Record e a Saraiva) e em uma grande empresa do estado (o Zaffari) a viabilização para colocar o seu projeto em prática. Ele já estava com 45 anos quando estreou, em 1999, no gênero lançando “Aventura no topo da África”, o seu primeiro livro-reportagem de viagem. Desde então, ele lança um livro por ano, dentre crônicas, livros-reportagens e ficção. E qual o segredo para esse sucesso?  “É preciso ter paciência, dedicação e convicção de que é isso que se quer”, conta.
“Desde a primeira viagem que eu fiz para produzir o primeiro livro, a viagem foi bancada pelo Zaffari e desde então todas as viagens são bancadas pelo Zaffari. É verba de publicidade deles e eles têm um bom retorno com isso”, explica. No total, o escritor já viajou para mais de 80 países e, além de publicar as narrativas de viagem, ele também já lançou livros infantis, infanto-juvenis e contribuiu para diversas coletâneas.
Curioso sobre as duas obras de ficção escritas por ele, pedi para que me enviasse um áudio comentando os dois livros do gênero, “Cartas do Everest” e “Gringo”. Coloco aqui, na íntegra, as respostas. 
Sobre Cartas do Everest:
“É baseado em fatos reais porque eu juntei em uma única história fatos que aconteceram, alguns comigo, e outros aconteceram com outros alpinistas. Tudo aquilo que está relatado ali, ou quase tudo, aconteceu, não na mesma montanha e não na mesma temporada. Mas são coisas que foram acontecendo com os alpinistas e que eu fiquei sabendo, por estudar muito alpinismo e as grandes escaladas. Então, tudo que está ali foi inspirado em fatos reais. Claro, não aconteceu exatamente como está ali, porque senão não seria ficção. Mas é uma ficção baseada em fatos que realmente aconteceram pelas montanhas, alguns comigo, outros com meus amigos, outros com relatos que eu ouvi nos acampamentos nas montanhas e outros que eu li nas biografias dos caras e nas grandes reportagens. Isso serviu de pano de fundo para contar a história que eu queria contar, que é como pessoas reagem de maneira diferente diante da mesma situação. Coloquei os três personagens, um brasileiro, um americano e um alemão, mostrando que diante da mesma situação cada um deles reage de maneira diferente. A ideia era mostrar a diversidade das pessoas, a diversidade da cultura de onde eles vem, e a diversidade das nossas reações diante das mesmas situações”.

Já sobre Gringo:
“Criei a história, o personagem passando pelos lugares que eu já tinha passado antes. Todas as locações do Gringo são conhecidas por mim. Isso é um projeto meu, pessoal, do meu projeto literário, que os meus livros só vão acontecer em lugares que eu conheço, mesmo os de ficção. E o que o Gringo tem de diferente, é que depois de ter construído toda a história eu peguei a mochila e refiz a viagem do gringo, aí no ritmo e na sequência que está descrita no livro. Eu queria ver se há grandes modificações entre a história que eu imaginei naqueles lugares que eu passei em tempos diferentes e em épocas diferentes para uma viagem que eu passei por todos os lugares numa sequência cronológica. A grande diferença do Gringo, talvez única no mundo, é que depois do ficcionista ter inventado uma viagem, ele foi lá na vida real e fez aquele roteiro. Muitas das coisas que aconteceram durante a viagem já estavam no Gringo. Depois de fazer tantas viagens pelo mundo e ter tanta experiência a gente já tem ideia do que vai acontecer. Quebra um pouco aquela expectativa porque eu já sei, dependendo de onde eu chegar no mundo, eu já sei como vou ser recebido. O objetivo do Gringo é mostrar o amadurecimento de uma pessoa. Geralmente quando uma pessoa passar por uma situação de tragédia, de quase morte, elas repensam a vida delas ou dão um novo rumo para a vida delas. Eu acho que não precisa chegar a uma situação dessas para a gente repensar a vida da gente. Uma viagem é a melhor oportunidade par aa gente repensar a vida da gente e ver o que a gente quer ou não quer. O Gringo é uma experiência de autoconhecimento,, um romance de formação e de aventura, em que conta o amadurecimento de um cara a partir das experiências que ele vai tendo na viagem. Incluí a troca com outros viajantes e com os nativos em que a pessoa vai amadurecimento. Ela é também toda inspirada em fatos reais”.

Em síntese, para quem gosta de viajar e de ler, Airton Ortiz oferece um prato cheio! E isso que nem falei dos diversos prêmios que ele ganhou, além de ser patrono de variados eventos literários, tendo já sido patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. E esperamos que muitas outras obras do autor ainda sejam lançadas, pois esse mundo é grande e bom, Sebastião!  

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves: História para bolsonarista ver e aprender


Enquanto lia Meio Sol Amarelo, da escritora nigeriana Chimamanda Gnozi Adichie (comentei sobre esse livro em texto aqui do blog de 3 de fevereiro de 2018), apanhei um pouco para memorizar os nomes africanos dos personagens: Olanna, Kainene, Ugwu, Inatimi, etc. No entanto, lembro que fiquei me questionando: considerando que mais da metade da população brasileira é parda ou negra, por que não temos sobrenomes africanos em nosso país? Cheguei a pensar em pesquisar sobre isso, mas acabou passando. Então, no último verão eu li Na Minha Pele, do Lázaro Ramos (também escrevi sobre esse livro aqui no blog) e, através dele, cheguei no livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (foto acima), que responde à minha pergunta sobre a ausência de sobrenomes africanos, além de contar muito mais da história praticamente (e provavelmente, intencionalmente) esquecida do Brasil.
Porém, para contar sobre o sumiço dos sobrenomes africanos, tenho que contextualizar a história toda e, assim, já abordo o livro de maneira geral. No romance, publicado originalmente em 2006 (a minha edição é da Record, 2017), a personagem narradora, chamada Kehinde (nascida em 1810), ainda criança e vê guerreiros tribais estuprarem e matarem a sua mãe e o irmão mais novo. Ficando apenas ela, a irmã gêmea e a avó, elas partem para Uidá, localizada onde hoje é Benin, entre Togo e Nigéria. Em Uidá, um belo dia Kehinde e a irmã, ambas com sete anos, veem chegar à costa africana um navio que é cercado por uma pequena multidão. Estando ali no meio do povo, um homem branco pede para as gêmeas mostrarem os dentes e, após avaliar os corpos e estado geral de saúde, seleciona as duas crianças para embarcarem. A avó aparece, a procura das netas, e implora para embarcar junto. O homem checa as condições de saúde e acaba aceitando. Enquanto alguns dos africanos pensava que seriam transformados em carneiro para virar comida de branco “no estrangeiro”, os africanos muçulmanos acreditavam que a travessia seria um sacrifício até chegar a terra de Alá.  E, assim, a personagem é literalmente sequestrada da África, ainda no tempo do Brasil colônia, para ser escrava no Brasil.

Claro que a narrativa da Ana Maria é muito mais complexa, literária e instigante do que esse breve, rápido e superficial resumo. Ela dá ênfase ao caráter humano, à inumanidade da viagem da África para o Brasil, que dura mais de mês e muitos acabam morrendo de fome ou de doenças, inclusive a irmã e a avó de Kehinde, que são jogadas ao mar. É algo que deveria ser lido por todo o brasileiro. Algo que não está humanizado nos livros de história que falam sobre a escravidão no Brasil.
Chegando à terra tupiniquim, encontro a explicação para a operação borracha, não só nos nomes, mas na cultura e nas diversas religiões africanas no Brasil: todos os escravos que chegam ao país são obrigados a serem batizados com nomes brasileiros (afinal, os brancos não querem selvagens pagãos) e, consequentemente, recebem sobrenomes portugueses, como Silva e Sousa. Assim, sobrenomes como Azikiwe, Awolowo, Adichie, etc, sumiram do mapa brasuca. Os escravos também eram proibidos de falar na sua língua materna e de expressar qualquer tipo de ritual religioso ou cultural (a não ser em raros momentos de folga, desde que não houvesse nenhum de seus “donos” por perto). Assim, Kehinde passa a ser Luísa Gama, mesmo tendo conseguido fugir do batismo católico.
As histórias são todas arrepiantes: a viagem praticamente sem comida, o tratamento dados aos africanos que eram vendidos nos mercados (quanto mais demorava a ser vendido, pior eram as condições, pois muitos morriam de fome e outras doenças nessa espera por um “dono”), as chibatadas nas fazendas, os estupros (geralmente o dono guardava as meninas para ser o primeiro a fazer sexo com elas), o tratamento desumano, enfim, tudo é cruel demais para você pensar que, no Brasil, um presidente da República tem a cara de pau de dizer durante uma entrevista que o país não tem dívida histórica nenhuma e que ele não é racista porque o sogro dele é chamado de “Negão”.... Mas enfim, não vamos mudar de assunto...
A obra é absolutamente demais, em todos os sentidos. Eu li em pouco mais de 20 dias as suas 950 páginas. Nelas, Ana Maria Gonçalves dá vida aos escravos, mostra o seu lado humano, bem como é feito no americano “12 Anos de Escravidão”. Detalha as suas crenças, conta sobre as capturas, sobre as fugas, as revoltas, etc.
Kehinde (imagem ilustrativa de como foi Kehinde ou Luísa Gama) desembarca em São Salvador (hoje Salvador) e é vendida para um fazendeiro chamado José Carlos Gama (daí o seu sobrenome). A personagem é comprada para fazer companhia à filha dele, chamada de “sinhazinha” até o fim do romance, com quem, na fase adulta, ela faz uma forte amizade. Após entrar na adolescência, José Carlos estupra Kehinde e castra o escravo que era seu pretendente diante dos olhos dela. Do estupro, nasce Banjoko, seu primeiro filho. Depois que José Carlos morre, a viúva, chamada Ana Felipa, muda-se para a fazenda e leva consigo alguns escravos, dentre eles Kehinde, com quem ela tem uma implicância muito forte. No entanto, para manter Kehinde longe de um escravo pela qual ambas estavam apaixonadas, Ana Felipa coloca Kehinde a trabalhar “a ganho”, que era quando os “donos” permitiam que os escravos trabalhassem na rua (geralmente com comércio – assim muitas mulheres iam para a prostituição) para ganhar algum dinheiro. Obviamente havia uma quantia que o escravo deveria pagar ao seu dono. Bom, estou detalhando muito um livro que tem 950 páginas, então, em resumo, após vários desencontros e dramas, Kehinde finalmente consegue comprar a carta de alforria (liberdade) e a de seu filho, justamente quando a “sinhá” resolve se mudar para o Rio de Janeiro, querendo separar Kehinde da criança (algo que também era normal: mães e filhos serem separados em compra e venda de escravos).
Após passar por várias situações horríveis, Kehinde conhece e se apaixona por um português, com quem tem mais um filho: Luiz Gama, que nasce em 1830. Assim temos a romantização de uma história real: Luiz Gama foi um importante jornalista e advogado negro que lutou durante  sua meia década de vida contra a escravidão (eu já tinha lido o livro de Luiz Carlos Santos, sobre ele). Em síntese: o romance conta a história da mãe de Luiz Gama (foto).
Em algumas entrevistas disponibilizadas no youtube, Ana Maria conta todo o processo de produção do romance, que foi justamente um trabalho de muuuuuita pesquisa, leitura, consulta à acervos, e tudo o mais. Mas, voltando à narrativa do romance, Banjoko morre cedo, aos sete anos. Mas o drama maior vem mais tarde, quando a personagem Kehinde se envolve em vários trabalhos e busca conhecimentos pelo Brasil sobre as religiões africanas, passando a ficar longe de casa por longos períodos. Nesse interim, o português, pai de Luiz Gama, casa-se com uma brasileira (afinal, nunca um português assumiria publicamente um relacionamento com uma ex-escrava). Aproveitando a ausência da mãe, o português (que estava atolado em dívidas de jogo) vende Luiz Gama como escravo, mesmo ele sendo livre, para uma embarcação que o leva ao Rio de Janeiro. Após a venda, o português some e nunca mais se tem notícias dele. Então, começa a saga da busca de Kehinde pelo filho perdido. Fazendo novamente um pulo e resumindo tudo ao máximo: eles nunca mais se encontram. Kehinde passa por diversas situações limites, mas consegue se dar bem financeiramente. Ainda relativamente jovem, mas já no final da narrativa, ela acaba voltando para a África, onde segue tendo sucesso financeiro. De lá, a personagem conta como era a vida em um território que ainda estava sendo divido pelos europeus. Ou seja, Uidá, para onde ela volta, e Lagos, hoje capital da Nigéria, eram reinos diferentes mas, de certa forma, pertenciam a um mesmo país. Bem, não vou descrever aqui os outros personagens, como por exemplo, o marido africano com quem Kehinde casa e tem filhos. Mais uma vez tentando ser o mais breve possível, o romance conta os 88 anos de vida da personagem, que atravessa o século XIX, revelando muito da vida dos escravos brasileiros, da política dos primeiros anos do país após a independência, a continuidade do tráfico de escravos, mesmo após a sua proibição legal, a vida na África, a vida dos africanos que compravam a liberdade e voltavam ao velho continente africano, as rixas entre os africanos e os negros nascidos no Brasil, as rixas entre os africanos que retornavam para a África e que se achavam superiores aos africanos que nunca tinham deixado o continente, a escravidão na própria África (nas guerras, os perdedores eram escravizados pelos vencedores e também eram vendidos e comercializados – sendo que muitos desses eram enviados para o Brasil, Estados Unidos, Cuba e todas as outras colônias espalhadas pelo mundo), enfim, é tanta coisa que realmente só lendo o livro para você entender a magnitude da filha da putice que o ser humano é capaz de fazer com o próximo...
Ah, e por que o título é “Um defeito e cor?”. Simples: porque em dado momento, o negro que conseguisse comprar a sua liberdade, para conseguir um emprego, tinha que assinar um documento assumindo ter “defeito de cor”. E isso seguiu por um bom tempo. Aliás, do jeito que estamos caminhando para trás nesse país, não duvido que não surja um decreto bozal propondo a volta de tal documento, bem como “defeito de gênero”, “defeito de ideologia”, “defeito de genes”, etc.
A boa notícia é que, segundo uma das entrevistas da Ana Maria, a Globo está adaptando o livro como série para 2020. Estou muito curioso para assistir e, espero que consiga ser minimamente fiel ao livro, principalmente colocando atrizes africanas para interpretar Kehinde, pois a autora do livro faz a descrição da cor da pele justamente no início da obra, salientando a diferença entre os negros africanos e os negros brasileiros que nasciam filhos de mãe negra e pai branco (ou vice-versa).
Bom, sei que deixei muita coisa importante de fora, pois esse é um livro que faz você viajar longe. Minha única crítica, sob o ponto de vista da narrativa, é que lá pela metade o texto (sempre em primeira pessoa) passa a ser uma carta de Kehinde escrita para o Luiz Gama. Tudo bem a narrativa ser uma carta, mas até então isso não fica claro. Ou seja, você lê até a metade como um romance em primeira pessoa e, de repente, o troço todo vira uma carta, falando “você não deve saber disso” ou “se eu pudesse te falar e ouvir sua voz”, etc. Aliás, falando agora como leitor, também penso que há algumas descrições com detalhes excessivos (possivelmente tentando dar verossimilhança a tudo e, claro, porque depois de toda a pesquisa que autora fez, é normal que ela quisesse expor o máximo possível dessa pesquisa ao leitor). Portanto, considero que seria totalmente possível (e aconselhável, penso eu) cortar umas 200 páginas, ou até mais, fechando a obra em umas 700 páginas. Mas enfim, isso não tira em nada o mérito do livro. Inclusive, eu diria que até a metade da obra a narrativa é de tirar o fôlego e não há nada que pudesse ser suprimido. Porém, depois, talvez para balancear melhor os períodos, a autora colocou todos aqueles detalhes para compensar a falta de ação, como por exemplo, quando descreve a Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, e festas religiosas de todos os tipos.

Ah, e falando em religião, um dos pontos altos do romance é a Revolta Malês, que foi quando escravos muçulmanos planejaram uma rebelião em Salvador para escravizar os mulatos e crioulos (como eram chamados os filhos de escravos nascidos no Brasil) e matar os brancos. É sensacional, porém, como a revolução não deu certo e os seus organizadores e participantes, na sua enorme maioria, foram mortos, essa importante batalha da história brasileira foi praticamente apagada dos livros didáticos (e com a bozaiada no poder, agora é que não vão ganhar espaço mesmo). Aliás, como a região da Nigéria e Benin é formada por uma porcentagem alta de muçulmanos, nada mais normal do que haver muitos muçulmanos no Brasil naquele tempo – a maioria enviados para o nordeste. Porém, assim como os sobrenomes, eles também foram sufocados até não sobrar quase nada da cultura e da religião muçulmana negra no país.
Para encerrar, fica essa dica de leitura e os parabéns a Ana Maria Gonçalves por escrever uma das mais importantes e espetaculares obras da literatura brasileira. E obrigado ao Lázaro Ramos, por escrever sobre essa obra em seu livro, pois sem isso eu nunca teria descoberto esse tesouro da literatura.
Coloco abaixo alguns trechos aleatórios para você ter ideia do que estou falndo:
Sobre a viagem da África ao Brasil: “O calor e o cheiro forte de suor e de excrementos misturado ao cheiro da morte, não ainda do corpo morto, mas da morte em si, faziam tudo ficar mais quieto, como se o ar ganhasse peso, fazendo pressão sobre nós. Já estávamos todos muito fracos, pois era o início do quarto dia sem comer” (p.51).  
Sobre os negros vendidos nos mercados: “O comum a todos eram os ossos, que de tão aparentes quase rasgavam a pele sem viço e sem cor definida, coberta por imensa quantidade de escaras” (p.68).
Sobre poderosos na África que foram escravizados: “Mais tarde, vendo que isso não mais bastava, ele a acusou de feitiçaria e a vendeu aos mercadores de escravos para que a levassem para longe do Daomé, fazendo o mesmo com várias pessoas da família real. Era a primeira vez que isso acontecia na família dos reis do Daomé” (p.132).
Sobre o estupro cometido pelo “dono” branco na frente do pretendente escravo: “Eu queria morrer, mas continuava mais viva do que nunca, sentindo a dor do corte na boca, o peso do corpo do sinhô
José Carlos sobre o meu e os movimentos do membro dele dentro da minha racha, que mais pareciam chibatadas [...] O Lourenço tinha conseguido chorar e, ao perceber isso, o sinhô José Carlos o chamou de maricas e perguntou se estava chorando porque também queria se deitar com um macho como o que estava se deitando com a noivinha dele. [...] Passou cuspe no membro e possuiu o Lourenço também, sem que ele conseguisse esboçar qualquer reação ou mesmo gritar de dor, pois tinha a garganta apertada pelo colar. [...] Virou o Lourenço de frenet, pediu que dois homens do Cirpriano o segurassem e cortou fora o membro dele” (p.171-172).
Sobre a revolta malês: “Entre os pretos havia a ideia de tomar o poder e matar ou escravizar todos os que não fossem africanos, principalmente os crioulos. Mas mesmo entre os pertos havia desunião, quase sempre desde a África, por pertencerem a nações inimigas. Eles não entendiam que no Brasil precisavam comportar de modo diferente, esquecendo a inimizade e ficando todos do mesmo lado” (p.416).
Sobre o falso fim da escravidão: “Mas há um ou dois anos mais ou menos, perguntei a um retornado bastante esclarecido se não havia mesmo mais escravidão no Brasil e ele me disse que ainda havia sim. Não nas grandes cidades, onde os pretos e crioulos eram mais bem-informados, mas havia lugares mais para o interior do país, nas fazendas, onde as pessoas nunca ficariam sabendo que não podiam mais ser mantidas como escravas. A notícia não tinha chegado até elas, e talvez ainda fique assim por algumas gerações” (p.868).
Enfim, o livro inteiro é uma grande citação imperdível. Portanto, reserve um mês da sua vida para mergulhar no tempo e entender um pouco mais sobre o fato de o racismo não ter nada de “mimimi” como ainda insistem os bolsonaristas desse país.   

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Menino Mbape!! – Paris é demais!!! – Parte 4


A gente estava tentando encontrar o metrô para voltar ao hotel quando vi um grupo de brasileiros (com camisetas da seleção) parados próximos à torre Eiffel. Fui lá pedir informação e, como o nosso metrô era o mesmo que pegava para o Parc des Princes, eles perguntaram:
- Também vai no jogo?
- Quê jogo? – questionei.
- Do PSG.
- Sério?
- Sim.
- Que horas?
- Às 21h.
Olhei no relógio: passava um pouco das 18h. Fiz um cálculo mental rápido e dava tempo. Agora teria que passar essa informação para a Cris da maneira mais suave possível.
- Está cansada? – perguntei.
- Sim, morta!
Beleza! Falei da maneira mais meiga possível que a deixaria descansar tranquila no hotel, sem perturbá-la. Aliás, eu a deixaria sozinha para descansar e repor as energias indo ao jogo do PSG naquela noite! Não encontrei muita resistência, pois o convite para ir junto foi prontamente recusado. Pegamos o metrô, chegamos ao hotel, tomei um banho rápido, tomei duas latinhas de cerveja, coloquei a camiseta do Grêmio por cima do blusão e parti. Não estava tão frio e, na minha ingenuidade tropical, acreditei que o clima ficaria naquela faixa dos 9° ou 10°C e não levei casaco.
Ganhei a rua e parti para o metrô. Lá, dois franceses acompanhados de dois garotinhos de uns 7 ou 8 anos perguntaram em inglês que camisa era aquela:
- Do Grêmio – respondi.
- Do Brasil? – perguntou um deles.
- Sim!
- Vai no jogo? – questionou o outro .
- Vou.
- E vai torcer pra quem?
Senti uma certa hostilidade na pergunta.
- Para o PSG! – respondi.
Começamos a conversar sobre o time e eles não sabiam se Mbape e Neymar iriam jogar. Tudo era traduzido pelos dois adultos aos pequenos, que participavam ativamente da conversa. Logo, um paranaense, que estava acompanhado da namorada, disse que o Neymar tinha ido para o Brasil passar as festas de final de ano, portanto, apenas Mbape jogaria. Os franceses não gostaram da informação e só não xingaram o Neymar porque estavam diante de brasileiros. O paranaense, então, perguntou se eu havia comprado ingressos. Antes de sair do hotel vi que havia muitos ingressos disponíveis e deixei para comprar no estádio. Os dois franceses se olharam, como se dissessem, “mas que burro!” e recomendaram eu chegar lá e correr, porque era o último jogo antes da parada de final de ano e o estádio certamente ficaria lotado.
Chegamos ao Parc des Princes e me indicaram o caminho das bilheterias. Corri, corri e corri. Me perdi umas três vezes até que cheguei num guichê onde torcedores entravam. Perguntei para um carinha de colete, funcionário do estádio, onde era a bilheteria.
- Bilheteria? Não tem mais ingresso, man!
- Sério?
- Sure!
Bah! Duvidei. Segui indo em direção às bilheterias e, chegando lá, tudo fechado. Sem ingressos. Tudo vendido. Voltei para o mesmo portão de acesso ao estádio e perguntei para outro funcionário, já desesperado pensando na viagem perdida, se havia outra bilheteria. A resposta foi a mesma.
- Os ingressos acabaram, man!
Um senhor negro ouviu a conversa e me chamou de canto.
- Procurando ingresso?
- Sim! – respondi.
- Eu tenho aqui.
A sirene de alerta tocou na minha cabeça. Comprei duas vezes ingressos de cambistas na vida e, em uma delas, o ingresso era falso. Disse para o cara que apenas compraria se ele me acompanhasse até eu entrar no estádio. Ele topou, apesar de que isso era impossível, pois no primeiro portão eles apenas checavam se você tinha ingressos, sem conferir se eram falsos ou não. O cambista queria um dinheiro que eu não tinha e acabou aceitando tudo o que eu tinha em espécie na carteira, pois já estava quase na hora do jogo e talvez ele não vendesse se não aceitasse a minha contraproposta. Entrei e ele me desejou um bom jogo. Fui suando frio, passando por vários portões onde os funcionários do estádio checavam o meu bilhete com uma lanterninha. Quando sentei na minha cadeira, imaginei que apareceria outro torcedor com o mesmo bilhete que eu, e então, eu teria que ficar fugindo dos fiscais pelos cantos. Mas isso não aconteceu: o ingresso não era falso e pude assistir ao jogo contra o Nantes, que foi o último do Sala, o atacante do time francês que morreu poucas semanas depois, num acidente aéreo.
Havia um garotinho acompanhado do pai ao meu lado. Ele parecia um mini Mbape. E, realmente, ele era fã do craque francês. Aliás, logo descobri que o maior ídolo do PSG hoje é o Mbape. Não tem pra Neymar nem Cavagni. O pai do guri não falava inglês e nos comunicávamos por mímica. Ele mostrou fotos do guri com os craques do PSG e entendi que o garoto, que devia ter uns 6 anos, jogava na escolinha do clube. Tirei uma foto do ingresso dele para não esquecer o nome. Disse para o pai dele, numa mistura de inglês e espanhol que ele parece ter entendido, que se o guri ficar rico e famoso eu irei procura-los.

Dentro do estádio, me surpreendi, pois mesmo com o PSG tendo uns 10 pontos de vantagem sobre o segundo colocado, o estádio estava absolutamente lotado. A torcida cantava o tempo todo e tem uma espécie de Geral do Grêmio que também fica atrás do gol, fazendo muito barulho, com bandeirões gigantes e sinalizadores. Um sujeito fica comandando tudo com um megafone. Mais um mito que desconstruo viajando pelo mundo: a de que as torcidas sul-americanas são mais fanáticas e fazem mais barulho que as europeias. O estádio lotado cantava o tempo inteiro e foi uma festa de arrepiar. Fiquei imaginando um jogo de Champions... No entanto, quando assistimos aos jogos europeus pela TV no Brasil o som da torcida não chega até nós e ficamos com a impressão de que fica todo mundo sentadinho, calado. Nada mais distante da verdade do que isso.
Vibrei muito com o gol da vitória, marcado pelo Mbape, e foi bonito ver o garotinho feliz da vida pelo gol anotado pelo seu maior ídolo. Ao deixar o estádio, estava morrendo de frio, e me perdi mais umas três vezes até encontrar a parada certa do metrô que me levaria até o hotel. Volta e meia algum brasileiro gritava: “e aí, gremista!”. Cheguei a parar para conversar com alguns, que disseram ser parentes do Marcelo Oliveira, do Grêmio. Mostraram fotos com ele, tiradas em uma viagem recente à Israel. Depois de andar feito barata tonta, finalmente encontrei a parada certa e voltei, são, salvo e com frio, para o hotel. Tomei um banhão quente e dormi o sono dos justos, pois no dia seguinte teríamos uma longa viagem pela frente até Burgos, no norte da Espanha.