.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Partículas Elementares

Do alto da minha ignorância sobre literatura francesa e europeia contemporânea, descobri o francês Michel Houellebecq através do livro “Um escritor no fim do mundo”, do Juremir Machado da Silva. Nessa narrativa, Juremir narra a viagem feita acompanhando o escritor francês até a Patagônia argentina, a pedido deste. Nas últimas páginas da minha agenda, todos os anos, eu anoto alguns livros que pretendo ler no futuro e, na minha agenda de 2017 eu tinha escrito, entre outras obras e autores: Michel Houellebecq – Partículas Elementares ou A possibilidade de uma ilha. No final do ano, depois de ler outros romances – geralmente mais curtos, pois tenho que dividir o tempo da leitura com as aulas, os alunos, a família, o Grêmio, os cachorros e a escritura – eu resolvi encarar Seigneur Michel e pedi de Natal para a minha mãe (isso aí, pedi dois livros pra ela) o Partículas Elementares.
Dos três livros que ganhei do Papai Noel, o Partículas Elementares foi o último a ser lido justamente porque parecia ser o mais “pesado”. Na verdade, vendo a capa, e pensando que esse era um livro escrito por um escritor de certa forma acadêmico e indicado por outro escritor acadêmico, tive medo de ser monótono, erudito em excesso ou algo assim. Ledo engano. Depois de ler Partículas Elementares, eu o coloquei naquele rol seleto de “um dos melhores livros que já li”. Ainda mantenho Dom Quixote no topo da lista, e alguns outros antes do Partículas mas, certamente, teria lugar numa lista de os 20 Mais ou algo assim. Mas chega de lero-lero e vamos à obra.
Para começo de conversa, é difícil sistematizar o enredo. Como características gerais, tem aquele humor cínico, direto, sem rodeios e por vezes até bukowskiano de autores que não se preocupam se vão agradar ou não o leitor. Uma mistura nada convencional de Paulo Francis com Heny Miller. Aliás, o livro foi chamado de “demente”, “sem noção”, “preconceituoso” e de outros adjetivos do gênero pelos famosos críticos. Também, se não fosse assim, não seria aclamado pelo professor Juremir. E também, se fosse um livrinho bem comportado de família, dificilmente eu o incluiria na minha lista de melhores livros que já li. Até porque é uma ficção que, obviamente, tem alguns traços autobiográficos (como todas as ficções). No entanto, ficar bravo ou criticar as ideias e as falas dos personagens é tão insano quanto um telespectador xingar o autor de uma novela por ele incluir um personagem psicopata no enredo. Eis a confusão que alguns “especialistas” em crítica literária fizeram. Parto, então, dos dois personagens principais da obra.
Michel Djerzinski é o irmão mais novo de Bruno. Os dois são irmãos por parte de mãe e, conforme a perspectiva de Bruno, ambos são filhos de uma puta. Bruno nasceu do relacionamento da mãe com outro cara open mind dos anos 1950. Quando ela engravida, eles resolvem ter o bebê, mas chegam ao consenso de que nenhum deles quer abrir mão de sua vida e liberdade pelo filho, assim, Bruno é criado pela avó materna, que morre quando ele tem dez anos e, então, vai para um colégio interno onde sofre o que hoje é chamado de bullying de último grau, com xingamentos, perseguições, agressões humilhantes e até abuso sexual.
O pai o visita lá de vem quando, mas não apresenta nenhuma preocupação com o crescimento ou desenvolvimento do garoto. Enquanto isso, dois anos depois de ter Bruno, Jane, a mãe dele, passa a namorar um repórter cinematográfico e desse relacionamento nasce Michel. O casamento já está falido quando, depois de chegar de uma viagem, o pai de Michel chega em casa e encontra várias pessoas peladas e bêbadas dormindo pelos cantos e Michel, ainda bebê, todo cagado chorando. Ele pega o nenê e leva para a sua mãe cuidar, em outra cidade no norte da França. Assim, enquanto Bruno é criado pela avó materna, Michel é criado pela avó paterna. Chegamos, então, a um ponto relativamente autobiográfico do autor, que também foi abandonado pelos pais e foi criado até a metade da vida pela avó materna para, depois, ir morar com a avó paterna. Sou novato em Michel Houellebecq e nunca li uma biografia sobre ele, mas imagino que talvez os dois personagens tenham traços distintos da personalidade do autor, pois eles são, de certa forma, psicologicamente, bem diferentes. Ah, vale lembrar dois aspectos que, à primeira vista, parecem de pouca importância, mas que, com o passar das páginas, passa a ocupar um plano relevante na narrativa: Bruno é formado em Letras, candidato a escritor frustrado e chega a dar aulas em escolas enquanto Michel é cientista especialista em Biologia.
Agora chegamos à perspectiva de mundo dos personagens. Enquanto Michel é um cara que parece viver à parte do mundo, sem se interessar por nada ou sentir nada por ninguém (nem sentimentos bons nem ruins, como amor, ódio, raiva, desejo ou compaixão), Bruno é puro hormônios (explosivo, tem no sexo e no prazer sexual o seu objetivo de vida, o que o coloca em várias cenas como uma espécie de Buwkoski francês). Ambos são, de certa forma, deprimentes. Apesar disso, a narrativa é cheia de humor refinado, satírico e cínico (no sentido dos Cínicos da Grécia Antiga mesmo: de viver a vida nua e crua tal como ela é, sem esconder nada, nem os sentimentos e os prazeres sexuais). Assim, são diversas as pérolas que aparecem ao longo da narrativa. E, apesar de Michel ser um cara desinteressado pela vida, e de Bruno ser quase um psicopata sexual, ambos se metem em relacionamentos – e eis aí a ironia da narrativa.
Como na maioria dos meus livros comprados, esse também ficou todo rabiscado e sublinhado, portanto, vou pegar aqui alguns trechos aleatoriamente para ilustrar o que estou querendo dizer, não só no sentido sexual e de relacionamento, mas também em relação ao viver a vida (quem nem sempre é no sentido de “WOW, vamos curtir a vida, caralho!”.
Por exemplo, na página 21, Michel, o autor (pois o livro é contado em terceira pessoa) apresenta essa reflexão sobre a famosa crise dos 40 (que na verdade pode começar bem antes, principalmente para os homens).
Segundo ele, a entrada nessa idade – que acontece com os dois personagens - é um sinal de que “a longa descida rumo à morte acaba de ser acionada [...]. Além disso, a famosa ‘crise dos 40’ aparece, com frequência, associada a fenômenos sexuais, à busca súbita e frenética do corpo de garotas mais jovens”. Lembrando da biografia de outros escritores, como Hunter Thompson, Nelson Rodrigues, Bukowski, Vinícius de Morais e Henry Miller, concluo que, pela vida que eles tiveram, essa afirmação faz todo o sentido. No entanto, aí é que está a crueza do negócio: ele não faz nenhum julgamento disso, ele apenas apresenta o dado, afinal, qual o mal de um cara, como Hunter Thompson, que com 60 anos começou a namorar Anita Thompson que estava entrando na casa dos 30, se ambos estavam felizes e satisfeitos? Na biografia de Thompson, inclusive, há relatos que dizem que ele tentava se sentir mais jovens namorando garotas bem mais novas. A questão de Michel é: sim, e daí? As garotas mais jovens também se atraíam por ele graças a sua inteligência, fama, conhecimento, experiência, humor, etc... Assim, os dois elementos se completam. Mas não vou me alongar nesse ponto.
Já em outra cena, acontece um fato que exemplifica o caráter tolerância zero de Bruno. Vale lembrar que o livro é de 1998, então, o Brasil estava naquela fase de “oba oba” com europeus e americanos. Conversando com uma personagem, a mulher diz que não gosta de música africana. Mas, para não parecer racista diante do interlocutor, justifica que adora música brasileira. Eis então o que se segue: “Não era preciso mais para irritar Bruno. Começava a encher o saco dessa estúpida mania pró-Brasil. Por que o Brasil? Conforme tudo o que sabia, o Brasil era um país de merda, povoado de brutos fanáticos por futebol e por corridas de automóvel. A violência, a corrupção e a miséria estavam no apogeu. Se havia um país mais detestável, era justamente, e especificamente, o Brasil”.
O mesmo Bruno, mais adiante, na página 163, quando o filho dele estava na pré-adolescência, apresenta a seguinte conclusão: “É difícil imaginar alguém mais babaca, mais agressivo, mais insuportável e mais odioso do que um pré-adolescente, especialmente quando está junto com outros garotos de sua idade. O pré-adolescente é um monstro duplicado em imbecil, de um conformismo quase inacreditável; parece a cristalização súbita, maléfica (e imprevisível, considerando-se a criança) do que há de pior no homem. Como, a partir daí, duvidar que a sexualidade não seja uma força absolutamente má? E como as pessoas suportavam viver sob o mesmo teto que um pré-adolescente?”. Vale lembrar que o personagem viveu os piores momentos da sua vida justamente em um internato quando era um pré-adolescente. Já sobre sua ex-mulher, mãe de seu filho, ele comenta: “Simplesmente, eu desejava todas as mulheres, exceto a minha”.
Sobre as personalidades perturbadas dos dois personagens, há outra reflexão interessante que o autor propõe. Na fala de um dos personagens aparece o seguinte comentário: “Nesse sentido, os serial killers dos anos 90 eram os filhos naturais dos hippies dos anos 60”. E eis aqui um ponto de reflexão: na busca pela liberdade, pela falta de vínculos, etc, muitos dos hippies e jovens dos anos 1960 acabaram, justamente, abrindo mão de “criar” ou de simplesmente dar o mínimo de atenção aos seus filhos, como foi o caso dos dois personagens, que, sem referências, acabaram caindo no mundo de qualquer jeito e, assim, as suas personalidades nada mais são do que o resultado disso tudo.
Nesse sentido, um dos pontos mais marcantes do livro está quando a mãe de Bruno e Michel está em seu leito de morte, justamente em uma comunidade que tenta manter viva a cultura hippie e naturalista nos anos 1980. Os dois filhos são chamados às pressas. A essa altura, Bruno está internado em uma clínica psiquiátrica após ver, pela segunda vez na vida, uma namorada sua terminar com a própria vida, enquanto Michel está focado apenas no seu trabalho como biólogo. Em resumo, os dois comparecem por simples obrigação e estão cagando para a velha. Bruno está no ápice da sua intolerância com o mundo e com a humanidade e, nessas, fala para o irmão: “Não passas de uma puta velha”. O sotaque gaúcho se deve, penso eu, devido à tradução ter sido feita pelo próprio Juremir Machado da Silva. Depois, Bruno lembra que a velha pediu para ser incinerada. Então, ele olha para a deplorável Jane, que não consegue falar, e diz, como se estivesse conversando com um tipo de sogra com língua venenosa quando esta não tem mais capacidade de reagir:
“Colocarei o que sobrar de ti num vaso e, todas as manhãs, mijarei em cima das tuas cinzas”. Sinceramente, fiquei imaginando a cena...
Por fim, chega-se a um ponto altamente filosofal, ao final do romance – mais especificamente no prólogo, que também é ficcional. E eis, novamente, mais um ponto polêmico. Bruno some na clínica psiquiátrica, enquanto que, a partir dos estudos de Michel, outros pesquisadores seguem produzindo algo que, se pararmos para pensar bem, não é totalmente irrealizável. Vou fazer um resumo do resumo: a partir das pesquisas de Michel os cientistas chegam ao ápice da clonagem humana. Assim, com o tempo, elimina-se a reprodução por sexo. Os seres humanos são reproduzidos apenas a partir de produção laboratorial. Isso só é possível quando a moral religiosa é vencida e, de certa forma, eliminada (para o bem da humanidade). A partir disso, o ser humano passa a “reproduzir” apenas aqueles humanos “desejáveis”. Ou seja, na ficção de Houellebecq de 1998, em 2050 a raça humana passa a ser chamada de “antiga raça humana”, pois os humanos que sobraram são apenas os produzidos em laboratório. Assim, cria-se uma cultura e um governo universal, apenas com humanos “bons”, pois não há necessidade de se produzir seres humanos maus (psicóticos, assaltantes, sovinas, corruptos, etc). Obviamente que tal ideia despertou a acusação de pensamento nazista, pois uma raça humana única era a premissa de Hitler com a raça ariana. Já eu, prefiro interpretar tudo o que li como o que de fato é: uma ficção. E, como disse, acusar o autor disso ou daquilo é como acusar o roteirista de um filme, de uma novela ou série por aquilo que acontece nela. Ou seja, o autor de uma ficção sobre serial killer não vai ser necessariamente um serial killer, bem como o roteirista de um filme sobre um estuprador não vai ser obrigatoriamente um estuprador, bem como Nabokov não era comprovadamente um pedófilo, etc. O fato é que há muitos elementos e pontos a serem pensados ao se ler o romance Partículas Elementares que, certamente, além de causar o prazer da leitura certamente faz com que o leitor saia de sua zona de conforto e ponha a sua cachola para funcionar.
C'est ça.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O livro de Praga

Seguindo a série de “resenhas” de livros que estou lendo nas férias, chegou a hora de “O livro de praga – narrativas de amor e arte”, do carioca Sérgio Sant’Anna. Esse livro integra a coleção Amores Expressos, da Companhia das Letras, que conheci no verão passado lendo “Cordilheira”, do Daniel Galera. Passei o ano sem ler nenhum outro livro dessa coleção e, quando fui escolher o meu presente de natal materno, entrei no site da coleção, li os resumos de todos os livros, e acabei achando esse o mais interessante. Não me arrependi nenhum pouco.
Antes de mais nada, eu não conhecia Sérgio Sant’Anna, o que talvez tornou ainda mais prazerosa a leitura. Em breve, explico por quê. A narrativa é breve: são 136 páginas divididas em sete capítulos. Cada capítulo é uma espécie de conto que, no conjunto, formam o romance, pois há uma sequência lógica e episódios de um capítulo vezemquando são retomados em outro, mais à frente. E agora explico porque não conhecer Sérgio Sant’Anna tornou a leitura mais empolgante. Acontece que o primeiro capítulo, intitulado “A pianista”, é absolutamente genial. Sant’Anna, que nasceu em 1941, começa a prosa com linguagem poética. Cada cena, cada descrição torna-se épica com as suas palavras que emitem um misto de delicadeza e erudição. Explorando aspectos da arte de Praga, o personagem, que se chama Antônio Fernandes, narra em primeira pessoa como ele foi escolhido para poder pagar 3 mil euros para assistir ao concerto de uma pianista jovem de raro talento. Mesclando um pouco da arte local e história com a angústia da espera pela audição exclusiva que Fernandes terá, você imagina que vai acontecer exatamente o que está programado: que o personagem se sentará num banquinho e assistirá a uma hora e vinte de espetáculo da pianista. Tudo leva a crer que o personagem se apaixona platonicamente pela artista. Porém, de uma hora para a outra (mas no momento certo) há uma guinada na narrativa. O tom de delicadeza com narrativa poética, ganha ares eróticos surpreendentes. Eis um breve trecho das “lembranças” do personagem: “O que aconteceu a seguir foi espantoso, não exclusivamente pelo comportamento sexual do dueto que formávamos, mas porque, retirando ela as suas mãos do teclado para puxar meu pau de dentro de minha calça com seus dedos longos e habilíssimos, para não dizer suas presas, a música continuou a se fazer ouvir ainda mais ricamente [...]” (p.29). E assim, surpreendendo o leitor, aos poucos o personagem vai entendendo (juntamente com quem segura o livro) que a pianista é, de certa forma, uma prostituta de luxo que atende na torre do museu de Praga.
Ouso dizer que nesse capítulo-conto, Sant’Anna usa com perfeição praticamente todas as técnicas narrativas da ficção e, especialmente, uma que considero talvez a principal: a capacidade de surpreender o leitor. E, justamente por não conhecer Sant’anna que fui tão ferozmente surpreendido. Entenderam agora? Talvez, se eu já o conhecesse não me deixaria levar pela sua narrativa que me conduzia por um caminho e que, de repente, PÁ, vai para outro.
O mesmo acontece no segundo capítulo-conto: “A suicida”. A trama é dada logo de cara: o personagem-narrador salva uma moça que está prestes a se atirar da ponte Carlos. Porém, as infinitas possibilidades da sequência faz com que você fique tentando adivinhar o que vai acontecer e, o que realmente acontece, é uma alternativa crível, mas que você sequer cogitou que fosse acontecer. Aliás, você se sente como um telespectador de filme ou novela, porque você começa a torcer para que o inevitável não aconteça. O terceiro capítulo-conto já não é tão surpreendente, pois ele usa a técnica da narrativa ficcional fantástica e, quando percebi isso, logo imaginei que tudo poderia acontecer (e realmente o inimaginável fantástico acontece). O mesmo vale para o capítulo seguinte, mas que achei mais bem construído (A boneca). O próximo capítulo conto, “O texto tatuado”, tem um enredo mega criativo, pois o personagem se depara com uma moça que tem um texto inédito de Kafka (que é de Praga) tatuado em seu corpo (e que também cobra para as pessoas poderem ler – o que, de certa forma, também torna a moça em uma prostituta de luxo). Não vou contar detalhes do desenrolar dos fatos para não acabar com a surpresa do potencial leitor. Já “A tenente” acaba sendo o pior capítulo-conto do livro, na minha opinião, justamente por ser óbvio demais: o personagem transa com a tenente fardada no seu quarto de hotel. Quer algo mais impossível e ao mesmo tempo clichê do que isso: um homem que é tido como suspeito de alguns crimes sexuais insolúveis transar com uma policial gostosa e fardada?
E você saca que isso vai acontecer assim que lê o título do capítulo, até porque a tenente já havia aparecido na narrativa em capítulos anteriores. Já o último capítulo-conto, “O retorno”, é bem breve, e serve simplesmente para encerrar a obra com chave de ouro.
Somando tudo, multiplicando pelas sensações que tive e dividindo pelo tempo gasto, eu daria uma boa nota para a obra (não me atrevo a quantificar, pois se desse algo como 10, seria injustiça com os clássicos inigualáveis como Dom Quixote e O Tempo e o Vento, mas se desse 7.0 ou 8,0 alguém poderia interpretar erroneamente como uma nota baixa).
Então, troco a nota por uma aprovação com louvor, ou seja, se estiver procurando um livro para ler, não hesite em comprar ou pegar emprestado esse livro, até porque, depois de terminar de ler, fiquei curioso para conhecer Praga, pois o autor mistura magistralmente o enredo com o clima e as atrações da capital da República Tcheca.
E viva las checas!

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Encontro com o mar

Quando calcei as Havaianas e me dirigi para a porta, ela interrompeu a minha simples empreitada, perguntando, áspera:
- Aonde você pensa que vai?
- Vou caminhar na beira da praia – respondi calmamente, pois era isso que eu fazia desde que chegáramos à cidade litorânea, uma semana atrás.
- Tem certeza? – ela perguntou.
- Absoluta – respondi.
- Tem certeza de que não vai se encontrar com alguém?
Ergui uma sobrancelha, pois nunca tinha cogitado tal hipótese. Mas, diante da pergunta acusatória, refleti por um segundo e respondi:
- É, tens razão. Vou sim.
Ela arregalou os olhos, pega de surpresa. Aproveitei o momento de estupefação para revelar o meu segredo:
- Vou me encontrar com o mar.
Dei as costas e parti. Enquanto caminhava, eu pensava que, realmente, eu estava me encontrando diariamente com o mar, sempre na mesma hora, no final da tarde, quando o sol começava a se esconder atrás de seus ombros, tornando tudo uma mistura de tons laranja, amarelo e azul. Eu realmente estava completamente apaixonado por aquilo, e ela, que me conhecia há tão pouco tempo, não tinha a capacidade de entender. Não a culpava. Eu poderia dar uma resposta, do tipo: “mas eu te convidei para ir comigo desde o primeiro dia, e você nunca quis”, porém, não me dei a tal trabalho. Seria total perca de tempo. Ela nunca conseguiria entender o real significado daquilo: caminhar sentindo as areias entrando entre os dedos dos pés, brincando com as pequenas ondas da beirada, observando as gaivotas voando ao longe contra a luz alaranjada do sol amarelo que refletia no azul escuro do mar. Ela nunca conseguira admirar uma paisagem ou curtir um momento de silêncio em que o vento e o som das ondas valem mais do que qualquer palavra. Para ela, tudo era competição. Se eu não iria me encontrar com alguém, eu a estaria trocando por algo. E o que era? Era o mar.
Assim como outras vezes, nessa necessidade de escolhas, ela acusara que eu havia optado pelo jogo de meu time do coração, como se ela fosse concorrente com tudo o que me faz bem: ela x o mar, ela x viajar, ela x meu time, ela x minha família, ela x meus amigos, ela x meu trabalho, ela x um filme e assim por diante. No entanto, ela já havia ficado para trás há um bom tempo (um tempo considerável para um relacionamento de cinco meses). Eu já havia lhe dito isso, porém, ela quis seguir me seguindo, pousando de casalzinho perfeito para os seus pais, de namorada apaixonada para as minhas amigas e brincando de casinha quando passávamos os finais de semana juntos no apartamento dela ou no meu. Anteriormente, eu já havia entrado em seu jogo, deixando o meu time de futebol, os meus amigos, a minha família e o meu cachorro de lado para atender aos seus caprichos, que eram compensados na cama. Mas essa é uma técnica antiga e ultrapassada e não tem a força suficiente para fazer com que eu abrisse mão daquilo: do mar. Os meus encontros com ele seguiram até o final daquelas férias. Eu ia cada vez mais cedo, e voltava cada vez mais tarde. A cada vez que eu retornava para casa, eu a encontrava sentada no sofá, de braços cruzados, com olheiras de tanto chorar. E, então, ela perguntava:
- Como foi o seu “passeio”? – e ao falar “passeio” ela fazia o sinal de aspas com os dois dedos indicadores.
E eu não escondia a minha satisfação ao responder:
- Foi maravilhosamente esplêndido!
Ela ficava ali, com os olhos vidrados na novela, sem prestar atenção na putaria lançada em canal aberto para o país todo, enquanto eu ia tomar um banho assoviando “Garota de Ipanema” para depois jantar, jogar vídeo game e dormir o sono dos justos. Em poucos dias, comecei a dormir mais cedo e acordar ao amanhecer. Logo eu estava passando o dia com o mar. Ela pareceu desistir de competir. Numa bela noite, disse que voltaria para casa, na nossa cidade, mais cedo do que o programado. “Não posso desperdiçar minhas férias assim”, concluiu. Quase disse para ela não se prender por mim, para colocar um biquíni sumário e pedir para um moreno sarado passar um protetor em suas costas, ou fingir afogamento para um salva-vidas lhe salvar. Entretanto, simplesmente consenti. Comprei uma passagem na janela na primeira fileira para o dia seguinte e, quando a levei na rodoviária, fiquei ansiosamente torcendo para o ônibus partir logo para eu voltar ao meu encontro com o mar. Poucos dias depois, eu estava admirando a paisagem, sentado ao lado de minha bola de futebol na areia, quando um cachorro veio correndo e caiu no meu colo.
Perdi o fôlego quando uma espécie de sereia veio correndo, tomando o fôlego, pedindo desculpas pelo mau jeito do animal. E, naquele instante, descobri que, sim, havia imagens mais belas do que o mar. Deixei-me levar pelo canto e pelo encanto da sereia e aceitei o seu convite de trocar a terra pelo fundo do oceano.