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sábado, 30 de março de 2013

O retorno

Ok, atendendo ao pedido de milhões de leitores imaginários, estou voltando a escrever no blog. A verdade é que não sobra muito tempo sendo pai, padrasto e marido em tempo integral (que é bom demais, mas exige bastante presença), fazendo doutorado com idas semanais de Pelotas para Porto Alegre, tentando estudar inglês o máximo que posso para fazer o menos feio possível nos Estados Unidos a partir de agosto e, só para fechar, tendo outras duas colunas semanais: uma no Jornal das Missões, de Santo Ângelo, e outra no jornal Meu Bairro, de Porto Alegre. Além disso, o que me desestimulava a voltar a escrever aqui mais seguidamente era o fato de que os meus leitores são apenas imaginários, mas que se foda, a minha escrita é mais terapêutica para mim do que para alguém de carne, osso, pele e fezes.
Hoje mesmo estava pensando nisso: na verdade o que somos nós, fisicamente falando, além de ossos, sangue, carne, genitais e fezes reunidas num saco de pele? Uns 10 dias atrás quebrei o meu nariz jogando bola e pensei sobre essa fragilidade. Estamos inteiros e, de uma hora pra outra, POW, uma paulada e ficamos quebrados e perdemos nossas capacidades vitais, de movimentação e raciocínio pouco a pouco.
Pois é, já faz alguns dias que queria escrever sobre o meu nariz quebrado. Depois de umas três semanas afastado das quadras, voltei a jogar com meus ex-alunos da UFPEL. Na verdade era para ser um jogo do time do Jornalismo contra outros caras, mas foi tanta gente que acabamos dividindo o pessoal em três times. Quando eu comecei a me inspirar, numa dividida com um cara que eu não conhecia, POW, bati o meu nariz no ombro dele. Na hora vi que tinha quebrado e só esperei vir o sangue. Em pouco tempo estava com a cara ensangüentada. O que era para ser só um joguinho acabou virando uma ida ao hospital. Meu ex-aluno, Matheus, me levou para o Pronto Socorro e, por coincidência, meus pais estavam nos visitando em Pelotas. Liguei para o pai, que foi até lá. Mas antes disso, teve a chegada no hospital:
- O que houve? – perguntou a mulher da recepção.
- Acho que quebrei o nariz jogando bola.
- Você tem o cartão do SUS?
- Não – respondi, querendo dizer “não, mas serve esse naco de nariz?”.
- Tem que ter o cartão do SUS... nome?
E assim seguiu o interrogatório, com ela indignada por eu não ter o cartão do SUS. O saguão estava lotado: grávida passando mal, cara de pé quebrado, criança chorando, mulher sendo abanada pelo marido, enfim, um circo dos horrores que está lá todos os dias esquecido pelos políticos e seus médicos particulares e pela imprensa, que acha esse absurdo a coisa mais normal do mundo. Estava eu sentado, mexendo no meu nariz dum lado pro outro, quando meu instinto de professor de jornalismo acabou falando mais alto. Olhei para o meu aluno e disse: “quando não tiver pauta, é só vir aqui”. Ele concordou.
Então meu pai chegou e, ou porque acharam que meu caso era urgente, ou porque não havia tanta requisição de pacientes com fraturas, chamaram logo meu nome. O cara que me atendeu era cirurgião dentista (fui descobrir isso pouco depois, mas me atendeu super bem). Contei o que aconteceu, ele deu uma mexidinha no meu nariz, e disse:
- Bom, vamos fazer o raio X. Mas a princípio você tem duas opções: ou colocamos o tampão ou marcamos uma cirurgia.
- Co-como assim?
- O tampão é o seguinte: te damos uma anestesia local, que é umas cinco injeções no rosto, duas aqui, duas aqui e uma aqui no meio dos olhos – disse, mostrando os locais – e aí colocamos um negócio, que é tipo um cadarço, que vai ficar dentro do seu nariz por uma semana. Depois tira e está tudo ok.
Comecei a suar frio.
- E a outra opção?
- A outra, você marca um dia para fazer uma cirurgia com anestesia geral. Aí você apaga, arrumamos tudo, você não vê nada e acorda com o negócio pronto.
Putaquepariu. Fiz ele explicar de novo umas cinco vezes as duas opções. Era o legítimo “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Olhei para o meu pai e perguntei:
- E aí?
- Tu que sabe. Acho que é melhor fazer agora.
Fiz o raio X e entreguei para o médico-dentista, que perguntou:
- E aí, decidiu?
- Não dá pra deixar assim não?
- Até dá, mas tem a questão estética, ou seja, você vai ficar com o nariz torto, e tem a de saúde mesmo, pois você provavelmente terá problemas respiratórios.
Fiz ele explicar novamente e com mais detalhes as duas opções, até que decidi:
- Então vamos fazer agora.
Deitei na maca. Começaram com as anestesias dentro da boca, uma em cada canto, depois duas na bochecha, uma na ponta direita e outra na ponta esquerda, e depois uma entre os olhos. Ou seja, levei injeção na testa (e de graça! Alguém quer?). Depois que começou a fazer efeito, sentei na maca, ele parou na minha frente, com uma guria, estagiária, que ficou me olhando com os olhos arregalados, mas como se estivesse adorando aquilo tudo. Era estranho ter uma guria tão vistosa como aquela me observando com tal interesse! Senti orgulho do meu nariz. O cara empurrava a minha fuça para um lado, para o outro, e perguntava para a guria “está reto?”. Ela olhava, botava a mão no queixo, e dizia “acho que um pouco mais pra cá”. Eu ali, parado, vendo mexerem na minha cara como se eu fosse um boneco. Dali a pouco chamaram meu pai.
- Olha só. Você que conhece ele desde que nasceu: está reto?
O pai franziu a testa e disse, de forma não muito convincente:
- Acho que ta.
Na verdade creio que o pai queria mesmo era ir pra casa dormir, pois o jogo começou a meia noite, então, isso tudo ocorreu por volta das duas e meia da manhã.
Foi então que recebi a boa notícia. Não precisaria colocar o tampão. Só precisaria cuidar para não bater o nariz em nada por uma semana, até a reavaliação, que foi feita ontem, e está tudo ok.
Bom, fiquei tanto tempo sem escrever aqui que acho que me empolguei. Mas pouco importa, pois, como os leitores são imaginários, e eu é que mando na bagaça, eles leram tudo até o fim.
Hasta!

sábado, 2 de março de 2013

Latrina, Foucault e amizade


Sentença Vaticana 23, citada por Foucault (Hermenêutica do Sujeito, Martins Fontes, 2010, p.174): “Toda amizade é por ela própria desejável; entretanto, ela tem seu começo na utilidade”. Conforme explicação que está no livro: “As Sentence Vaticane são assim denominadas por terem sido descobertas em um manuscrito do Vaticano que compreendia uma compilação de 81 sentenças de caráter ético”. E quem quer saber mais, que vá perguntar ao Mr. Google. Mas enfim, não é a tal sentença que interessa, e sim, o seu conteúdo.
Assim como na Hermenêutica do Sujeito, Foucault demonstra as transformações que os significados de “cuidado de si” e “ocupar-se consigo mesmo” foram sofrendo ao longo dos séculos (isso vale outro post), também se percebe aqui a mudança da idéia da amizade relacionada ao utilitarismo. Hoje é moralmente correto dizer que não há interesses ou intenções de utilizar o outro em uma relação de amizade. Ou seja, busca-se uma amizade pura. “Eu sou amigo do Fulano porque não tenho nenhum interesse”. Aí cabe a pergunta: então por que você é amigo dele?
Claro que as palavras “interesse” e “utilização” também são complexas. Geralmente quando são usadas, elas são associadas a fatores econômicos. Enquanto estava no banheiro defecando, há pouco, fiquei teorizando sobre isso. E não falo no sentido de diminuir meu pensamento – muito menos o do Michel -, mas sim, porque a latrina é um ótimo lugar para se usufruir do ócio criativo. Pois bem, eu diria que quando há a utilização ou o interesse econômico em um começo de amizade, podemos denominá-lo de “interesse explícito”. Ou seja, é aquele caso em que todas as pessoas comentam: “o Fulano ficou amigo do Beltrano porque ele é rico, porque tem status social, etc”. O mesmo valeria para relacionamentos afetivos, mas isso renderia outra análise latrinal. Portanto, vou ficar aqui apenas no aspecto da amizade.
Com algumas breves e simples reflexões, podemos perceber que há outras formas de utilização e interesse. Quando você é amigo de outra pessoa porque ela gosta de te ouvir, ou porque ela é boa companhia, ou porque ela fala coisas inteligentes, ou porque ela é bonita, etc, você também está utilizando essa pessoa: está utilizando ela como ouvinte, como acompanhante, como speaker, como modelo para futuras masturbações, etc. Portanto, em um pensamento simplório, eu classificaria a utilização e o interesse em dois tipos: o já mencionado explícito, que é aquele quando todos percebem que há um interesse financeiro por trás do negócio; ou o implícito, que seria algo mais ingênuo, mais “correto” sob o ponto de vista da moral ocidental contemporânea.
Aí você pode argumentar: mas e os amigos de infância? Pois bem, quando você era criança, você era amigo do Fulano ou do Beltrano porque tinha interesses e utilizava o próximo: ou para brincar com você, ou porque ele tinha o videogame da hora, ou porque ele fazia tudo que você queria, ou porque você tinha desejos sexuais que ainda não compreendia, etc. Ou seja, não há amizade com 0% de interesse. O que eu chamaria de amizade verdadeira, aquela da máxima “eu só tenho dois ou três amigos de verdade”, são aquelas relações não-sexuais em que essa concepção de utilidade e interesse foi ultrapassada, ou seja, você já aceita ficar no prejuízo com outrem. Ou ainda, você já a colocou na categoria “familiar”. Claro que, a ideia de família, também abordada por Foucault, é outra história, e rende milhares de posts. Mas falo sob o ponto de vista de núcleo familiar, quer dizer, da família tradicional, imortalizada pelo cristianismo...
Bom, como estou escrevendo para a internet e, dizem os estudiosos da Web que os leitores internautas são vagabundos e preguiçosos que não gostam de textos longos, então vou parando por aqui. Se algum dia eu me inspirar de novo, sigo falando sobre esses temas. Empolguei-me porque estou lendo a Hermenêutica do Sujeito, do Foucault, para a minha tese (não para pesquisar o tema amizade, mas ele apareceu no meio do caminho) e, depois, vou seguir com O Governo de Si e dos Outros, para estacionar no ponto de chegada que é A Coragem da Verdade (e aí entra a óbvia relação com o jornalismo).
Enfim, tantas palavras foucaultianas regadas a uma latinha de Bohemia começam a se mostrar perigosas para a minha frágil mente. Portanto, até a próxima!