.

sábado, 2 de março de 2013

Latrina, Foucault e amizade


Sentença Vaticana 23, citada por Foucault (Hermenêutica do Sujeito, Martins Fontes, 2010, p.174): “Toda amizade é por ela própria desejável; entretanto, ela tem seu começo na utilidade”. Conforme explicação que está no livro: “As Sentence Vaticane são assim denominadas por terem sido descobertas em um manuscrito do Vaticano que compreendia uma compilação de 81 sentenças de caráter ético”. E quem quer saber mais, que vá perguntar ao Mr. Google. Mas enfim, não é a tal sentença que interessa, e sim, o seu conteúdo.
Assim como na Hermenêutica do Sujeito, Foucault demonstra as transformações que os significados de “cuidado de si” e “ocupar-se consigo mesmo” foram sofrendo ao longo dos séculos (isso vale outro post), também se percebe aqui a mudança da idéia da amizade relacionada ao utilitarismo. Hoje é moralmente correto dizer que não há interesses ou intenções de utilizar o outro em uma relação de amizade. Ou seja, busca-se uma amizade pura. “Eu sou amigo do Fulano porque não tenho nenhum interesse”. Aí cabe a pergunta: então por que você é amigo dele?
Claro que as palavras “interesse” e “utilização” também são complexas. Geralmente quando são usadas, elas são associadas a fatores econômicos. Enquanto estava no banheiro defecando, há pouco, fiquei teorizando sobre isso. E não falo no sentido de diminuir meu pensamento – muito menos o do Michel -, mas sim, porque a latrina é um ótimo lugar para se usufruir do ócio criativo. Pois bem, eu diria que quando há a utilização ou o interesse econômico em um começo de amizade, podemos denominá-lo de “interesse explícito”. Ou seja, é aquele caso em que todas as pessoas comentam: “o Fulano ficou amigo do Beltrano porque ele é rico, porque tem status social, etc”. O mesmo valeria para relacionamentos afetivos, mas isso renderia outra análise latrinal. Portanto, vou ficar aqui apenas no aspecto da amizade.
Com algumas breves e simples reflexões, podemos perceber que há outras formas de utilização e interesse. Quando você é amigo de outra pessoa porque ela gosta de te ouvir, ou porque ela é boa companhia, ou porque ela fala coisas inteligentes, ou porque ela é bonita, etc, você também está utilizando essa pessoa: está utilizando ela como ouvinte, como acompanhante, como speaker, como modelo para futuras masturbações, etc. Portanto, em um pensamento simplório, eu classificaria a utilização e o interesse em dois tipos: o já mencionado explícito, que é aquele quando todos percebem que há um interesse financeiro por trás do negócio; ou o implícito, que seria algo mais ingênuo, mais “correto” sob o ponto de vista da moral ocidental contemporânea.
Aí você pode argumentar: mas e os amigos de infância? Pois bem, quando você era criança, você era amigo do Fulano ou do Beltrano porque tinha interesses e utilizava o próximo: ou para brincar com você, ou porque ele tinha o videogame da hora, ou porque ele fazia tudo que você queria, ou porque você tinha desejos sexuais que ainda não compreendia, etc. Ou seja, não há amizade com 0% de interesse. O que eu chamaria de amizade verdadeira, aquela da máxima “eu só tenho dois ou três amigos de verdade”, são aquelas relações não-sexuais em que essa concepção de utilidade e interesse foi ultrapassada, ou seja, você já aceita ficar no prejuízo com outrem. Ou ainda, você já a colocou na categoria “familiar”. Claro que, a ideia de família, também abordada por Foucault, é outra história, e rende milhares de posts. Mas falo sob o ponto de vista de núcleo familiar, quer dizer, da família tradicional, imortalizada pelo cristianismo...
Bom, como estou escrevendo para a internet e, dizem os estudiosos da Web que os leitores internautas são vagabundos e preguiçosos que não gostam de textos longos, então vou parando por aqui. Se algum dia eu me inspirar de novo, sigo falando sobre esses temas. Empolguei-me porque estou lendo a Hermenêutica do Sujeito, do Foucault, para a minha tese (não para pesquisar o tema amizade, mas ele apareceu no meio do caminho) e, depois, vou seguir com O Governo de Si e dos Outros, para estacionar no ponto de chegada que é A Coragem da Verdade (e aí entra a óbvia relação com o jornalismo).
Enfim, tantas palavras foucaultianas regadas a uma latinha de Bohemia começam a se mostrar perigosas para a minha frágil mente. Portanto, até a próxima!

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home