O
livro Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que acabei
de ler hoje, tem méritos espetaculares e defeitos incomodativos. Na verdade,
são dois temas que aparecem no romance – que se passa entre Nigéria, Estados
Unidos e Inglaterra – e a minha crítica (uma positiva e outra negativa) está
relacionada diretamente a esses dois temas.
Inicialmente
tentarei dar uma pincelada geral sobre o enredo. A narrativa é em terceira
pessoa, mas gira principalmente em torno da protagonista Ifemelu. Ela é
nigeriana e leva uma vida comum de classe média no país africano, filha de uma
mãe ultra religiosa e cheia de crendices e de um pai que tem um bom emprego até
ser demitido por se recusar a chamar a sua chefe de “mamãe” depois de dez anos
de casa. Vivendo no regime militar, que imperou após a guerra de Biafra nas
décadas de 1980 e 1990, as universidades e a educação passam a ser sucateadas
(algo familiar para você, nobre leitorinho tupiniquim?). Ainda no ensino médio,
Ifemelu forma o seu grupo de amigos e, dentre eles, está Obinze. Ao conhecê-lo,
é amor à primeira vista. Eles namoram e começam a fazer faculdade na Nigéria,
porém, as greves sem fim com atrasos de salários para professores (a mãe de
Obinze é professora universitária) fazem com que muitos jovens tentassem
desesperadamente deixar o país africano, tendo como principal destino os
Estados Unidos e a Inglaterra. O sonho de Obinze é morar nos Estados Unidos, no
entanto, ele não consegue o visto após sucessivas tentativas e é obrigado a
permanecer em solo nigeriano. Já uma tia de Ifemelu, chamada de Tia Uju, é uma
dondoca que faz o que, segundo Chimamanda, é quase uma regra entre as mulheres na
Nigéria: a busca por um homem que possa, primeiro, sustentar a mulher e,
segundo, dar status a ela (seja a mulher oficial ou amantes).
Assim, tia Uju se
torna amante de um importante general do governo. Ganha uma casa, carro e uma
barriga, pois dessa relação nasce Dike. O general morre em um acidente aéreo
(aparentemente criminoso) e a mulher oficial ameaça tia Uju, que se vê obrigada
a deixar o país com o filho por questões de segurança. Ela vai para os Estados
Unidos e lá se estabelece para recomeçar a vida. Diante das intermináveis
greves na Nigéria, em um telefonema, tia Uju faz a seguinte proposta para
Ifemelu: ir estudar nos Estados Unidos e ajudar tia Uju a cuidar de Dike, pois
ela gasta muito com uma babá, morando no Brooklyn, em Nova York. Assim, Ifemelu
– que fazia medicina na Nigéria – concorre a uma vaga em uma universidade
americana, sem muita esperança de ser aprovada, mas acaba ingressando no curso
de Comunicação em uma universidade na Filadélfia. Obinze, que a essa altura já
namora seriamente com Ifemelu, dá todo o incentivo para que ela vá, pois ele
planeja ir para os Estados Unidos fazer pós-graduação depois de formado: assim,
eles poderiam viver felizes para sempre no sonho americano.
O
conto de fadas de repente vira drama. E nesse ponto creio que é importante
dizer que o romance é semi-autobiográfico: a personagem Ifemelu segue
praticamente os mesmos passos que Chimamanda deu no trajeto Nigéria-Estados
Unidos. Ao chegar aos Estados Unidos, primeiro Ifemelu se depara com uma tia Uju
estressada, trabalhando em três empregos para conseguir se sustentar e tentando
revalidar o diploma de médica. Segundo, ela percebe que em um país
predominantemente branco a raça é algo ultra valorizado, em uma escala em que
os negros estão na parte mais baixa da pirâmide social. Bom, não vou dar o spoiler sobre essa questão, pois para
mim é a cereja do bolo. Então, seguindo com o enredo, Ifemelu chega a Nova
York, onde fica um tempo morando com tia Uju até as aulas iniciarem na
Filadélfia. Chegando lá, ela não consegue emprego de jeito nenhum. Qualquer
pessoa que viveu fora do país vai se identificar muito com as impressões e
comentários dela.
Ifemelu entra em depressão quando sucumbe a um anúncio para “massagem
relaxante” publicada por um professor de tênis. Sem dinheiro para pagar a
universidade e o aluguel, ela acaba fazendo o serviço por 100 dólares. Em
seguida, ela é contratada como babá por uma família branca e rica de um bairro
nobre e rompe completamente com Obinze, não respondendo mais as suas mensagens
e e-mails, envergonhada pelo que fez com o professor de tênis. A vida segue,
Ifemelu namora primeiro um branco descrito como ricaço e bonitão da família que
a contratou como babá e depois namorou seriamente um professor universitário
negro-americano e ativista. Enquanto isso, Obinze fica deprimido na Nigéria,
sem saber o que aconteceu com sua amada, mas segue a vida: tenta a sorte
ilegalmente na Inglaterra, de onde é deportado, acaba ingressando no mercado
imobiliário puxando o saco de um manda-chuvas local, torna-se super rico e se
casa com uma negra linda com o perfil descrito antes: religiosa, tradicional e
que acha que a função da mulher no mundo é achar um homem bem sucedido para lhe
sustentar enquanto ela “dá conta da casa”. O tempo passa e, 13 anos depois de
partir para os Estados Unidos, Ifemelu resolve voltar para a Nigéria. A essa
altura ela mora junto com o professor universitário, publica um blog super
famoso que aborda questões raciais nos Estados Unidos, tem o
green card e ganha um bom dinheiro com
isso. Ao voltar para a Nigéria, depois de terminar com o namorado americano, ela
se depara com um país completamente diferente daquele que ela lembrava e um
Obinze casado e com uma filha. A partir daí tudo se torna um dramalhão digno
das piores novelas mexicanas. Ponto.
Agora,
chego aos pontos positivos e negativos. O grande, grandíssimo ponto positivo é
toda a reflexão que Chimamanda apresenta com Ifemelu sobre a questão racial e
de imigração nos Estados Unidos. Há vários textos postados no blog que ela
reproduz e que, creio eu, são os mesmos que a própria Chimamanda escreveu na
vida real. Isso pega o período da eleição do Obama, então, tem um puta contexto
histórico, pois é engraçado e triste ao mesmo tempo ver os personagens pensando
que os racistas tinham sumido e não eram mais uma ameaça sabendo que em seguida
o Trump se elegeu e os nazi-fascistas saíram do armário nos Estados Unidos e no
mundo todo. Creio que vale a pena ler o livro – apesar da crítica que vem em
seguida – por essa questão e pelo desenvolvimento dos personagens secundários,
pois a história de tia Uju, Dike e de outros amigos de Ifemelu seguem se
desenvolvendo ao longo das mais de 500 páginas do livro. Outro ponto
interessante é que, assim como quando ela chega aos Estados Unidos ela percebe
que a raça é uma questão importante para definir a posição social das pessoas,
com um racismo visível, ao retornar para a Nigéria ela percebe que ninguém liga
para a cor da pele dela.
E, mesmo na África, o branco fica em uma posição
social superior no imaginário popular, pois quando Obinze começa a investir em
imóveis um sujeito mais experiente dá a dica: arranje um amigo branco para lhe
acompanhar, pois dá mais credibilidade. Lendo relatos como esses eu percebi que
a humanidade ainda está há anos luz de chegar próximo de um desenvolvimento
humano minimamente aceitável.
E
o ponto negativo, que para mim seria facilmente resolvido com uma edição, é o
romance mega e ultra clichê e, principalmente, o seu final piegas. Chimamanda
fez mestrado em escrita criativa em Baltimore e acho que ela quis colocar em
prática uma técnica narrativa que, na minha humilde opinião, é batida pra
caralho, mas que ainda dá certo com as massas: o romance dramalhão com final
feliz. Talvez por isso o livro dela virou best-seller,
mas particularmente, esse excesso de romantismo me irritou um pouco. Se tirasse
toda a questão da reflexão social e racial e ficasse apenas no caso de Ifemelu com
Obinze o livro seria um fracasso total. Além disso, há outros pontos um tanto incomodativos
na narrativa de Chimamanda, pois ela avalia todos os outros personagens,
apontando defeitos morais, porém, ela descreve um Obinze completamente
perfeito.
E, outra crítica, é que quase todos os ciclos frequentados por ela,
na universidade americana e na Nigéria, são formados por pessoas descritas como
lindas e ricas, sejam brancos, negros ou de qualquer outra etnia. Fiquei
imaginando um mundo sem pessoas feias, gordas ou com “defeitos físicos”, nem
pessoas pobres e miseráveis. Ela faz algumas referências, mas todas feitas
completamente do lado de fora, de quem observa ao longe, por exemplo, feirantes
apanhando da polícia em Lagos. E, como sei que Chimamanda é feminista ferrenha,
também chamou a atenção o fato como ela tenta justificar o romance perfeito de
Ifemelu e Obinze quando ela volta para a Nigéria. Obinze está casado e tem uma
filha, porém, enquanto Chimamanda descreve outros casos extraconjugais como a
tradicional caricatura da mulher piranha burra e do homem safado e sem
vergonha, os dois personagens são endeusados com seus pensamentos e sentimentos
puros, ou seja, todo o resto do mundo é podre e não presta, menos os dois
bonitinhos que tem um amor de conto de fadas perfeito! Ifemelu corre atrás de
Obinze, mas não é apresentada como uma piranha que vai tentar roubar o homem da
outra mulher que tem uma filha, e Obinze se encontra todos os dias com Ifemelu,
mas não é desenhado como o cachorro sem vergonha, porém, outros personagens em
situações parecidas são criticados severamente pela autora. E, o final (se você
não quer o
spoiler, pare de ler aqui)
é extremamente irritante, pois ele deixa a esposa e a filha para ser feliz para
sempre com a amante (fiquei pensando ao terminar: bah, que feminista, heim?!).
Olhem só essa cena, em que Obinze está viajando: “Na última viagem de Obinze
para lá, um homem assim, que ele mal conhecia, havia olhado por um tempo para
duas jovens na outra ponta do balcão e lhe perguntou casualmente: ‘você tem uma
camisinha sobrando?’ Obinze se afastara, chocado”. Ah, vá! Pobre Obinze! Super
ingênuo... Chocado com isso, mas traindo a mulher às escondidas... Até fiquei
com pena dele, pobrezinho, tão puro num mundo tão sem vergonha... Resumindo, ela
tentou simplificar uma situação extremamente complexa e impossível de ser
resolvida com a mágica literária, que são as paixões extraconjugais. Para esse
tema, fico muito mais com Philip Roth e Henry Miller. Ficou uma sensação de: se
os outros fizerem isso, os outros não prestam, mas se for eu, ah! eu sou
especial, intelectual e romântico, escolhido por Deus e pela natureza, então,
comigo é diferente... O meu amor com o/a outra é diferente. Porra, cada caso é
um caso!
Enfim,
achei esse e alguns outros pontos bem hipócritas – por exemplo, a série de
julgamentos que ela faz dos negros americanos e dos próprios africanos que
deixaram o país, criticando, por exemplo, os que adotam o sotaque americano,
como se isso fosse um defeito ou um desvio de caráter. Ah, e quando ela critica
excessivamente praticamente todos os outros personagens por terem mudado com o
tempo. Achei isso extremamente bizarro, pois as pessoas mudam, gracias ao bom
senhor!
Enfim,
teria mais umas dezenas de páginas para falar sobre a obra, pois ela traz
inúmeros pontos para diferentes e extensos debates, tanto sobre questões
raciais quanto sobre relacionamentos amorosos, amizade, família... enfim,
debates sobre a vida. Mas, esqueçam essas críticas, pois como disse em outro
post estou ficando velho, chato e ranzinza. Leiam o livro – que é fundamental
para pensar questões raciais em um mundo predominantemente branco e racista – e
tirem as suas próprias conclusões. Para finalizar, apenas a lembrança do Meio
Sol Amarelo que, na minha humilde opinião, é o melhor livro de Chimamanda.
Leiam ambos. Hasta!