Estamos virando bovinos?
* Texto publicado em A hora do Sul, de Pelotas-RS
Num sábado
de sol desses, estava caminhando pelo meu bairro, o Areal, quando avistei um
campinho de futebol, daqueles de terra batida, com duas goleiras vazias. Olhei
para o relógio: 16h30. Espiei a temperatura no celular: agradáveis 19 °C. Vi
aquele amplo espaço, cercado por casas cheias de famílias, e me perguntei:
diabos, onde estarão as crianças e adolescentes numa hora dessas? Aquele era o
cenário perfeito para dois amigos de 12 ou 13 anos pegarem uma bola de futebol para
cobrar faltas e, em poucos minutos, começarem a aparecer outras crianças para
se juntar ao grupo, até se formarem dois times com pelo menos sete para cada
lado: os de camisa contra os arquirrivais sem camisa. Lembrei que, alguns anos
atrás, um campinho desses, em qualquer cidade brasileira, contaria com fila de
crianças, adolescentes e até adultos esperando para jogar gratuitamente.
Contudo, não precisei refletir muito para entender o motivo da ausência dos
peladeiros no campinho, pois logo espiei por uma janela escancarada e vi duas
crianças atiradas em um sofá, cada uma com seu celular.
Andando sob
aquele sol perfeito em um final de semana, comecei a formular a seguinte
hipótese: estamos nos parecendo cada vez mais com alguns quadrúpedes. Talvez
mulas, talvez algum bovino. Pensem nos bisões. Esses animais que vivem nas
planícies da América do Norte passam a vida migrando de um canto para outro
atrás de pasto verde e suculento. Conforme a estação do ano, precisam fazer
verdadeiras travessias para fugir do frio ou encontrar mais alimento, tendo que
encarar lobos-cinzentos, ursos e pumas que sonham com suas carnes rijas e fartas.
Agora, imaginem se os bisões encontrassem um campo infinito, com pasto verdinho sem fim. Eles ficariam ali o resto da vida, pastando, dormindo, procriando e defecando, numa ciclicidade entediante. Pois é isso que está acontecendo com o ser humano enfeitiçado pelo celular: ele sai cada vez menos, pois encontra tudo ali — amigos, relacionamentos, sexo, discussões, filmes, crimes, alegrias, frustrações, jogos —, enfim, tudo o que pode preencher os mais variados tipos de sentimentos que ele procura. Estamos virando um bisão que anda em duas patas, com uma pastagem infinita diante de nós. E, infelizmente, não parece haver muito o que fazer. Assim como o bisão só se movimenta quando o pasto some ou congela, nós também só sairíamos mais de casa — seja para jogar bola num campinho de terra batida, seja para flertar por aí — se nos arrancassem os celulares das mãos. O bisão não tem escolha: precisa encarar lobos e ursos para sobreviver. Já nós, que temos escolha, optamos por passar tardes de sábado ensolaradas jogados no sofá, comendo o nosso pasto digital, levantando apenas para ir ao banheiro, dormir, comer e, às vezes, copular. Aliás, do jeito que a coisa vai, logo até isso o ser humano vai deixar de fazer por pura comodidade. No fim das contas, tanto nós quanto os bisões só nos movemos quando alguém tira o pasto — ou o celular — e nos coloca diante de uma necessidade incontornável.
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