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sábado, 25 de janeiro de 2020

De Los Angeles para Araçá


Nessa semana, viajei de Los Angeles, na Califórnia, diretamente para Araçá, no litoral norte do Rio Grande do Sul. Fiz a viagem sem pegar carro, trem, avião ou ônibus. Simplesmente desembarquei em uma noite qualquer do livro “O caminho de Los Angeles”, de John Fante, para “O melhor lugar do mundo é aqui mesmo em Araçá”, do gaúcho Sérgio Stangler. Fante cria em seu romance um personagem completamente maluco, megalomaníaco e egocêntrico. Já no livro de Stangler, a megalomania está apenas no título. Mas, como conversei com o Sérgio nessa semana, um pouco de megalomania e egocentrismo às vezes faz bem. Aliás, vez ou outra concluo que falta um pouco disso nos nossos autores contemporâneos: por isso é tão difícil achar novos Bukowsks, Thompsons, Kerouacks, Nietzches, Kants, etc. Humildade é bom, mas às vezes também é válido deixa-la um pouco de lado para colocar os colhões para fora, esfregando-os na cara do leitor. E, por isso, começo falando justamente sobre o livro de John Fante.
“O caminho de Los Angeles” não é um livro para fracos. Escrito nos anos 1930, quando Fante tinha pouco mais de 20 anos, ele é agressivo, preconceituoso e megalomaníaco. Porém, o tom cômico e caricatural do personagem nos faz rir vez ou outra, afinal. Arturo Bandini, o personagem principal, julga-se um gênio, o melhor escritor do mundo e um artista em construção que vive em Los Angeles nos anos 1930, trabalhando em subempregos (o principal é numa fábrica de peixes) para sustentar a irmã (que quer ser freira – e que é ferrenhamente zombada por ele) e a mãe (igualmente vítima do egocentrismo e do cinismo cruel do filho). O machismo dele em relação as duas é evidente. Em determinada cena, por exemplo, a mãe de Bandini pede uma explicação sobre uma frase complicada, ao que ele a olha de soslaio e sentencia: “você não entenderia, não passa de uma mulher”. No entanto, com o passar das páginas, você vai vendo que há algo de muito quixotesco em Bandini. Em outra cena, quando ele está massacrando caranguejos no praia com uma espingarda, ele diz ser o führer dos caranguejos. Uma frase dessas é quase impensável de ser dita hoje, porém, em 1930, antes da Segunda Guerra, demonstra como os americanos já sabiam desde cedo sobre o nazismo e o seu autoritarismo sanguinário. Porém, mais para o final do romance, quando ele resolve assustar um comerciante, Bandini mente que é um agente comunista a mando dos russos. A verdade é que o personagem é completamente megalomaníaco e cômico.
Ele se apaixona pelas mulheres de anúncios de revista e se esconde no guarda roupas da mãe com uma vela para “namorar” elas às escondidas. Ele ama profundamente cada uma delas, e a descrição desse amor é ao mesmo tempo intensa e bizarra – para não dizer doentia. Enfim, são várias cenas completamente inimagináveis nos dias de hoje que diversas vezes fazem você se pegar rindo da falta de noção do personagem. Aviso, porém, que há várias cenas com posturas racistas e machistas de Bandini, mas que, de certa forma, só tornam o personagem mais ridículo e fracassado (ok, não tanto quanto o nosso desprezível presidente, pois Bandini pelo menos tinha bagagem intelectual com 20 anos, coisa que o nosso mandatário tupiniquim não tem estando praticamente com os dois pés na cova...). Em síntese, é um livro para ser lido como entretenimento, pois não é nada “utilitarista”.
Aliás, esse foi um dos pontos que conversei com o Sérgio Stangler, autor dos livros citados nessa coluna em outros momentos: “Viajando, viajando” e “A penúltima fronteira”. Poucas pessoas pegam livros para ler simplesmente por prazer. Digo isso sem nenhuma base científica, mas às vezes tenho a impressão de que as pessoas só querem ler/assistir coisas que tenha alguma utilidade prática e imediata para as suas vidas. Daí o sucesso, por exemplo, de livros de autoajuda e manuais do tipo “como ficar rico em um mês”. Às vezes também lemos romances históricos ou que retratam um momento importante da humanidade. Eu, particularmente, adoro esses livros. Mas também gosto daqueles que te dão prazer apenas por conter boas histórias e, principalmente, nos fazer rir. Por isso não abro mão de Woody Allen ou Shakespeare, por mais escrotos que eles possam ter sido em suas vidas pessoais. É a leitura e a literatura como entretenimento e passatempo (um passatempo que, no fim das contas, acaba sempre nos sendo útil no longo prazo, mesmo que inconscientemente).
Assim, chego agora a Araçá. O livro “O melhor lugar do mundo é aqui mesmo em Araçá” é uma coletânea de crônicas de Stangler. Na verdade, são sete crônicas deliciosíssimas de ler divididas em 39 páginas. É uma leitura rápida e prazerosa. Eu li as três primeiras ontem de noite, balançando-me na rede que fica na frente da casa de meus pais, em Xangri-lá, e terminei hoje de tarde, sentado em uma cadeira de abrir de frente para o mar tomando latão de Heineken. Quando disse que iria escrever sobre o livro, o Sérgio sugeriu um título: “As crônicas que o Bukowski escreveria se fosse brocha”. É um puta título. Aliás, tanto ele, quanto o velho Buk são ótimos com títulos (coisa para a qual eu sou péssimo). Bukowski dizia que deu o título de um de seus livros de “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio” apenas porque achou que era um bom título para ser visto na vitrine de alguma livraria qualquer, pois as histórias dessa obra não se relacionam em nada com capitães ou marinheiros. E o Sérgio criou capítulos como esse: “Um estudo poético-científico baseado na observação dos pilares da antiga guarita de salva-vidas de Araçá”. Mas, se os títulos são bons, os textos são melhores ainda. Tem aquele tom típico de conversa fiada da crônica, porém, são textos que te prendem, pois parece que o autor está conversando contigo a cada linha, sempre com uma adequada dose de bom-humor.
Eu me identifiquei com diversas das reflexões apresentadas por Sérgio Stangler. Ele conta desde como encontrou uma casa no final de uma rua deserta em Araçá (praia de Capão da Canoa-RS) para transformá-la praticamente em um país independente do Brasil, mais ou menos como fez o personagem de “Um exército de um homem só”, do Moacyr Scliar. Quando você cruza o portão da casa, você realmente se sente como se estivesse entrando em outro país. A vantagem desse país é que o visto é carimbado pelo próprio Stangler e, se você for bem-vindo, tem comida boa e cerveja gelada. Lendo o livro depois de duas visitas a Araçá (uma feita no ano passado e outra nesse ano), eu ainda fiquei sabendo da história dos cachorrinhos que lá vivem, adotados por Stangler e pela esposa.
Um deles, inclusive, é o mais rápido do Velho Leste (cão da foto). Os nomes dos caninos também são sugestivos: a cadelinha Praia e o cusco Molusco. A Praia faz um barulho estranho para respirar que me deixou preocupado algumas vezes, fazendo com que volta e meia eu perguntasse para o Sérgio: “esse barulho é normal?”, mas é um ronco típico da raça (que agora eu não lembro e estou com preguiça de procurar no livro, pois o sono está batendo). Ah, e sugiro que a leitura seja feita – se possível – na praia, de frente para o mar, pois o oceano e as dunas são alguns dos temas principais dos textos. O Sérgio conta, por exemplo, que gosta de acordar cedo e caminhar na praia ainda deserta, catando conchas. Já eu, também adoro caminhar sozinho à beira mar – às vezes caminho por duas ou três horas – mas ainda estou na fase noturna, ou seja, durmo e acordo tarde. Funciono mais de noite e penso que nunca vou mudar. Hoje, por exemplo, acordei “cedo” para ver a final da Copinha (argh!) e agora, meia noite e quarenta e sete, estou caindo de sono. Em dois ou três dias volto ao normal: dormir às duas ou três da madrugada para acordar às onze horas ou meio-dia. Gosto de ler, pensar, imaginar, sonhar acordado, respirar, escrever, trabalhar, conversar, etc, à noite. Ou, pelo menos, depois das 18h. De manhã – quando estou acordado – não funciono.
Enfim, há inúmeros tópicos interessantes que o Sérgio Stangler traz para o leitor e cada um deles mereceria inúmeras reflexões. É um livro prazeroso e que faz pensar, e isso é o que pode haver de melhor em um livro. No entanto, como disse, estou com sono.
Não sei como você, imaginário leitor, pode adquirir o livro, mas presumo que pode falar diretamente com o Sérgio (só procurar ele no Facebook – foi de lá que roubei as fotos para o post). Certamente, depois que terminar esse texto, vou lembrar vários outros pontos que pensei em escrever e que esqueci, assim como depois que gravamos uma hora de entrevista para ir ao ar no meu programa sobre literatura na Federal FM, de Pelotas, assim que cheguei em casa, recordei de diversos tópicos que eu queria ter abordado e que acabaram se perdendo na conversa e nos copos de cerveja. Sim, meus alunos, eu não fiz o que aconselho para vocês: anotar pelo menos alguns tópicos principais numa folhinha para não acontecer isso na hora de gravar uma entrevista... Mas foi bom igual e, fuck!, eu estou oficialmente de férias. Em breve, a entrevista (gonzo?) estará no ar.
Hasta!

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