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sexta-feira, 27 de março de 2020

Amirável mundo novo


Terminei de ler nessa semana “Admirável mundo novo”, do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), publicado pela primeira vez em 1932. Ou seja, ele foi escrito 17 anos antes da obra “1984”, de George Orwell, lançada em 1949. No entanto, eu não quero fazer aqui um comparativo das duas obras, que relativamente fazem o mesmo exercício literário, intelectual e filosófico. Sobre o livro de Orwell, eu publiquei uma resenha no dia 14 de janeiro de 2016 aqui neste mesmo espaço. Apesar disso, vou começar destacando três diferenças visíveis entre as duas obras, para depois ficar apenas na de Huxley.
A primeira e grandíssima diferença é o tempo. Enquanto Orwell tenta imaginar em 1949 como seria o mundo em 1984 (apenas 35 anos de intervalo), Huxley projeta um mundo seis séculos à frente. Por um lado, poderíamos imaginar uma primeira etapa do futuro imaginado com a sociedade programada por Orwell e, na sequência, uma “evolução” até Huxley. Mas não vou fazer esse exercício, como comentei antes.
A segunda diferença, e que chama bastante a atenção de quem gosta do tema, como eu, é o sexo. Enquanto na sociedade de Orwell o sexo é reprimido pelo Grande Irmão, que tudo controla e tudo vê, na de Huxley ele é estimulado. Você querer ter apenas um parceiro ou exigir exclusividade é considerado imoral. A nova moral prevê que todos tenham vários parceiros e nada de fidelidade ou sentimentos românticos. Óbvio que, a essa altura, a ciência já havia eliminado as DSTs dessa época primitiva em que vivemos.
A terceira diferença está na forma de controlar a sociedade. Em Orwell, o ponto principal é a vigília, enquanto em Huxley a força da manutenção do governo/status quo, para garantir a felicidade e a estabilidade, é o condicionamento. Ou seja, o sujeito é condicionado, desde que nasce, a acreditar naquilo que vai garantir a estabilidade e a felicidade de todos. Já em Orwell, como percebemos quando lemos, há espaço para uma rebeldia, ou seja, o sujeito está sendo vigiado e ameaçado pelo Grande Irmão, finge acreditar em tudo, mas no fundo não acredita. Em Huxley não há espaço para isso. A não ser com uma exceção e, paramos aqui com as comparações.
Antes de voltarmos ao enredo, vou comentar minhas impressões pessoais ao ler a obra. Confesso que, quando comecei a ler, não gostei muito. Achei as primeiras páginas um tanto entediantes e com umas previsões sem sentido, já superadas, e que mostram que o autor estava preso ao tempo em que vivia. Por exemplo: estudantes anotando a lápis em caderno. Pelo nosso tempo, isso seria em 2632. Se em 2020 já é rara essa cena, imagina daqui a seis séculos. Outra coisa bizarra é a imaginação em torno dos meios de comunicação. O telefone ainda funciona com ligações pedindo uma chamada para o número tal (celular, nem pensar), o rádio com receptores grandes e o jornal impresso ainda são a principal mídia. Enfim, tirando essas bizarrices tecnológicas, principalmente da metade para o final da obra, há muitos pontos interessantes. Voltamos, assim, ao enredo.
O ano seria 2632 na nossa contagem atual ou, na contagem da narrativa, 632 Depois de Ford. Deus, Jesus Cristo e toda o tipo de religião são substituídos por Ford. Começa, então, a crítica de Huxley a uma sociedade utilitarista com uma busca incessante à felicidade e à estabilidade. Como disse, ser pervertido é falar em casamento, em família, essas coisas. As crianças são geradas em laboratórios, ou seja, não existem mais pais nem mães para “estragar” os sujeitos. Desde pequenos ouvem mensagens milhares de vezes que são repetidas automaticamente quando adultos. Os sujeitos são divididos em tipos de seres humanos que vão servir para alguma coisa útil na linha de produção e vão ser condicionados a serem felizes assim, sem questionamentos. Numa das explicações, o Diretor do laboratório explica aos alunos: “Mas nos Ípsilons – disse com muita propriedade o sr. Foster – nós não precisamos de inteligência humana” (p.34). Ou seja, quem vai ser administrador nasce e é criado para isso, quem vai apertar botões nasce e é condicionado para isso e assim por diante.
As crianças são estimuladas ao sexo desde cedo e aprendem a não sofrer com a morte. Também tem a “soma”, que seria uma droga perfeita, mas que não causaria ressaca ou qualquer efeito colateral. Elas são tomadas em doses de meia grama e evitam que qualquer sujeito se sinta triste, com raiva, desesperado, chateado, etc. Além disso, os bebês são estimulados a pegarem livros. No entanto, quando eles colocam suas pequenas mãozinhas em um livro, levam grandes choques. Assim, ficam condicionados a nunca quererem chegar perto de um livro ao longo da vida. “Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam de ódio instintivo aos livros e às flores. Reflexos inalteravelmente condicionados. Ficarão protegidas contra os livros e a botânica por toda a vida” (p.42). É mais ou menos o que está tentando ser feito através das redes sociais por governos como Trump e Bolsonaro. Tentam enfiar na cabeça das pessoas que livros, cultura e arte fazem mal. Assim, os zumbis dessa era primitiva ficam condicionados a aceitar e acreditar nas mentiras impostas por eles. O pior é que está funcionando.
Feita essa contextualização geral da sociedade, vou aos personagens, que substituem as famosas frases “Jesus!” ou “Em nome de Jesus” ou “Deus nos salve!” ou “pelo amor de Deus” por “Ford!”, “Em nome de Ford”, “Ford nos salve!” ou “Pelo amor de Ford!”.
Bom, um dos personagens principais é Bernard. Ele é um cara meio deslocado que os outros dizem que recebeu uma dosagem errada de álcool quando foi fabricado. Ele tem uma necessidade quase instintiva a ser como nós, humanos da era pré-Ford: se apaixona, tem curiosidade em conhecer o mundo, questiona, etc. Ele é amigo de um escritor do departamento de textos sensíveis que também é meio inconformado: ele pensa que escrever apenas o que é permitido é muito chato, mas não sabe dizer sobre o que gostaria de escrever. E, toda vez que sente esse vazio, ele toma uns comprimidos de “soma” para voltar ao normal. Os dois são amigos. Bernard se apaixona por Lenina. Lenina acha Bernard muito esquisito, pois ele não anda com várias mulheres, como os cidadãos de bem do mundo fordiano. Lá pelas tantas, porém, Bernard consegue uma autorização do Administrador Mundial para ir ver um campo de selvagens (que seria mais ou menos o que sobrou da nossa sociedade primitiva do século XXI, ou seja, que se apaixona, se casa, crê em Deus, etc) nos Estados Unidos (a história se passa em Londres e línguas como francês, português ou espanhol já foram extintas). O campo de selvagens é mais ou menos como um safari africano, mas com pessoas que são chamados de indígenas – outra previsão bizarra, pois no início do século XXI os índios já foram praticamente dizimados na sua totalidade pelos homens brancos.
Nesse campo de selvagens, Bernard encontra Linda, uma mulher que se perdeu durante um safari e ficou morando com os selvagens. Ela acabou engravidando (uma tremenda obscenidade) e se tornou mãe! (pelo amor de Ford!) de John. Ela conta que o pai é o diretor do laboratório, assim, Bernard e Lenina levam Linda e John para a sociedade civilizada de Londres. Obviamente há N histórias paralelas, a vida dos dois selvagens são contadas por Huxley, etc. Mas, resumindo, eles voltam para a civilização e aí a confusão está feita (por isso que eu comecei a gostar mais do livro desse ponto em diante). A verdade sobre o diretor é revelada e o Selvagem tenta incutir ideias nos humanos-zumbis civilizados. Para impedir que a sociedade se contamine com ideias e infelicidades (afinal, família, amores, mortes, etc, só trazem infelicidade, segundo os fordianos civilizados) Bernard e o amigo escritor são enviados para ilhas isoladas, Linda morre, e John tem um caso que vira briga ferrenha com Lenina (sua prostituta, cortesã!!). E aí já nos encaminhamos para o final, e eu nem vou contar que John se mata na última cena na frente de milhares de seres humanos condicionados, o que deixa em aberto um futuro nebuloso (que poderia ter seguido com um segundo volume da obra) pois os humanos-zumbis nunca tinham ouvido falar em suicídio. Na minha imaginação, todas as testemunhas são isoladas para não contaminar o resto (#ficaemcasa) e são tratadas com mais milhares de horas de condicionamento, como é feito hoje pelos seguidores do Bolsonaro que, a cada cagada dele, ficam se mandando fake news absurdas pelas redes sociais que justificam as baboseiras proferidas pelo presidente.
Enfim, é isso. Vou partir para o próximo livro o mais breve possível, se Ford assim permitir. Amém!

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