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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Aviões, tragédias, dor e lembranças

Todos que me conhecem sabem: tenho pânico de avião. Se não tem jeito, até encaro as nuvens, como foi no caso das viagens de ida e volta do Brasil para Nova York. Mas, se tem outra possibilidade, vou por terra. Sei que é irracional e mais perigoso pegar a estrada, mas nunca gostei da sensação de estar lá em cima. Enquanto não sinto aquele trombolho voltar à terra firme, qualquer barulho diferente que o avião faça, deixa-me pensando que o negócio está caindo. Por isso já fui e voltei do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, etc, de busão. E por isso, depois de uma viagem de ida de três horas, morrendo de medo, de Porto Alegre para Fortaleza, encarei três dias de ônibus para voltar (ainda contarei aqui essa história em detalhes, se é que alguém deseja saber).
Em 1996, exatamente nove anos antes de realizar a primeira viagem de avião, sofri demais com a morte dos Mamonas Assassinas. Eu tinha 14 anos, estava ingressando no 1° ano do Ensino Médio, e era absolutamente fanático por eles. Poucos dias antes da tragédia, minha família e eu passeávamos em Xangri-lá, litoral gaúcho, e enxergamos o quinteto em um hotel que ficava a uma quadra de onde estávamos hospedados. Eles abanaram da janela, deram toda a atenção do mundo para os fãs, etc. Se fosse hoje em dia, teríamos gravado com celular. Nesse período, eu também era um milhão de vezes mais fanático do que sou hoje pelo Grêmio. O tricolor era, literalmente, a minha vida. Eu rezava ajoelhado diante da cruz, de Nossa Senhora, de qualquer santo, para pedir vitórias ao time de Felipão. E elas vinham. O que aconteceu comigo na noite do acidente, eu atribuo muito mais a esses elementos psicológicos de fanatismo por Mamonas e Grêmio, do que a qualquer premonição ou sinal do além. Ou seja, o que vou contar não é uma tentativa de tentar me tornar um Paulo Coelho charlatão da literatura que vem com esses papos de "correr atrás da pedra fundamental e ouvir mensagens místicas de espíritos seculares”. Simplesmente vou contar o que aconteceu, descritivamente, sem pedir para ninguém acreditar, tampouco implorar por interpretações bestas. O fato é que, o que aconteceu, eu nunca mais esqueci (e algum psicólogo talvez possa concluir que aí está a origem do meu medo de avião).
Era março de 1996 e no dia seguinte seria o primeiro dia do ano letivo. Lembro-me apenas do sonho que tive. Eu estava em um churrasco, em um lugar que parecia uma fazenda, com uma mesa longa de madeira, parecida com a que tinha na casa da minha família, em Santo Ângelo, e todo o pessoal dos Mamonas estava lá: Dinho, Júlio, Samuel, Sérgio e Bento. Lembro que eu estava me divertindo muito. Era um sonho dentro de um sonho. Ou seja, eu estava realizando um sonho enquanto dormia (como já deve ter acontecido com todo mundo ao menos uma vez na vida). Porém, lá pelas tantas, no meio da animação, enquanto todo mundo estava rindo, o Júlio, que vestia a camisa azul celeste do Grêmio, ficou quieto, com ar sério, olhar triste. Todos seguiam se divertindo, menos ele. Perguntei o que tinha acontecido, e ele disse “nada, nada... aproveita aí...”. Eu insistia para que me contasse, mas meu pedido era paciente e tristemente negado. Gentilmente ele apenas dizia para aproveitar e me divertir. Acordei, tomei banho e bebi o meio litro de Nescau com leite que era meu vício naquela época. Estava animado com o primeiro dia de aula, depois de umas férias perfeitas no litoral. Cruzei com meu pai na cozinha e, lembro até hoje, ele dizendo: “Os Mamonas se foram...”. Arregalei os olhos e com um frio na barriga perguntei, sem entender nada: “Como assim?” e ele: “Fui no posto abastecer agora há pouco e estava passando na TV que o avião deles caiu e todos morreram”. Foram palavras apocalípticas. Poucos minutos atrás, eu estava com todos eles no meu sonho, divertindo-me pra caramba e com o Júlio triste, reflexivo. Fiquei zonzo, sem conseguir acreditar no que tinha acontecido (e confesso que até hoje quando lembro de tudo isso, ainda não acredito). Enfim, essa é a história que até esse momento eu havia contato para meia dúzia de pessoas, sendo que provavelmente ninguém acreditou nela (o que, para mim, não faz a mínima diferença).
Hoje, 20 anos depois, fico estarrecido, juntamente com o mundo inteiro, com a notícia da maior tragédia do futebol: o acidente envolvendo a Chapecoense que, até o momento em que redijo essas linhas, contabiliza 71 mortos e seis feridos. Também não acredito e acho que nunca vou conseguir acreditar. É absurdo demais. É triste demais. Lembranças passam pela cabeça de todos, inclusive de quem não conviva com nenhuma das vítimas: torcedores do Palmeiras custam a acreditar que no domingo aquele mesmo time era adversário. Torcedores do Nacional de Medelím, custam a acreditar que o time que caiu perto da cidade e que iria entrar em campo para disputar contra eles a final da Copa Sul Americana agora está morto. Eu, custo a acreditar que os caras que vi jogar na Arena Condá, em Chapecó, contra o Grêmio no primeiro turno do Brasileirão, não estão mais vivos. Também é difícil engolir a morte de tantos colegas de profissão: mais de 20 profissionais da mídia, entre jornalistas e cinegrafistas. Além da tripulação, que viajava cotidianamente de um canto para outro do mundo. Cada uma dessas vítimas tinha uma história incrível. Cada uma dessas vítimas deixou pais, mães, irmãos, filhos, parentes, amigos, sem chão. E deixou o Brasil inteiro de luto e estarrecido.
Hoje, a única coisa que me fez rir, foram as brincadeiras da minha filhinha. Mas parecia que até ela hoje estava mais manhosa. As pessoas na rua, em Frederico Westphalen, que fica a uma hora e meia de Chapecó, só falavam no acidente. Sem exagero. Eu passei por um grupo de senhoras, que comentavam as notícias. Um grupo de senhores, que especulavam o que vai acontecer com a Chapecoense. Já um grupo de adolescentes lembrava onde cada um dos jogadores da Chape jogavam antes de ir para Santa Catarina. No Facebook, 90% das postagens são sobre o acidente. Canais de televisão fazem a cobertura 24 horas. Eu, que já não falo muito, praticamente não abri a boca desde que ouvi a notícia no rádio do carro. Acabei encontrando nesse texto uma forma de colocar as falas dos meus pensamentos: o medo de avião, a lembrança do caso Mamonas e o dia trágico, triste e inesquecível de hoje. E, para uma pessoa como eu, só sobrou uma alternativa: escrever para não enlouquecer. Não enlouquecer de tristeza, dor e de comoção.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Quanto vale um Flaubert?

Tenho muitas dívidas de leituras. Sacam aquela lista de livros que você pretende ler antes de morrer? Se você não sabe, então abandone esse texto e vá conferir fotos no instagram, compartilhar correntes, ver vídeos bestas no whats e postar frases inventadas e atribuídas a escritores e filósofos no Facebook. Nada contra, mas esse texto não é para você. Caso contrário, você é uma das raras pessoas que me entende. Hoje matei mais uma obra dessa lista: Madame Bovary, um dos clássicos da literatura mundial, escrito por Gustave Flaubert. Pois é, às vezes me sinto um picareta literário ao me dar conta da quantidade de livros, entre clássicos e aqueles que achamos ao acaso, que ainda não li. E, terminando de ler Madame Bovary, fiquei imaginando como seria a negociação para a publicação dessa obra hoje, em 2016, no século XXI. Creio que um diálogo com mensagens de voz via whats entre o editor e Flaubert seria mais ou menos assim:

Editor: Acabei de ler os originais.
Flaubert: É mesmo, e aí?
Editor: Posso ser sincero?
Flaubert, suspirando: Claro...
Editor: Você tem potencial, mas... (cinco segundos de silêncio), do jeito que está, não rola. Até tem qualidades literárias, mas ninguém vai comprar....
Flaubert: ...
Editor: Sua linguagem é muito rebuscada. Seus parágrafos são muito longos. As descrições são cansativas. Os personagens pensam demais...
Flaubert: ...
Editor: São muitas páginas. O papel está caro. E quem lê no monitor ou na telinha do celular quer algo mais sucinto, mais prático, mais coloquial, mais direto ao ponto, entende?
Flaubert: Por supuesto.
Editor: As pessoas querem coisas que não as façam pensar...
Flaubert: Claro.
Editor: Olha, essa sua versão... são 340 páginas... Tem muitos termos técnicos da medicina e da farmacologia que as pessoas não conhecem... Você dá muito espaço aos personagens secundários... E o Charles é muito burro... Não vai colar. Podemos mexer no final, quando ele se encontra com o amante da finada esposa... Poderia rolar uns tiros, alguns socos pelo menos... Quem sabe dá até filme...
Flaubert: ....
Editor: Mas voltemos ao livro. Primeiro, tens que reduzir de 340 para 150 páginas. Jogo rápido, pá, pum, neguim compra, lê, no outro dia esquece... Depois lançamos novela, minissérie e filme, se pá, até jogo de videogame e ninguém nem vai lembrar do livro...
Flaubert: ...
Editor: E tens que trocar uma série de palavras: “acendalha”, “superfluidade”, “arandelas”, etc... Olha, já ouviu falar no dicionário dos sinônimos no Google? Pois é, acha umas palavras mais fáceis, que as pessoas leiam e entendam sem pensar muito.
Flaubert: Ok. E, suponhamos que eu aceite as suas sugestões de alterações, quanto vocês vão me pagar?
Editor: Como assim?
Flaubert: Quanto vai ser pago pela obra?
Editor. Veja bem. Não é mais como antigamente. Não estamos mais no século 19, e sim no 21, na pós-modernidade! As coisas evoluíram. O mercado é concorrido e, como você sabe, a conjunta econômica não nos permite fazer investimentos arriscados...
Flaubert: ...
Editor: Então, você manda essa nova versão, bonitinha, sem palavras difíceis, com mais ação, em 150 páginas no máximo, e a gente faz um orçamento. Se ficar bom, você compra 80% dos exemplares e os outros 20% a gente assume o risco...
Flaubert: Em resumo, eu terei que pagar pelo meu próprio trabalho?
Editor: É uma maneira pessimista de interpretar a situação... Ah, e outra coisa, temos que mudar o título: Madame Bovary não vai pegar...
Flaubert: Nada feito. Boa sorte com o seu negócio.
Editor: Pense bem.
Flaubert: Não tenho mais nada a pensar.
Editor: Ok, boa sorte com a sua literatura rebuscada.

E, assim, o editor publicaria um livro de 150 páginas do consagrado Paulo Coelho e enxeria os bolsos de dinheiro enquanto o nosso Flaubert do século XXI morreria no anonimato publicando centenas de páginas em blogs que teriam, no seu ápice, cinco acessos, sendo quatro por engano.