.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Qual o preço de uma resposta?

* Texto publicado em A hora do Sul

A primeira vez que entrei em uma sala para dar aula foi há 14 anos, em 2011. De lá para cá, já ouvi mais de uma vez agradecimentos de alunos pelo simples fato de responder aos seus e-mails. Quando veem meu espanto, argumentam: “É que a maioria não responde.” Pois vejam só. Uma das manias mais irritantes nessa era virtual são as pessoas que deixam os outros no vácuo. Claro, não estou falando aqui de não responder às mensagens propagandísticas, tentativas de golpe, ameaças (nesse caso, quem responde é um bom advogado ou a polícia) ou aos que perguntam coisas como “Vai ter algo importante na aula hoje?”, porque esses nem eu respondo. Aliás, aviso sempre no primeiro dia de aula que me nego a responder a essa pergunta. Estou falando de e-mails ou mensagens por redes sociais (WhatsApp, Instagram etc) com conteúdo como esclarecimento de dúvidas, solicitação de contato por alguma temática específica, convite, etc. 

Já perdi as contas de quantas vezes fui deixado no vácuo, especialmente por editoras. Aliás, se eu não fosse servidor, montaria uma editora - investiria pesado nela - e pisaria firme numa real democratização da literatura. Claro que não publicaria tudo, mas pelo menos responderia aos contatos informando um “não”. Um “não” é bem melhor do que um vácuo. Já cansei de receber “nãos” na vida. Entrei no mestrado, por exemplo, apenas na terceira tentativa: até lá foram dois “nãos”, dolorosos, mas que me ajudaram a amadurecer. No doutorado, houve mais um “não” antes do ingresso. Concursos públicos, nem vou falar. O “não” faz parte da vida, mas com ele você tem uma resposta, tem uma ideia do que melhorar. O vácuo passa a impressão de que a pessoa (ou instituição) se julga superior a você, que você e sua maldita mensagem não estão à altura dela. “Humpf, quem esse idiota pensa que é para me mandar um e-mail perguntando isso? Não vou nem responder, que pergunta estúpida.” Pois eu dou meus bagos para quem não responde mensagens.

Obviamente, há o esquecimento. Já aconteceu comigo, mas sempre me esforço ao máximo para não deixar ninguém no vácuo. E, claro, você consegue identificar quando alguém, de fato, não respondeu porque está atribulado de coisas ou por ter deixado para outra hora. Mas há casos em que a não resposta é intencional - e fácil de ser percebida.

Mas afinal, qual o preço de uma simples resposta? Penso que para muita gente, esse preço parece abusivo - um verdadeiro luxo reservado aos magnânimos, aos reis e rainhas do egocentrismo, do e-mail e do WhatsApp. É como se, ao responder, perdessem um pedaço da alma, uma fração preciosa do seu tempo julgado superior. Pois é: na prática, o vácuo virou o novo “não”, só que mais covarde, mais preguiçoso e mais cheio de si. E quem sabe, no fundo, seja essa a nova etiqueta da era digital: fazer de conta que o outro nunca existiu. Pós-moderno, mas totalmente vadio. Hasta!


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Estamos virando bovinos?


 * Texto publicado em A hora do Sul, de Pelotas-RS

Num sábado de sol desses, estava caminhando pelo meu bairro, o Areal, quando avistei um campinho de futebol, daqueles de terra batida, com duas goleiras vazias. Olhei para o relógio: 16h30. Espiei a temperatura no celular: agradáveis 19 °C. Vi aquele amplo espaço, cercado por casas cheias de famílias, e me perguntei: diabos, onde estarão as crianças e adolescentes numa hora dessas? Aquele era o cenário perfeito para dois amigos de 12 ou 13 anos pegarem uma bola de futebol para cobrar faltas e, em poucos minutos, começarem a aparecer outras crianças para se juntar ao grupo, até se formarem dois times com pelo menos sete para cada lado: os de camisa contra os arquirrivais sem camisa. Lembrei que, alguns anos atrás, um campinho desses, em qualquer cidade brasileira, contaria com fila de crianças, adolescentes e até adultos esperando para jogar gratuitamente. Contudo, não precisei refletir muito para entender o motivo da ausência dos peladeiros no campinho, pois logo espiei por uma janela escancarada e vi duas crianças atiradas em um sofá, cada uma com seu celular.

Andando sob aquele sol perfeito em um final de semana, comecei a formular a seguinte hipótese: estamos nos parecendo cada vez mais com alguns quadrúpedes. Talvez mulas, talvez algum bovino. Pensem nos bisões. Esses animais que vivem nas planícies da América do Norte passam a vida migrando de um canto para outro atrás de pasto verde e suculento. Conforme a estação do ano, precisam fazer verdadeiras travessias para fugir do frio ou encontrar mais alimento, tendo que encarar lobos-cinzentos, ursos e pumas que sonham com suas carnes rijas e fartas.

Agora, imaginem se os bisões encontrassem um campo infinito, com pasto verdinho sem fim. Eles ficariam ali o resto da vida, pastando, dormindo, procriando e defecando, numa ciclicidade entediante. Pois é isso que está acontecendo com o ser humano enfeitiçado pelo celular: ele sai cada vez menos, pois encontra tudo ali — amigos, relacionamentos, sexo, discussões, filmes, crimes, alegrias, frustrações, jogos —, enfim, tudo o que pode preencher os mais variados tipos de sentimentos que ele procura. Estamos virando um bisão que anda em duas patas, com uma pastagem infinita diante de nós. E, infelizmente, não parece haver muito o que fazer. Assim como o bisão só se movimenta quando o pasto some ou congela, nós também só sairíamos mais de casa — seja para jogar bola num campinho de terra batida, seja para flertar por aí — se nos arrancassem os celulares das mãos. O bisão não tem escolha: precisa encarar lobos e ursos para sobreviver. Já nós, que temos escolha, optamos por passar tardes de sábado ensolaradas jogados no sofá, comendo o nosso pasto digital, levantando apenas para ir ao banheiro, dormir, comer e, às vezes, copular. Aliás, do jeito que a coisa vai, logo até isso o ser humano vai deixar de fazer por pura comodidade. No fim das contas, tanto nós quanto os bisões só nos movemos quando alguém tira o pasto — ou o celular — e nos coloca diante de uma necessidade incontornável.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Lucky Jim


 (ALERTA! CONTÉM SPOILER)

Meu filho achou que eu havia enlouquecido quando me pegou na sala ouvindo música clássica, tomando um vinho e lendo Lucky Jim. “É para me sentir no interior da Inglaterra dos anos 1950”, expliquei. Ele não entendeu nada e continuou achando que eu tinha pirado. De qualquer forma, achei Lucky Jim, do escritor britânico Kingsley Amis (1922–1995), um excelente e autenticamente britânico livro. Descobri a obra em uma lista divulgada por um escritor no Instagram do Estadão, em celebração ao Dia do Leitor. Li a sinopse, gostei e comprei. Não me arrependi.

Para falar do enredo, é preciso entender os personagens. O principal é Jim Dixon, um professor universitário em uma pequena cidade do interior da Inglaterra. Como está em uma espécie de estágio probatório, ele precisa agradar a todos, especialmente ao professor Welch, um senhor que, indiretamente, dá a entender que está começando a apresentar sintomas de demência. Dixon, contudo, mesmo atrapalhado, tenta de tudo para agradar ao chefe — que, no fundo, ele odeia.

Ao longo da história, Dixon se envolve, meio sem querer, com Margaret, outra professora que tentou cometer suicídio após romper com um namorado e que Welch leva para sua casa para que seja bem cuidada. No entanto, logo Dixon percebe que ela é extremamente geniosa — com sintomas de bipolaridade aguda — e, mesmo tentando agradá-la de todas as formas, sempre acaba se dando mal. A mulher de Welch é aquela típica senhora inglesa, estilo sargentona, que manda no marido e tenta manter tudo sob controle. É nesse cenário que surge o filho do casal, Bertrand, um pintor barbudo e mulherengo, que namora Christine, mas mantém um caso com Carol, colega de Dixon e também professora, casada com outro personagem.

Resumindo: o enredo todo se passa no ambiente universitário, com várias intrigas e mesquinharias cômicas que eu, como professor, obviamente achei o máximo. Na edição da Todavia que comprei, porém, há um erro na sinopse: diz que Dixon tenta conquistar Margaret. Na verdade, não. Ele é amigo dela, enquanto ela acredita que são um casal. Dixon passa a maior parte do tempo tentando desfazer esse mal-entendido para manter apenas a amizade, mas não consegue. Romanticamente, ele acaba se envolvendo com Christine, a namorada de Bertrand, com quem desenvolve uma acirrada rivalidade que culmina em uma briga física antes da grande palestra — já no final do livro — que definiria o futuro de Dixon na universidade. Bertrand, por sua vez, nem gosta tanto da namorada, mas quer ficar com ela para conseguir um emprego através do tio dela, que (atenção ao spoiler!) acaba contratando Dixon após este fazer uma palestra horrorosa sobre Happy England e não ser efetivado pela universidade.

Mas, para o leitor entender o estilo de Kingsley, quando disse que é autenticamente britânico, coloco abaixo um trecho de uma cena cômica. Dixon havia sido convidado (e ido por obrigação) em um evento cultural promovido por Welch na sua residência, que ficava em uma região mais afastada da cidade e que, assim, fez com que os convidados pernoitassem na sua amplíssima mansão. Acontece que Dixon tomou um porre e adormeceu em sua cama, mas como o cigarro estava aceso, acabou queimando parte da colha e da mobília do quarto. Contudo, ao acordar, ele não lembrava de nada. Ao contrário de um estilo cru e bukowskiano, Kingsley adota o que chamei anteriormente de um estilo autenticamente britânico, quase formal, para descrever a cena cômica:

“Ele próprio teria feito tudo aquilo? Ou um viajante, um ladrão, acampara em seu quarto? Ou fora vítima de algum ser estranho como o Horla de Maupassant, apreciador de tabaco? Pensou que, de modo geral, devia ser mesmo o responsável por tudo, e desejou que não fosse assim. Certamente isso significaria a perda do emprego, em particulares deixasse de procurar a sra. Welch e confessasse o malfeito sabendo de antemão que seria incapaz de fazê-lo. Não havia desculpa que não consistisse no indesculpável: um incendiário não merecia mais perdão quando se soubesse que era também um bêbado – e tão viciado que suas obrigações para com os anfitriões e os outros convidados, sem falar na atração de um concerto de câmara, nada representava comparadas à tentação da bebida” (p.79).

Aliás, foi após esse incidente que Dixon começa a se aproximar da namorada de Bertrand, que o ajuda a se safar dessa. Mais adiante, também há um baile que reúne toda a comunidade universitária – incluindo a família Welch e Dixon – que ocupa boa parte da trama e que acaba por aproximar ainda mais Dixon e Catharine.

Enfim, encerro aqui esse pequeno resumo pessoal para que, no futuro, quando eu quiser relembrar a história desse livro, eu possa consultar e ler tal sinopse novamente tomando um vinho e ouvindo música clássica para me aproximar um pouco mais do romântico e charmoso interior da Inglaterra dos anos 1950. 

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Mimado leitor


Pois não morri, e aqui estou. Quase dois anos depois, resolvi voltar a habitar esse espaço, mais para criar um "arquivo digital" das minhas colunas que escrevo para jornais com acesso limitado e para seguir a lógica de resenhar livros que sei que daqui um ou dois anos já terei esquecido da metade da história do que para qualquer outra coisa. Enfim, começo com a coluna que acabei de enviar para o jornal A hora do sul, aqui de pelotas, falando sobre o mimado e (aqui posso dizer) vagabundo leitor contemporâneo:

Confesso que já praticamente desisti da ideia de escrever literatura. Eu tinha um livro escrito desde 2017, com quase 500 páginas, que enviei para diversas editoras, e a resposta – quando vinha – era algo do tipo: “não publicamos algo desse tamanho”. Ou então: “favor, enviar uma versão reduzida”. Neste ano, quando reenviei mais uma vez para outra editora, já editei antes, fechando em cerca de trezentas páginas. Tudo por conta de que, para competir com outras narrativas (como as dos reels e do TikTok), a literatura contemporânea está cada vez mais mimando os preguiçosos e mentecaptos leitores. Por isso, decidi que, pelo menos momentaneamente, não escrevo mais nada de literatura gratuitamente. 
Lendo o romance Lucky Jim, do escritor britânico Kingsley Amis (1922–1995), tenho certeza de que, se ele enviasse esse clássico da segunda metade do século XX para qualquer editora hoje em dia, ouviria um sonoro NÃO como resposta. Tudo porque se trata de um excelente livro de cerca de 300 páginas, mas que demora umas 60 para engrenar. Você precisa superar seis dezenas de páginas (num mundo que te oferece prazer rápido no celular) para começar a entrar, de fato, na história do professor universitário Jim Dixon, que vive em uma pequena cidade do interior britânico dos anos 1950. Contudo, o tédio das primeiras 60 páginas é NECESSÁRIO para o prazer das seguintes. Algo que o leitor mimado e preguiçoso de hoje não compreende. Ele quer algo divertido, prazeroso e rápido. Não quer ter que passar dois dias lendo um livro para só então começar a sentir prazer. 
Em outras palavras, é como um torcedor de futebol que só quer vencer. Ele não quer estar perdendo nunca. Isso pode parecer bom, inicialmente, mas, se conseguir isso, jamais terá o prazer de comemorar uma virada histórica (como a Inter de Milão fez dias desses contra o Barcelona) ou celebrar uma fase vitoriosa após temporadas péssimas. É o sofrimento anterior que potencializa o prazer e a satisfação posterior. A vida é assim. Mas tenho certeza de que, se eu entregasse Lucky Jim para um editor ler sem dizer que é um clássico britânico, ele não passaria da página 10. Tudo porque – para ter leitores – as editoras e até mesmo os escritores tentam mimar os leitores de todas as formas possíveis. O início da obra precisa “prender o leitor”, a sequência tem que ser bombástica e o enredo precisa arrancar suspiros, lágrimas, risos, raiva e todos os sentimentos a cada página, a cada parágrafo e a cada linha. Querem jogar para a literatura uma vida que não existe: sem tédio, sem derrotas. Nego-me a participar desse jogo.
Por isso, leio mais autores de outras gerações do que das atuais. Certo, há muita coisa boa sendo produzida e publicada por aí, mas, quando se analisa mais atentamente, percebe-se que o escritor está tentando te mimar. A trilogia clássica de Henry Miller (Sexus, Nexus e Plexus) receberia hoje como parecer: “ninguém vai ler esse calhamaço de páginas divagando sobre a vida”. Em síntese: ou você tenta bajular e mimar mais o mal-acostumado leitor, ou não publica nada, pois, sem ter seu saco puxado intensamente, o mimado leitor não paga seu precioso dinheirinho para o editor – quiçá para o autor.
 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O reino deste mundo

 

Apesar da capa bonita da edição da Martin Fontes de 2009 e de ter apenas 132 páginas, “O reino deste mundo” não é um livro fácil. As sinopses que tem por aí, também enganam. Dizem que essa obra publicada em 1949 pelo escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980) foi uma das precursoras do realismo mágico sul-americano, inspirando “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez. Se foi ou não, eu não sei, mas são textos bem diferentes, estilisticamente falando. Enquanto na do escritor colombiano você consegue acompanhar a narrativa de boa, na do cubano é bom você ler com o celular do lado para entender o que certas palavras ou personagens significam. Aliás, mesmo mesclando personagens reais com fictícios, ele não cita nenhuma data e, como tais personagens não são famosos na história ocidental, como um Napoleão ou um Getúlio Vargas no caso brasileiro, você precisa dar um “Google” para sabem quem foi quem na vida real – ou vai ficar boiando, porque Carpentier não dá maiores explicações sobre quem é cada um, cagando para o burrinho leitor.

Por isso, e muito mais, “O reino deste mundo” não é fácil. A linguagem é um tanto quanto hermética e isso quer dizer que quando você pega esse livro para ler é bom estar bem concentrado. Não é uma narrativa para tentar acompanhar enquanto tem gente conversando ao redor ou na hora em que rola um jogo de futebol na TV. Pelo primeiro parágrafo, já dá para se ter uma ideia. “Entre os vinte garanhões trazidos ao Cabo Francês pelo capitão de barco que andava de conchavo com um criador normando, Ti Noel escolhera sem vacilação aquele reprodutor corpulento, de garupa redonda, bom para a remonta de éguas que pariam potros cada vez menores”.... E assim segue.

Antes de ler, eu achava que se tratava de um livro sobre a revolução haitiana, que começou em 1791 e foi até 1804. Porém, na verdade ele pega o antes, o durante e o depois, mas sem explicar exatamente o que e quando está acontecendo. Assim, eu descobri as datas da revolução no Google, bem como sabia o ano em que a história estava se passando quando apareciam nomes de personagens que, deduzi, poderiam ser históricos. Um deles é Mackandal, que inicia um dos levantes dos negros escravizados pelos franceses, e que nasceu em 1702 e morreu em 1758, queimado. Assim, quando matam o personagem na narrativa, eu sei que estava no ano de 1758. O mesmo vale para o resto da história: se você for pesquisando quem foi quem, você descobre o ano em que o fato aconteceu, bem como quem foi cada personagem. Lá pelas tantas, por exemplo, aparece Paulina Bonaparte, que eu, do alto da minha ignorância, não sabia quem era, apesar do famoso sobrenome. Por saber que esse período mais ou menos coincide com o da Revolução Francesa, imaginei que fosse alguma parente direta de Napoleão. E pesquisando no Google, descobri que, sim, era a irmã de Napoleão, pois Carpentier não se preocupa em explicar nem contextualizar absolutamente nada – você que lute, como diriam os jovens de hoje em dia. Você está lá, lendo a trajetória de Ti Noé – personagem principal – e de repente aparece Paulina Bonaparte, sem mais nem menos, e você não faz ideia quem ela é, de onde ela veio, o que ela representa e, muito menos, que é a irmã do Napoleão.

O problema maior, no entanto, é que a revolução começa e termina sem você perceber, pois décadas se passam em questão de poucas páginas. Em nenhum momento o autor diz: começou a revolução. Você descobre que falta pouco o que está rolando fazendo essas pesquisas paralelas. Isso me faz perguntar como as pessoas liam e compreendiam antes da internet? Digamos, um leitor de 1980. Teria que ler o troço todo com uma enciclopédia da história do Haiti ao lado para não ficar boiando.

Algumas coisas você até deduz, mas sempre fica suscetível a cometer erros de interpretação. Quando aparece Henri Christophe, por exemplo. Aos poucos você percebe que era um novo chefão do Haiti. Mas você se pergunta se é antes ou depois da revolução, pois se foi antes, o sujeito devia ser branco, se foi depois, seria negro. Ai vou no Google e descubro que ele foi o primeiro rei negro após a revolução. Isso muda tudo. Porque o personagem, em pouco tempo, está trabalhando de escravizado para Christophe. Isso fica claro mais adiante, mas dá um nó na cabeça do leitor que vai lendo sem antecipar essa informação na internet.

Bueno, em resumo, “O reino deste mundo” é um quebra-cabeça para quem gosta de história e literatura. Na medida em que você vai montando, você vai gostando, porque conta a história de um dos únicos países em que os escravizados fizeram uma revolução “bem sucedida”, matando todos os colonizadores (incluindo mulheres e crianças) e instaurando uma República com praticamente toda a população negra. É como se a “Revolta Malês”, do Brasil, tivesse dado certo. Porém, também mostra os problemas pós-revolução, pois o novo governo, formado por ex-escravizados, escravizam os mais fracos, criando um novo clã e uma nova aristocracia com divisões de classes sinistras. O último capítulo, inclusive, é arrebatador. Numa metáfora, Carpentier compara o nosso sistema de viver em sociedade à história de uma comunidade de gansos, que começa a viver em paz, mas que em pouco tempo tem dois gansos disputando o poder. “O clã mostrava-se agora uma comunidade aristocrática, absolutamente fechada a todo indivíduo de outra casta. O Grande Ganso de Sans-Souci não queria o menor contato com o Grande Ganso de Dondón. Se tivessem se encontrado frente a frente, teria estourado uma guerra. Por isso Ti Noel logo compreendeu que, embora insistisse durante anos, jamais teria o menor acesso às funções e ritos do clã. Foi-lhe dado a entender claramente que não lhe bastava ser ganso para acreditar que todos os gansos fossem iguais”. Simples assim.

Enfim, é um livro que, se você tiver paciência e disposição, vale a pena ler, pois te faz refletir sobre a condição humana e a bestialidade da nossa espécie, que nos dá exemplos de desumanidade diariamente no século XXI. Caso contrário, não se deixe enganar pela capa bonitinha e pelo resumo pomposo da orelha do livro, pois não é nenhum mamãozinho com açúcar literário para ser lido como mero passatempo.

Hasta!

 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

O estrangeiro


 Acabei de ler há poucos minutos “O estrangeiro”, do escritor franco-argelino Albert Camus. É o primeiro livro que leio de Camus, considerado por alguns como o autor da literatura francesa mais lido no mundo (é o que diz na “orelha” da obra, que tem apenas 126 páginas, publicado originalmente em 1942). Mas, vamos ao que interessa.

O estrangeiro é uma narrativa em primeira pessoa escrita na voz do personagem Meursault, um funcionário de escritório que vive na Argélia. Eu diria que Meursault mistura um pouco de estilo niilista com um pragmatismo cético e ateísta. Em outras palavras, quando comecei a ler o texto, fiz a seguinte comparação: trata-se de um Bukowski, mas sem a parte da bebedeira, dos palavrões e da putaria. O astuto leitor pode se perguntar: mas o que seria do Bukowski sem a bebedeira, os palavrões e a putaria? Eis a resposta: seria o próprio Meursault. Ou seja, a forma de encarar a vida e os fatos são semelhantes. A diferença é que o Bukowski completa o vazio do significado da existência com sexo, palavrões e putaria, enquanto que Meursault fica mais na dele mesmo.

Antes de seguir falando do Meursault, vou dar um resumão do enredo, sem contar o final, até porque Camus consegue deixar o leitor curioso sobre o desfecho até as últimas páginas e eu seria um grande filho da puta se desse esse spoiler. A história começa com Meursault partindo para o velório da mãe dele, que faleceu no asilo onde vivia. Ele a mandou para lá, pois não tinha mais condições de sustentá-la. Ao voltar do velório, ele sai com uma mina que ele era afim, vai ao cinema assistir a uma comédia, e depois ajuda o vizinho dele a dar uma lição na amante (uma surra, diga-se de passagem). Mais adiante, ele vai ao almoço do amigo em uma casa na praia e leva Marie, que em poucos dias se torna sua namorada, junto. Uns árabes seguem para acertar as contas sobre a surra que o amigo deu na irmã de uma deles. Eles se encontram com os árabes na praia e, depois de uma série de acontecimentos que demandaria muitas linhas para contar, Meursault mata o árabe. Fim da primeira parte.

A segunda parte é baseada na prisão e julgamento de Meursault, até a leitura da sua sentença, que não vou contar aqui qual é para não irritar o nervosinho leitor. E, ao final há uma série reflexões do personagem, que também não vou antecipar, pois seria impossível fazer isso sem entregar o final do romance (ou seria novela?). Uma das graças da segunda parte é que, o que era para ser o julgamento sobre o assassinato do árabe, acaba se transformando no julgamento da indiferença de Meursault sobre a morte da mãe dele no asilo.

E, então, podemos voltar para o início para fazer algumas considerações sobre essa narrativa, escrita quando Camus tinha apenas 29 anos e considerada por muitos (novamente a “orelha”) como a principal obra dele.

Pois, para isso, volto ao Bukowski. Eu tinha lido (e visto vídeos) com comentários sobre esse início da narrativa, mas acho que ninguém havia descrito o sentimento que eu tive ao ler tais linhas: eu achei um tanto quanto cômico. Achei engraçado o Meursault indo de ônibus para o enterro, indiferente sobre a partida da velha, e reclamando do cansaço e do calor. Assim como, na primeira página, achei hilária a passagem em que ele pede dois dias de licença para ir ao enterro da mãe, justificando que “com uma desculpa destas, ele não podia recusar” (p.13). A descrição sobre o velório e o enterro no asilo também me divertiram. Como disse, parecia um Bukowski são, de mau humor por estar sem bebida e sem sexo em uma tarde quente no norte da África. Aliás, Meursault é um sujeito fora do lugar o tempo todo, sem entender muito bem o que está fazendo no mundo. Ele se surpreende, por exemplo, quando termina o velório e os velhinhos vem lhe dar os pêsames. “Ao saírem, e para grande espanto meu, vieram todos apertar-me a mão como se esta noite, em que não havíamos trocado uma só palavra, tivesse aumentado a nossa intimidade” (p.21).

As descrições metafóricas também são um ponto alto do clássico, pois ajudam a visualizar as cenas, mas até para isso Camus apresenta um humor fino. Um exemplo é quando ele descreve o carro fúnebre: “envernizado, comprido e reluzente, me lembrava um porta-canetas. Ao lado dele estava o agente funerário, homenzinho de roupas ridículas, e um velho com um ar constrangido” (p.23).

A descrição, com tom de indiferença em relação ao fato principal (que seria a morte da mãe) dá esse tom ao mesmo tempo bizarro e filosófico sobre a cena toda. Meursault é, antes de tudo, um sujeito anti-social ao extremo. Na página 29, por exemplo, ele não vai almoçar no restaurante onde sempre almoça “porque, com certeza, me fariam perguntas, e não gosto disso”.

Já na página 31, ao ler toda a descrição do narrador sobre a cidade, eu me senti assistindo a um programa do National Geographic sobre animais selvagens, pois Meursault descreve tudo como se não fosse parte daquela sociedade ou sequer da mesma espécie. “Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram na rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes tinham gestos mais decididos do que de costume, e calculei que haviam visto um filme de aventuras. Os que regressavam dos cinemas do centro, chegaram um pouco mais tarde. Pareciam muito sérios”. E assim segue.

A porra toda aconteceu na quinta e na sexta-feira, o que deixou o patrão dele puto, pois assim ele teve quatro dias “de folga”. Ao voltar, porém, ele oferece uma vaga em Paris, mas a falta de ânimo de Meursault diante da notícia acaba decepcionando o boss. A descrição indiferente e crítica feita sobre os vizinhos do personagem também são divertidas. Um dos personagens apresentados é Emmanuel e o seu velho cachorro, que passeiam juntos há anos e todos os dias repetem a mesma cena: Emmanuel, um velho meio caduco, passeia com o cusco e xinga o animal o tempo inteiro de imundo e nojento. A situação de escassez financeira do personagem, aliado a sua preguiça, também me fez lembrar os meus tempos de faculdade. Em certa cena, um vizinho o convida para jantar, e Meursault aceita, concluindo: “pensei que isso me pouparia fazer minha comida e aceitei”. Depois, quando o vizinho pergunta se Meursault quer ser seu amigo, ele responde que “tanto faz”. Aliás, esse é um dos pontos mais destacados nas críticas que li previamente sobre o livro: “tanto faz” era a resposta preferida de Meursault. “Tanto fazia ser ou não amigo dele, e ele parecia realmente ter vontade disso” (p.40). A mesma resposta o personagem dá para Marie, o caso/namorada dele, quando ela pergunta se ele quer casar. “À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar” (p.48). É óbvio que ela ficou puta. Da página 53 até a 64 é narrada a cena do assassinato desde o início e, então, começa o capítulo 2, com o julgamento.

Mas aí já é outro assunto, que se me der la gana, futuramente volto para escrever. Caso não volte, na edição que comprei, sublinhei as partes interessantes para caso algum dia eu queira recuperar as cenas que a minha precária massa cinzenta tiver apagado. Mas o resumo é aquele que já mencionei: vão julgá-lo pelo assassinato, mas o foco na fala do defensor público e do promotor acaba sendo a indiferença de Meursault sobre o mundo e os outros, especialmente no que diz respeito à morte da mãe, além do seu ateísmo declarado.  

Hasta! 

 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Nada será como antes – I’m back – Again!

 


Estou de volta neste abandonado canal, um ano e meio depois da última postagem. Tudo porque, depois de ler a biografia do Lula, li alguns livros e acabei não resenhando em lugar nenhum. Apenas escrevi brevíssimos comentários na minha coluna do Diário Popular, de Pelotas. Assim, como percebi que alguns livros que li há cerca de um ano eu já mal recordo a história e os personagens, lembrei que esse espaço tem como principal finalidade fazer resenhas públicas dos livros que leio para consultar anos depois, quando minha massa cinzenta já tiver deletado a porra toda do meu cérebro corroído pelos anos de uso e pelo álcool.

Bom, sem mais delongas, acabei de ler outra biografia: Nada será como antes, sobre Elis Regina, escrita pelo jornalista Julio Maria. Antes de falar da obra, conto rapidamente como cheguei nela. Certa madrugada, depois de muitos latões de cerveja, estava ouvindo no youtube “Como nossos pais”, da Elis, quando pensei: “meu, essa mulher é foda”. Tomei mais um gole e completei: “Deve ter tido uma vida do caralho!”. E então, eu pesquisei no Google uma boa biografia sobre Elis. No dia seguinte, acordei e levei minha vida normalmente, até que recebi um e-mail da Estante Virtual dizendo que meu pagamento havia sido aprovado. “Como assim, pagamento?”, perguntei a mim mesmo. “Caralho, clonaram meu cartão!”. Abri o e-mail, apavorado, mas tomei um susto ao ver que eu, de fato, havia encomendado a biografia da Elis Regina, “Nada será como antes”, com pagamento à vista, por 90 reais, às 4h30 da madrugada. Puta que pariu, preciso parar de beber.

Enfim, o livro chegou e acabei lendo todas as suas 417 páginas. O investimento acabou valendo a pena, pois, de fato, a biografia da Elis é foda pra caralho. O livro, inclusive, é como a vida da Elis: cheio de altos e baixos. Os pontos mais altos, na minha humilde opinião, é o início e o fim, com a narração dramática da morte da cantora. Ali, realmente Julio Maria conseguiu fazer a narrativa “cena a cena” do New Journalism, lembrando, além dos jornalistas literários americanos, os grandes biógrafos brasileiros, tais como Fernando Morais e Ruy Castro. Nestes dois trechos, o texto que te transporta para o apartamento da Elis, para o seu último dia de vida, etc e tal. Mas o miolo do livro, que efetivamente narra a carreira de Elis, varia entre outros momentos em que você se sente ao lado dela na sua vida vivida andando sempre a 200 por hora, e contações de histórias de bastidores da Música Popular Brasileira, algumas maçantes e que não acrescentam muita coisa ao principal, que é a vida de Elis.

Eu até entendo o Julio Maria, porque ao final do livro tem a lista de todas as pessoas entrevistadas e, tenho certeza, ele deve ter ficado tremendo de êxtase ao ouvir cada uma delas. Só que algumas histórias acabaram não acrescentando muita coisa à narrativa como um todo. Enfim, críticas à parte (que nem tenho moral para fazer, afinal, o cara fez a biografia de uma das maiores cantoras da história do Brasil entrevistando um monte de lendas vivas da cultura brasileira), o que interessa para o eu do futuro é: afinal, quem foi Elis Regina? Vou pontuar algumas impressões que tive, lendo a obra.

1)   Elis Regina, enquanto pessoa, é o que hoje seria considerada alguém clinicamente doente, com uma bipolaridade extrema. Como eu convivi durante anos com pessoa portadora dessa doença, sei que não é fácil. Só de ler determinadas histórias da artista, tive calafrios. Pensei: caralho, eu não gostaria de ter conhecido ela pessoalmente. Não vou descrever a doença, mas, em toda a narrativa, percebi ela na vida de Elis. É aquela coisa de enlouquecer todos que estão ao seu redor para fazer com que TODOS se sintam igual a você: quando estou feliz, todo mundo tem que estar feliz; quando estou puto, todo mundo tem que estar puto, não importa se você ganhou na megasena ou acabou de ter um filho; quando estou deprê, todo mundo tem que ficar deprê. Na boa, nem se tratando de Elis Regina eu viveria um inferno desses de novo.

2)      Como bipolar, ela vivia tudo intensamente. Se ficava brava com o marido/namorado buscava nos braços de outro algo que sentia falta. Depois, se arrependia e fazia o inverso: destratava o amante e caia nos braços do marido. Traia e era traída. Tinha ciúmes e sofria pelos ciúmes dos outros. Enfim, tudo vivido com o pé no acelerador, numa montanha russa de emoções que, com uma pitadinha de elementos químicos faria tudo ir pelos ares.

3)      Na biografia escrita por Julio Maria, repórter especializado em música, senti falta de “romantizar” mais a infância, fazendo a narrativa cena a cena para alguns episódios. A infância/adolescência é contada mais por cima, talvez porque não tivesse tantas fontes para descrever detalhes de certos episódios. Mas aí acho que ele poderia ter liberado a veia ficcionista e criado mais em cima do que ouviu. Apenas compartilho aqui um palpite que me ocorreu enquanto lia. Por outro lado, outros episódios não tão importantes receberam páginas e páginas, tornando alguns trechos da leitura monótonos, por mais que a história fosse sempre acelerada.

4)      O legal de ler hoje em dia, com a internet, é poder ler sobre a história de uma música ou de um show e ir buscar lá no youtube. Um exemplo foi quando li a boa história da gravação de Elis Regina com Tom Jobim nos Estados Unidos e, ao concluir esse trecho, catei vários vídeos dos dois artistas cantando músicas como “É pau, é pedra” no estúdio ou em shows e por aí vai.

5)      Agora, para alguém como eu, que peguei o livro para ler apenas sabendo que Elis era uma lenda da música nacional e que havia morrido de overdose, há a curiosidade de saber como era essa relação dela com as drogas. E aí vai um pequeno spoiler: o livro inteiro praticamente não fala disso. E o motivo é bem simples: durante a vida toda, ela detestou qualquer tipo de droga, com exceção da bebida, mas no seu último ano de vida, ela começou a usar cocaína. E aí é a fórmula perfeita para a tragédia: um bipolar em grau máximo, sem tratamento psiquiátrico, bebendo e usando cocaína. É como ver um sofá pegando fogo e atirar um galão de gasolina para tentar apaga-lo. Explodiu tudo e a tragédia foi certa.  

6)      O fim do livro, com as últimas 24 horas da Elis, é espetacular, mas me fez pensar que, de fato, o ser humano não sabe lidar com relacionamentos. Não sei é justo dizer isso, mas a misturança de drogas e álcool que a levou ao óbito surgiu da imaturidade de dois adultos de lidar a temática. Para piorar, como quase sempre, quem mais sofrem são os filhos, no caso, três, na época, de quatro a onze anos.

7)      Sobre política, há trechos interessantes. A questão da ditadura militar e todo o seu absurdo aparece de maneira marcante, pois inicialmente Elis foi acusada pela esquerda mais militante de ser “chapa branca” com os milicos, porém, depois, ela se engajou a tal ponto de ter um dossiê detalhado sobre a sua vida no DPOS, além de ter sido ameaçada por militares. O capítulo 19 também mostra que ela queria contar as feridas sociais nas suas músicas e descreve, na página 323, como ela conheceu o presidente Lula e sobre como ambos se identificaram um com o outro. Lula, inclusive, esteve no velório de Elis Regina, lamentando a morte da cantora.

Enfim, há outros pontos diversos, mas estou fora de ritmo e por hoje deu. Se me der la gana, futuramente volto aqui para comentar mais.