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sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Quanto vale um Flaubert?

Tenho muitas dívidas de leituras. Sacam aquela lista de livros que você pretende ler antes de morrer? Se você não sabe, então abandone esse texto e vá conferir fotos no instagram, compartilhar correntes, ver vídeos bestas no whats e postar frases inventadas e atribuídas a escritores e filósofos no Facebook. Nada contra, mas esse texto não é para você. Caso contrário, você é uma das raras pessoas que me entende. Hoje matei mais uma obra dessa lista: Madame Bovary, um dos clássicos da literatura mundial, escrito por Gustave Flaubert. Pois é, às vezes me sinto um picareta literário ao me dar conta da quantidade de livros, entre clássicos e aqueles que achamos ao acaso, que ainda não li. E, terminando de ler Madame Bovary, fiquei imaginando como seria a negociação para a publicação dessa obra hoje, em 2016, no século XXI. Creio que um diálogo com mensagens de voz via whats entre o editor e Flaubert seria mais ou menos assim:

Editor: Acabei de ler os originais.
Flaubert: É mesmo, e aí?
Editor: Posso ser sincero?
Flaubert, suspirando: Claro...
Editor: Você tem potencial, mas... (cinco segundos de silêncio), do jeito que está, não rola. Até tem qualidades literárias, mas ninguém vai comprar....
Flaubert: ...
Editor: Sua linguagem é muito rebuscada. Seus parágrafos são muito longos. As descrições são cansativas. Os personagens pensam demais...
Flaubert: ...
Editor: São muitas páginas. O papel está caro. E quem lê no monitor ou na telinha do celular quer algo mais sucinto, mais prático, mais coloquial, mais direto ao ponto, entende?
Flaubert: Por supuesto.
Editor: As pessoas querem coisas que não as façam pensar...
Flaubert: Claro.
Editor: Olha, essa sua versão... são 340 páginas... Tem muitos termos técnicos da medicina e da farmacologia que as pessoas não conhecem... Você dá muito espaço aos personagens secundários... E o Charles é muito burro... Não vai colar. Podemos mexer no final, quando ele se encontra com o amante da finada esposa... Poderia rolar uns tiros, alguns socos pelo menos... Quem sabe dá até filme...
Flaubert: ....
Editor: Mas voltemos ao livro. Primeiro, tens que reduzir de 340 para 150 páginas. Jogo rápido, pá, pum, neguim compra, lê, no outro dia esquece... Depois lançamos novela, minissérie e filme, se pá, até jogo de videogame e ninguém nem vai lembrar do livro...
Flaubert: ...
Editor: E tens que trocar uma série de palavras: “acendalha”, “superfluidade”, “arandelas”, etc... Olha, já ouviu falar no dicionário dos sinônimos no Google? Pois é, acha umas palavras mais fáceis, que as pessoas leiam e entendam sem pensar muito.
Flaubert: Ok. E, suponhamos que eu aceite as suas sugestões de alterações, quanto vocês vão me pagar?
Editor: Como assim?
Flaubert: Quanto vai ser pago pela obra?
Editor. Veja bem. Não é mais como antigamente. Não estamos mais no século 19, e sim no 21, na pós-modernidade! As coisas evoluíram. O mercado é concorrido e, como você sabe, a conjunta econômica não nos permite fazer investimentos arriscados...
Flaubert: ...
Editor: Então, você manda essa nova versão, bonitinha, sem palavras difíceis, com mais ação, em 150 páginas no máximo, e a gente faz um orçamento. Se ficar bom, você compra 80% dos exemplares e os outros 20% a gente assume o risco...
Flaubert: Em resumo, eu terei que pagar pelo meu próprio trabalho?
Editor: É uma maneira pessimista de interpretar a situação... Ah, e outra coisa, temos que mudar o título: Madame Bovary não vai pegar...
Flaubert: Nada feito. Boa sorte com o seu negócio.
Editor: Pense bem.
Flaubert: Não tenho mais nada a pensar.
Editor: Ok, boa sorte com a sua literatura rebuscada.

E, assim, o editor publicaria um livro de 150 páginas do consagrado Paulo Coelho e enxeria os bolsos de dinheiro enquanto o nosso Flaubert do século XXI morreria no anonimato publicando centenas de páginas em blogs que teriam, no seu ápice, cinco acessos, sendo quatro por engano.

1 Comentários:

  • Tá, teu leitor nº 1 leu. É hilário mas o troço tá bem assim mesmo. Abraço.
    Há, to lendo o teu livro, podemos dizer que o sr leva jeito, mas precisa ter uma conversinha com o editor do Flaubert. Hahahaha.

    Por Blogger Marcos, às 19 de novembro de 2016 às 02:51  

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