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terça-feira, 27 de julho de 2021

Dilemas humanísticos e literários


* Creio que nunca fiquei sem escrever nesse espaço por tanto tempo. A pandemia, a preguiça, a idade (chegando na crise dos 40), enfim, uma série de fatores me levaram a inatividade literária enquanto "escritor". Sigo lendo, sim, porém, não estou me prestando mais nem a resenhar minhas leituras. Também comecei a estudar gestão financeira - e sobre isso quero escrever outra hora. No entanto, quebro o gelo para, na verdade, republicar a minha coluna da semana passada do Diário Popular. Sim, a duras penas, escrevo uma coluna semanal para o maior jornal de Pelotas (RS). Apenas não incluí no texto abaixo, sobre o livro "Viagem ao fim da noite", de Céline, a magistral descrição do autor sobre os dilemas, as chatices e as aporrinhações que podem envolver um relacionamento, que aparece na parte final e é simplesmente genial. Enfim, segue, para o meu imaginário leitor:



Comentei duas semanas atrás sobre a primeira parte da obra “Viagem ao fim da noite” e sobre um resumo biográfico do escritor francês Céline. Terminei de ler esse livro há poucos dias e, confesso, fiquei completamente perdido e angustiado. Vou tentar me explicar. Como havia mencionado no outro texto, eu peguei essa obra para ler por ser considerada uma obra prima da literatura francesa que influenciou diversos escritores mundo afora, inclusive os americanos, que tanto leio e gosto, como Charles Bukowski e John Fante. Na primeira parte da narrativa, o personagem (alter ego do autor) participa da Primeira Guerra Mundial como soldado, é internado em um hospício de Paris, foge para a África, é enviado quase que sem querer para os Estados Unidos, escapa da tutoria da imigração em Nova York, trabalha na fábrica da Ford em Detroit, namora uma prostituta e volta para a França. Ação pura, com várias viagens e situações pitorescas. Já na segunda parte, o personagem se forma em Medicina e se torna médico de um povoado pobre nos arredores de Paris. Parece que tudo está calmo, pois ele fica páginas e páginas contando histórias dos pacientes e de seus infortúnios pessoais e financeiros, até que no último quarto do livro todos os pontos se ligam e tudo vira uma trama que mistura ação, suspense, romance, aventura e tudo de bom que um clássico literário pode ter. Em síntese, terminei de ler o livro com aquela sensação de que, sim, trata-se de um dos melhores livros já escritos na literatura ocidental. Ponto.

Chega-se, no entanto, a parte da angústia. Quando finalizei a última página, fiquei com uma sensação de vazio, de não saber o que pensar, ao lembrar que aquele autor, que escreveu aquelas páginas maravilhosas, sobre uma história que foi a história de suas primeiras três décadas de vida, foi um simpatizante de Hitler, defensor do nazismo e que anos depois de lançar essa obra publicou diversos panfletos com conteúdo fortemente antissemita. O pior, no entanto, é o posfácio escrito anos depois, em que ele fala que ninguém entendeu nada do livro, ao querer separar ele da própria obra. Ou seja, ele queria dizer que aquela história do “Viagem ao fim da noite” era exatamente ele mesmo, era exatamente o que ele sempre pensou e sempre pensaria, ou seja, aquela história era Céline na sua essência, o mesmo Céline nazista, cruel e desumano que o levou a um fim de vida pobre e melancólico. E aí, diante de todas essas informações, você fica com uma cara de: caraco cara, como pode? Como é possível alguém que viveu o que viveu, que sofreu o que sofreu, que andou por onde andou, que viu o que viu, que estudou o que estudou, ter sido nazista no seu tempo??? Tentei comparar Céline com aquelas pessoas que conhecemos e que estão perdidas em meio a ideias fascistas em pleno século XXI, mas mesmo assim, não consigo entender.

Por isso, acabei apenas me juntando à imensa legião de leitores de Céline que não conseguem explicar satisfatoriamente essa estranha complexidade da relação entre Céline e sua obra. Até creio que deve haver livros de especialistas tentando linkar esses pontos, ou até mesmo entrevistas do autor comentando esse dilema humanístico e literário, no entanto, a única explicação que consigo encontrar é: ele realmente ferrou com a sua psique na Primeira Guerra e os traumas o tornaram um maluco com potencial psicótico, muito sangue frio e com uma incrível habilidade de utilizar as palavras e descrever cenas que o tornaram o autor de obras primas como o “Viagem ao fim da noite”.