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quarta-feira, 7 de maio de 2025

Mimado leitor


Pois não morri, e aqui estou. Quase dois anos depois, resolvi voltar a habitar esse espaço, mais para criar um "arquivo digital" das minhas colunas que escrevo para jornais com acesso limitado e para seguir a lógica de resenhar livros que sei que daqui um ou dois anos já terei esquecido da metade da história do que para qualquer outra coisa. Enfim, começo com a coluna que acabei de enviar para o jornal A hora do sul, aqui de pelotas, falando sobre o mimado e (aqui posso dizer) vagabundo leitor contemporâneo:

Confesso que já praticamente desisti da ideia de escrever literatura. Eu tinha um livro escrito desde 2017, com quase 500 páginas, que enviei para diversas editoras, e a resposta – quando vinha – era algo do tipo: “não publicamos algo desse tamanho”. Ou então: “favor, enviar uma versão reduzida”. Neste ano, quando reenviei mais uma vez para outra editora, já editei antes, fechando em cerca de trezentas páginas. Tudo por conta de que, para competir com outras narrativas (como as dos reels e do TikTok), a literatura contemporânea está cada vez mais mimando os preguiçosos e mentecaptos leitores. Por isso, decidi que, pelo menos momentaneamente, não escrevo mais nada de literatura gratuitamente. 
Lendo o romance Lucky Jim, do escritor britânico Kingsley Amis (1922–1995), tenho certeza de que, se ele enviasse esse clássico da segunda metade do século XX para qualquer editora hoje em dia, ouviria um sonoro NÃO como resposta. Tudo porque se trata de um excelente livro de cerca de 300 páginas, mas que demora umas 60 para engrenar. Você precisa superar seis dezenas de páginas (num mundo que te oferece prazer rápido no celular) para começar a entrar, de fato, na história do professor universitário Jim Dixon, que vive em uma pequena cidade do interior britânico dos anos 1950. Contudo, o tédio das primeiras 60 páginas é NECESSÁRIO para o prazer das seguintes. Algo que o leitor mimado e preguiçoso de hoje não compreende. Ele quer algo divertido, prazeroso e rápido. Não quer ter que passar dois dias lendo um livro para só então começar a sentir prazer. 
Em outras palavras, é como um torcedor de futebol que só quer vencer. Ele não quer estar perdendo nunca. Isso pode parecer bom, inicialmente, mas, se conseguir isso, jamais terá o prazer de comemorar uma virada histórica (como a Inter de Milão fez dias desses contra o Barcelona) ou celebrar uma fase vitoriosa após temporadas péssimas. É o sofrimento anterior que potencializa o prazer e a satisfação posterior. A vida é assim. Mas tenho certeza de que, se eu entregasse Lucky Jim para um editor ler sem dizer que é um clássico britânico, ele não passaria da página 10. Tudo porque – para ter leitores – as editoras e até mesmo os escritores tentam mimar os leitores de todas as formas possíveis. O início da obra precisa “prender o leitor”, a sequência tem que ser bombástica e o enredo precisa arrancar suspiros, lágrimas, risos, raiva e todos os sentimentos a cada página, a cada parágrafo e a cada linha. Querem jogar para a literatura uma vida que não existe: sem tédio, sem derrotas. Nego-me a participar desse jogo.
Por isso, leio mais autores de outras gerações do que das atuais. Certo, há muita coisa boa sendo produzida e publicada por aí, mas, quando se analisa mais atentamente, percebe-se que o escritor está tentando te mimar. A trilogia clássica de Henry Miller (Sexus, Nexus e Plexus) receberia hoje como parecer: “ninguém vai ler esse calhamaço de páginas divagando sobre a vida”. Em síntese: ou você tenta bajular e mimar mais o mal-acostumado leitor, ou não publica nada, pois, sem ter seu saco puxado intensamente, o mimado leitor não paga seu precioso dinheirinho para o editor – quiçá para o autor.
 

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