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segunda-feira, 19 de maio de 2025

Estamos virando bovinos?


 * Texto publicado em A hora do Sul, de Pelotas-RS

Num sábado de sol desses, estava caminhando pelo meu bairro, o Areal, quando avistei um campinho de futebol, daqueles de terra batida, com duas goleiras vazias. Olhei para o relógio: 16h30. Espiei a temperatura no celular: agradáveis 19 °C. Vi aquele amplo espaço, cercado por casas cheias de famílias, e me perguntei: diabos, onde estarão as crianças e adolescentes numa hora dessas? Aquele era o cenário perfeito para dois amigos de 12 ou 13 anos pegarem uma bola de futebol para cobrar faltas e, em poucos minutos, começarem a aparecer outras crianças para se juntar ao grupo, até se formarem dois times com pelo menos sete para cada lado: os de camisa contra os arquirrivais sem camisa. Lembrei que, alguns anos atrás, um campinho desses, em qualquer cidade brasileira, contaria com fila de crianças, adolescentes e até adultos esperando para jogar gratuitamente. Contudo, não precisei refletir muito para entender o motivo da ausência dos peladeiros no campinho, pois logo espiei por uma janela escancarada e vi duas crianças atiradas em um sofá, cada uma com seu celular.

Andando sob aquele sol perfeito em um final de semana, comecei a formular a seguinte hipótese: estamos nos parecendo cada vez mais com alguns quadrúpedes. Talvez mulas, talvez algum bovino. Pensem nos bisões. Esses animais que vivem nas planícies da América do Norte passam a vida migrando de um canto para outro atrás de pasto verde e suculento. Conforme a estação do ano, precisam fazer verdadeiras travessias para fugir do frio ou encontrar mais alimento, tendo que encarar lobos-cinzentos, ursos e pumas que sonham com suas carnes rijas e fartas.

Agora, imaginem se os bisões encontrassem um campo infinito, com pasto verdinho sem fim. Eles ficariam ali o resto da vida, pastando, dormindo, procriando e defecando, numa ciclicidade entediante. Pois é isso que está acontecendo com o ser humano enfeitiçado pelo celular: ele sai cada vez menos, pois encontra tudo ali — amigos, relacionamentos, sexo, discussões, filmes, crimes, alegrias, frustrações, jogos —, enfim, tudo o que pode preencher os mais variados tipos de sentimentos que ele procura. Estamos virando um bisão que anda em duas patas, com uma pastagem infinita diante de nós. E, infelizmente, não parece haver muito o que fazer. Assim como o bisão só se movimenta quando o pasto some ou congela, nós também só sairíamos mais de casa — seja para jogar bola num campinho de terra batida, seja para flertar por aí — se nos arrancassem os celulares das mãos. O bisão não tem escolha: precisa encarar lobos e ursos para sobreviver. Já nós, que temos escolha, optamos por passar tardes de sábado ensolaradas jogados no sofá, comendo o nosso pasto digital, levantando apenas para ir ao banheiro, dormir, comer e, às vezes, copular. Aliás, do jeito que a coisa vai, logo até isso o ser humano vai deixar de fazer por pura comodidade. No fim das contas, tanto nós quanto os bisões só nos movemos quando alguém tira o pasto — ou o celular — e nos coloca diante de uma necessidade incontornável.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Lucky Jim


 (ALERTA! CONTÉM SPOILER)

Meu filho achou que eu havia enlouquecido quando me pegou na sala ouvindo música clássica, tomando um vinho e lendo Lucky Jim. “É para me sentir no interior da Inglaterra dos anos 1950”, expliquei. Ele não entendeu nada e continuou achando que eu tinha pirado. De qualquer forma, achei Lucky Jim, do escritor britânico Kingsley Amis (1922–1995), um excelente e autenticamente britânico livro. Descobri a obra em uma lista divulgada por um escritor no Instagram do Estadão, em celebração ao Dia do Leitor. Li a sinopse, gostei e comprei. Não me arrependi.

Para falar do enredo, é preciso entender os personagens. O principal é Jim Dixon, um professor universitário em uma pequena cidade do interior da Inglaterra. Como está em uma espécie de estágio probatório, ele precisa agradar a todos, especialmente ao professor Welch, um senhor que, indiretamente, dá a entender que está começando a apresentar sintomas de demência. Dixon, contudo, mesmo atrapalhado, tenta de tudo para agradar ao chefe — que, no fundo, ele odeia.

Ao longo da história, Dixon se envolve, meio sem querer, com Margaret, outra professora que tentou cometer suicídio após romper com um namorado e que Welch leva para sua casa para que seja bem cuidada. No entanto, logo Dixon percebe que ela é extremamente geniosa — com sintomas de bipolaridade aguda — e, mesmo tentando agradá-la de todas as formas, sempre acaba se dando mal. A mulher de Welch é aquela típica senhora inglesa, estilo sargentona, que manda no marido e tenta manter tudo sob controle. É nesse cenário que surge o filho do casal, Bertrand, um pintor barbudo e mulherengo, que namora Christine, mas mantém um caso com Carol, colega de Dixon e também professora, casada com outro personagem.

Resumindo: o enredo todo se passa no ambiente universitário, com várias intrigas e mesquinharias cômicas que eu, como professor, obviamente achei o máximo. Na edição da Todavia que comprei, porém, há um erro na sinopse: diz que Dixon tenta conquistar Margaret. Na verdade, não. Ele é amigo dela, enquanto ela acredita que são um casal. Dixon passa a maior parte do tempo tentando desfazer esse mal-entendido para manter apenas a amizade, mas não consegue. Romanticamente, ele acaba se envolvendo com Christine, a namorada de Bertrand, com quem desenvolve uma acirrada rivalidade que culmina em uma briga física antes da grande palestra — já no final do livro — que definiria o futuro de Dixon na universidade. Bertrand, por sua vez, nem gosta tanto da namorada, mas quer ficar com ela para conseguir um emprego através do tio dela, que (atenção ao spoiler!) acaba contratando Dixon após este fazer uma palestra horrorosa sobre Happy England e não ser efetivado pela universidade.

Mas, para o leitor entender o estilo de Kingsley, quando disse que é autenticamente britânico, coloco abaixo um trecho de uma cena cômica. Dixon havia sido convidado (e ido por obrigação) em um evento cultural promovido por Welch na sua residência, que ficava em uma região mais afastada da cidade e que, assim, fez com que os convidados pernoitassem na sua amplíssima mansão. Acontece que Dixon tomou um porre e adormeceu em sua cama, mas como o cigarro estava aceso, acabou queimando parte da colha e da mobília do quarto. Contudo, ao acordar, ele não lembrava de nada. Ao contrário de um estilo cru e bukowskiano, Kingsley adota o que chamei anteriormente de um estilo autenticamente britânico, quase formal, para descrever a cena cômica:

“Ele próprio teria feito tudo aquilo? Ou um viajante, um ladrão, acampara em seu quarto? Ou fora vítima de algum ser estranho como o Horla de Maupassant, apreciador de tabaco? Pensou que, de modo geral, devia ser mesmo o responsável por tudo, e desejou que não fosse assim. Certamente isso significaria a perda do emprego, em particulares deixasse de procurar a sra. Welch e confessasse o malfeito sabendo de antemão que seria incapaz de fazê-lo. Não havia desculpa que não consistisse no indesculpável: um incendiário não merecia mais perdão quando se soubesse que era também um bêbado – e tão viciado que suas obrigações para com os anfitriões e os outros convidados, sem falar na atração de um concerto de câmara, nada representava comparadas à tentação da bebida” (p.79).

Aliás, foi após esse incidente que Dixon começa a se aproximar da namorada de Bertrand, que o ajuda a se safar dessa. Mais adiante, também há um baile que reúne toda a comunidade universitária – incluindo a família Welch e Dixon – que ocupa boa parte da trama e que acaba por aproximar ainda mais Dixon e Catharine.

Enfim, encerro aqui esse pequeno resumo pessoal para que, no futuro, quando eu quiser relembrar a história desse livro, eu possa consultar e ler tal sinopse novamente tomando um vinho e ouvindo música clássica para me aproximar um pouco mais do romântico e charmoso interior da Inglaterra dos anos 1950. 

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Mimado leitor


Pois não morri, e aqui estou. Quase dois anos depois, resolvi voltar a habitar esse espaço, mais para criar um "arquivo digital" das minhas colunas que escrevo para jornais com acesso limitado e para seguir a lógica de resenhar livros que sei que daqui um ou dois anos já terei esquecido da metade da história do que para qualquer outra coisa. Enfim, começo com a coluna que acabei de enviar para o jornal A hora do sul, aqui de pelotas, falando sobre o mimado e (aqui posso dizer) vagabundo leitor contemporâneo:

Confesso que já praticamente desisti da ideia de escrever literatura. Eu tinha um livro escrito desde 2017, com quase 500 páginas, que enviei para diversas editoras, e a resposta – quando vinha – era algo do tipo: “não publicamos algo desse tamanho”. Ou então: “favor, enviar uma versão reduzida”. Neste ano, quando reenviei mais uma vez para outra editora, já editei antes, fechando em cerca de trezentas páginas. Tudo por conta de que, para competir com outras narrativas (como as dos reels e do TikTok), a literatura contemporânea está cada vez mais mimando os preguiçosos e mentecaptos leitores. Por isso, decidi que, pelo menos momentaneamente, não escrevo mais nada de literatura gratuitamente. 
Lendo o romance Lucky Jim, do escritor britânico Kingsley Amis (1922–1995), tenho certeza de que, se ele enviasse esse clássico da segunda metade do século XX para qualquer editora hoje em dia, ouviria um sonoro NÃO como resposta. Tudo porque se trata de um excelente livro de cerca de 300 páginas, mas que demora umas 60 para engrenar. Você precisa superar seis dezenas de páginas (num mundo que te oferece prazer rápido no celular) para começar a entrar, de fato, na história do professor universitário Jim Dixon, que vive em uma pequena cidade do interior britânico dos anos 1950. Contudo, o tédio das primeiras 60 páginas é NECESSÁRIO para o prazer das seguintes. Algo que o leitor mimado e preguiçoso de hoje não compreende. Ele quer algo divertido, prazeroso e rápido. Não quer ter que passar dois dias lendo um livro para só então começar a sentir prazer. 
Em outras palavras, é como um torcedor de futebol que só quer vencer. Ele não quer estar perdendo nunca. Isso pode parecer bom, inicialmente, mas, se conseguir isso, jamais terá o prazer de comemorar uma virada histórica (como a Inter de Milão fez dias desses contra o Barcelona) ou celebrar uma fase vitoriosa após temporadas péssimas. É o sofrimento anterior que potencializa o prazer e a satisfação posterior. A vida é assim. Mas tenho certeza de que, se eu entregasse Lucky Jim para um editor ler sem dizer que é um clássico britânico, ele não passaria da página 10. Tudo porque – para ter leitores – as editoras e até mesmo os escritores tentam mimar os leitores de todas as formas possíveis. O início da obra precisa “prender o leitor”, a sequência tem que ser bombástica e o enredo precisa arrancar suspiros, lágrimas, risos, raiva e todos os sentimentos a cada página, a cada parágrafo e a cada linha. Querem jogar para a literatura uma vida que não existe: sem tédio, sem derrotas. Nego-me a participar desse jogo.
Por isso, leio mais autores de outras gerações do que das atuais. Certo, há muita coisa boa sendo produzida e publicada por aí, mas, quando se analisa mais atentamente, percebe-se que o escritor está tentando te mimar. A trilogia clássica de Henry Miller (Sexus, Nexus e Plexus) receberia hoje como parecer: “ninguém vai ler esse calhamaço de páginas divagando sobre a vida”. Em síntese: ou você tenta bajular e mimar mais o mal-acostumado leitor, ou não publica nada, pois, sem ter seu saco puxado intensamente, o mimado leitor não paga seu precioso dinheirinho para o editor – quiçá para o autor.