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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O reino deste mundo

 

Apesar da capa bonita da edição da Martin Fontes de 2009 e de ter apenas 132 páginas, “O reino deste mundo” não é um livro fácil. As sinopses que tem por aí, também enganam. Dizem que essa obra publicada em 1949 pelo escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980) foi uma das precursoras do realismo mágico sul-americano, inspirando “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez. Se foi ou não, eu não sei, mas são textos bem diferentes, estilisticamente falando. Enquanto na do escritor colombiano você consegue acompanhar a narrativa de boa, na do cubano é bom você ler com o celular do lado para entender o que certas palavras ou personagens significam. Aliás, mesmo mesclando personagens reais com fictícios, ele não cita nenhuma data e, como tais personagens não são famosos na história ocidental, como um Napoleão ou um Getúlio Vargas no caso brasileiro, você precisa dar um “Google” para sabem quem foi quem na vida real – ou vai ficar boiando, porque Carpentier não dá maiores explicações sobre quem é cada um, cagando para o burrinho leitor.

Por isso, e muito mais, “O reino deste mundo” não é fácil. A linguagem é um tanto quanto hermética e isso quer dizer que quando você pega esse livro para ler é bom estar bem concentrado. Não é uma narrativa para tentar acompanhar enquanto tem gente conversando ao redor ou na hora em que rola um jogo de futebol na TV. Pelo primeiro parágrafo, já dá para se ter uma ideia. “Entre os vinte garanhões trazidos ao Cabo Francês pelo capitão de barco que andava de conchavo com um criador normando, Ti Noel escolhera sem vacilação aquele reprodutor corpulento, de garupa redonda, bom para a remonta de éguas que pariam potros cada vez menores”.... E assim segue.

Antes de ler, eu achava que se tratava de um livro sobre a revolução haitiana, que começou em 1791 e foi até 1804. Porém, na verdade ele pega o antes, o durante e o depois, mas sem explicar exatamente o que e quando está acontecendo. Assim, eu descobri as datas da revolução no Google, bem como sabia o ano em que a história estava se passando quando apareciam nomes de personagens que, deduzi, poderiam ser históricos. Um deles é Mackandal, que inicia um dos levantes dos negros escravizados pelos franceses, e que nasceu em 1702 e morreu em 1758, queimado. Assim, quando matam o personagem na narrativa, eu sei que estava no ano de 1758. O mesmo vale para o resto da história: se você for pesquisando quem foi quem, você descobre o ano em que o fato aconteceu, bem como quem foi cada personagem. Lá pelas tantas, por exemplo, aparece Paulina Bonaparte, que eu, do alto da minha ignorância, não sabia quem era, apesar do famoso sobrenome. Por saber que esse período mais ou menos coincide com o da Revolução Francesa, imaginei que fosse alguma parente direta de Napoleão. E pesquisando no Google, descobri que, sim, era a irmã de Napoleão, pois Carpentier não se preocupa em explicar nem contextualizar absolutamente nada – você que lute, como diriam os jovens de hoje em dia. Você está lá, lendo a trajetória de Ti Noé – personagem principal – e de repente aparece Paulina Bonaparte, sem mais nem menos, e você não faz ideia quem ela é, de onde ela veio, o que ela representa e, muito menos, que é a irmã do Napoleão.

O problema maior, no entanto, é que a revolução começa e termina sem você perceber, pois décadas se passam em questão de poucas páginas. Em nenhum momento o autor diz: começou a revolução. Você descobre que falta pouco o que está rolando fazendo essas pesquisas paralelas. Isso me faz perguntar como as pessoas liam e compreendiam antes da internet? Digamos, um leitor de 1980. Teria que ler o troço todo com uma enciclopédia da história do Haiti ao lado para não ficar boiando.

Algumas coisas você até deduz, mas sempre fica suscetível a cometer erros de interpretação. Quando aparece Henri Christophe, por exemplo. Aos poucos você percebe que era um novo chefão do Haiti. Mas você se pergunta se é antes ou depois da revolução, pois se foi antes, o sujeito devia ser branco, se foi depois, seria negro. Ai vou no Google e descubro que ele foi o primeiro rei negro após a revolução. Isso muda tudo. Porque o personagem, em pouco tempo, está trabalhando de escravizado para Christophe. Isso fica claro mais adiante, mas dá um nó na cabeça do leitor que vai lendo sem antecipar essa informação na internet.

Bueno, em resumo, “O reino deste mundo” é um quebra-cabeça para quem gosta de história e literatura. Na medida em que você vai montando, você vai gostando, porque conta a história de um dos únicos países em que os escravizados fizeram uma revolução “bem sucedida”, matando todos os colonizadores (incluindo mulheres e crianças) e instaurando uma República com praticamente toda a população negra. É como se a “Revolta Malês”, do Brasil, tivesse dado certo. Porém, também mostra os problemas pós-revolução, pois o novo governo, formado por ex-escravizados, escravizam os mais fracos, criando um novo clã e uma nova aristocracia com divisões de classes sinistras. O último capítulo, inclusive, é arrebatador. Numa metáfora, Carpentier compara o nosso sistema de viver em sociedade à história de uma comunidade de gansos, que começa a viver em paz, mas que em pouco tempo tem dois gansos disputando o poder. “O clã mostrava-se agora uma comunidade aristocrática, absolutamente fechada a todo indivíduo de outra casta. O Grande Ganso de Sans-Souci não queria o menor contato com o Grande Ganso de Dondón. Se tivessem se encontrado frente a frente, teria estourado uma guerra. Por isso Ti Noel logo compreendeu que, embora insistisse durante anos, jamais teria o menor acesso às funções e ritos do clã. Foi-lhe dado a entender claramente que não lhe bastava ser ganso para acreditar que todos os gansos fossem iguais”. Simples assim.

Enfim, é um livro que, se você tiver paciência e disposição, vale a pena ler, pois te faz refletir sobre a condição humana e a bestialidade da nossa espécie, que nos dá exemplos de desumanidade diariamente no século XXI. Caso contrário, não se deixe enganar pela capa bonitinha e pelo resumo pomposo da orelha do livro, pois não é nenhum mamãozinho com açúcar literário para ser lido como mero passatempo.

Hasta!

 

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