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sábado, 24 de junho de 2017

A garota de azul

Era um meio de tarde de um dia de semana qualquer. Era horário de trabalho. As pessoas corriam a pé ou de carro de um lado para o outro, preocupadíssimas com seus compromissos diários intransferíveis: contas para pagar, reuniões cansativas, cobranças para fazer, desculpas para inventar ao chefe ou à esposa chata pelos minutos atrasados. E eu estava ali, sentado de frente para a garota de azul, bebericando minha cerveja. As outras três garotas que estavam com ela, não me interessavam. Na verdade, nem sei como eram, pois meus olhos estavam todos voltados para a garota de azul. Lá dentro do bar, meia dúzia de caras com cara de mau jogavam sinuca. Volta e meia um deles cutucava o outro e apontava para a mesa ocupada por quatro garotas. E uma delas, era a garota de azul. A única que me interessava.
Ela não me olhava. Nem precisava. Eu olhava por nós dois. Ela conversava com as outras e eu não ouvia as palavras, apenas observava a sua pele branca, o cabelo negro e a blusa azul. Eu viajava no som de sua voz que chegava quase inaudível aos meus ouvidos, dançava mentalmente com ela em um salão de festas fitando os seus olhos verdes que, naquele momento, não estavam nem aí pra mim. Da minha mesa eu apenas observava enquanto sonhava acordado. Eram três da tarde de um dia de semana. Eu deveria estar no meu escritório, preocupado como todo mundo, pensando de onde vou tirar dinheiro para fechar o orçamento do mês, apoquentado com as pensões das duas ex-mulheres, mães de meus dois filhos. Eu deveria estar preocupado com a minha avó, internada na UTI há uma semana. Deveria estar de luto pelo Banzé, meu único companheiro desde que me separei da última vez e que foi para o céu dos caninos há duas semanas. Deveria estar respondendo as mensagens das outras garotas, as de vermelho, branco, amarelo e verde, que apareceram na minha vida desde o último divórcio. Mas eu não gosto de vermelho, branco, amarelo e verde. Eu gosto de azul. E aquela garota na mesa em frente à minha estava de azul. E ela fica absolutamente perfeita de azul. Fico imaginando o que ela pensa, o que ela faz, do que ela gosta, o que ela já viveu, qual foi a melhor viagem de sua vida, quais são seus sonhos, se ela conseguiria enxergar que eu posso ser bem mais do que um cara comum sentado numa mesa de bar num dia de semana qualquer no horário do expediente. Penso nisso tudo enquanto a observo. Ela ri. Seu sorriso é lindo. Apaixonante. Uma das garotas fala e fala e fala e ela fica observando a sujeita com testa semi franzida. Como eu gostaria de ver aquele rosto me olhando com aquela expressão. Talvez se eu levantasse e perguntasse qualquer coisa banal, do tipo: “Hey, garota de azul, vamos sair daqui, esquecer essas pessoas, colocar meia dúzia de roupas numa mochila e cair na estrada pela América Latina? Eu até conheço um hostel legal perto de Macho Picho, acho que você iria gostar e...”. Não, ela não tem jeito de ser aventureira. Minhas duas últimas esposas também não eram. Tive que optar: ou viver a vida ou viver para elas. Escolhi viver a vida. Mas, não sei por que, a garota de azul parece me entender. Seus olhos transmitem uma sensação de liberdade, de paz, de ficar bem, de amar e ser amado sem cobranças... Como se fosse possível.... Olhando para ela, penso que tudo é possível... Só posso estar ficando louco...
Acaba a cerveja, peço mais uma. Elas seguem conversando. Bebem Coca Cola. Minhas duas últimas ex também não bebiam bebida alcoolica. Mas a garota de azul me da uma espiada, como se quisesse um gole da minha cerveja. Seu olhar dura 2,2 segundos. É o suficiente para entender: é o tipo de garota que procura muito mais do que um rostinho bonito ou um cara que anda de carro importado e telefone celular, como diria o Chorão... É o tipo de garota que sabe o que quer, que pode não aceitar um copo de cerveja num bar como aquele, mas que topa tomar um bom vinho viajando com um mochilão nas costas na beira da Cordilheira dos Andes. É a garota que eu sempre sonhei, mas nunca encontrei. Aliás, é a garota que eu achei que sequer existisse. Mas ela existe, e está ali, na minha frente, numa mesa de bar num dia de semana qualquer durante o horário de expediente vestindo uma blusa azul.
De repente elas se levantam. Parece que vão embora. Sinto que tenho que fazer alguma coisa, mas nada me ocorre. Estou paralisado pela beleza da garota de azul. Elas vão ao balcão pagar a conta e não me olham. Normal. Por que olhariam para um cara sentado sozinho numa mesa de bar num dia de semana no horário do expediente? Elas pagam a conta e vão embora. Eu fico olhando a garota de azul até que ela some do meu campo de visão. Tento guardar a sua imagem para sempre, mesmo sabendo que, no fundo, em alguns dias eu não terei condições de lembrar como era o seu rosto. No máximo lembrarei da blusa e dos cabelos negros. Um nó invade meu peito, pois sei que terei que voltar para as garotas de amarelo, verde, roxo, lilás, rosa, preto, branco, laranja e bege. Sei que posso ter todas elas, mas eu só quero a garota de azul.
Duas semanas se passam, até que vou pegar o ônibus da minha cidade para a fronteira com a Argentina. Vou começar um mochilão de dois meses por aí, sem rumo. Na minha mente, não observo as blusas multicoloridas das outras garotas, pois penso apenas na garota da blusa azul. O ônibus anda e, após algumas horas, para na rodoviária de uma cidadezinha qualquer. Meu coração quase para quando vejo ela, a garota de azul, entrar no mesmo ônibus. E com apenas uma mochila nas costas. Sorrio ao ver ela passar sem me olhar e concluo: sim, ela é a garota da minha vida. Para a minha sorte, dessa vez também estou vestindo uma blusa azul.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Vida e morte

Na última semana, quando estava indo de Frederico Westphalen, no norte do Rio Grande do Sul, para Pelotas, no sul do estado, tive duas experiências na mesma viagem que me deixaram pensando na vida e na morte. São coisas banais, que vezemquando a gente pensa, mas que quando menos esperamos resolvem aparecer diante dos nossos olhos para mostrar: hey, babaca, não é só teoria não! Isso também é prática!
Primeiro, eu já tinha passado da metade do caminho e estava ouvindo uma música qualquer no rádio, cantando, batucando com as mãos no volante, feliz da vida, pois o sol havia aparecido e a minha vida parecia perfeita. Eu olhava para os lados, olhando a “paisagem” em volta. Aquele caminhão com uma porta preta gigante na minha frente e uma barra de ferro vermelho e branca era só mais um trambolho em cinquenta rodas entre tantos que já estava acostumado a ultrapassar viajando por aí. Eu REALMENTE estava distraído e feliz. E nesse momento de distração que, de uma hora para a outra, a minha vida quase se encerrou. Numa fração de segundos, eu via aquele caminhão absolutamente parado na minha frente, derrapando para o acostamento. Por reflexo, desviei dele, mas, para isso, entrei na contramão. Atravessei a outra pista e derrapei num barranco, quase caindo para baixo, obviamente, pois seria difícil cair pra cima.. Enfim... O susto foi grande. Fiquei quase uma hora parado. O cara do caminhão na minha frente bateu na traseira de outro caminhão. E o motorista do primeiro disse que freou repentinamente para não bater em um carro, que como não foi atingido, seguiu viagem tranquilamente.
Bom, vamos às possibilidades, que seriam normais, se tivessem acontecido. Primeiro, e mais óbvio, seria na hora em que entrei na contramão vir um carro ou um caminhão e bater de frente no meu carro. Difícil imaginar o que aconteceria, mas é bem possível que não estaria aqui, agora, digitando essas linhas. Segundo, eu poderia estar olhando para o lado e ter parado literalmente embaixo daquele caminhão. Também seria difícil escapar. Terceiro, eu poderia ter virado no barranco. Nesse caso, acho que até escaparia. Acabou acontecendo o menos pior: apenas bati de leve na ponta do caminhão, amassando um pouco o carro. Eu, particularmente, saí ileso.
Respirei fundo, tentei assimilar tudo aquilo, e segui viagem. Já havia escurecido, eu recém havia passado por um pedágio (se não me engano, em Canguçu), não tinha nenhum outro carro ou caminhão por perto, e acelerei, pois não via a hora de chegar. Estava a uns 110 ou 120 km/h quando, de repente, vejo sair do matagal um gato. Não deu tempo de nada, só de pensar “não corre, filho da puta. Fica aí, fica aí, fica aí... Putamerda”. Lastimei, mas não pude fazer absolutamente nada. Apenas senti um “blupt” no pneu dianteiro. Fiquei mal. Porra! Há poucos momentos tive muita sorte. Sei lá se foi o destino ou o acaso que me salvou, mas tudo o que sobrou pra mim, faltou praquele pobre bichano.
Ele estava no lugar errado, na hora errada. Foi cruzar a rodovia justamente no momento em que eu passava. Isso poderia ter acontecido comigo, se um caminhão viesse na contramão na hora em que mudei de pista para não bater no outro, que freava repentinamente na minha frente... Por que eu tive essa sorte e o gato não? E se fosse uma gata, que estava procurando comida para seus gatinhos pequenos? E se esse gato tivesse tido um dia super feliz, como o que eu tive? Se ele tivesse deixado a sua gata em casa e, voltando para o seu canto, teve que cruzar a pista justamente na hora em que eu passava? A pobre gata pode estar esperando o amado bichano até agora... Difícil entender...
É complicado processar o que acontece na nossa vida, inclusive o fim dela, a morte. Até agora não assimilei a perda do meu amigo e colega Wesley Grijó, que partiu na sexta-feira da mesma semana dessa viagem. Por que ele, e não outro? Não vou (até porque nem posso) tentar responder a essa pergunta. Mas, futuramente, pretendo escrever um texto sobre ele, que em pouco tempo encantou a todos com quem ele teve um pouco mais de contato, com sua inteligência e humor sutil e, por vezes, cínico-realista. Aprendi muito com ele em pouco tempo. Pena que não teve a mesma sorte que eu tive, pois sorte é a única palavra que justifica o fato de eu estar aqui, escrevendo essas linhas agora.

sábado, 3 de junho de 2017

Uma dose de loucura


Some may never live
But the crazy never die
Alguém talvez nunca viva
Mas o louco nunca morre

Diz o quadro que está
Acima da minha cabeça
Não sei se sou louco o suficiente
Para nunca morrer
Às vezes gostaria de ser só um pouco
Mais louco do que tento ser

Contudo, há pessoas que ainda conseguem
Puxar-me de volta para a terra
Para a realidade
Nua e crua
Triste e fria
Solitária e vazia

Então eu grito:
Não, deixem-me flutuar
Deixem-me acreditar no impossível
Sonhar com o improvável
Desejar o intocável

Deixem-me voar por ai
Sendo mais um louco
A cantar pelos bares e praças
A dançar na chuva agarrado
Às patas dianteiras de um cão de rua
A gritar para dizer que é bom

É bom ser louco
E eterno
Mas não sou louco o suficiente
Para ser tão bom quanto
Um morto imortal

Preciso só de mais uma dose de insanidade
Para me desprender de tudo o que me faz mal
Que me deixaria eternamente terno
E que talvez me faria
Sentir o gozo infinito
Daqueles que não sofrem
Por serem loucos