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domingo, 4 de maio de 2014

De volta pra casa – a saga de um gremista

Hércules era um cara forte. Forte e foda. Em todos os sentidos: no colégio era o que batia em todo mundo, na academia era o que colocava mais peso nos aparelhos, era campeão da queda de braço e era o último a se entregar quando a galera se juntava para encher a cara durante a adolescência. Foi o primeiro da turma a perder a virgindade. Sua mãe contava que ele deu trabalho até para que os médicos tirassem ele da barriga, em 1980, ano em que nasceu – de parto natural, óbvio. Hércules herdou de seu pai a paixão pelo Grêmio. Morava na Azenha e os anos 1990 foram inesquecíveis. Ele era o principal praticante de buyilng contra colorados na sua escola. Era o mais forte, o garanhão e, com muito orgulho, era gremista: comemorava títulos e mais títulos ano após ano. Depois de ser campeão de praticamente tudo em 1994, 1995 e 1996, quando ganhou a Copa do Brasil de 1997, comprou uma camiseta em que abaixo do símbolo do Grêmio estava escrito “Estou de saco cheio de ser campeão”.
Apostou com um colega seu de escola que o dia em que o Inter ganhasse o Mundial ele pagaria lanche todo o dia, até o fim da vida, para o amigo colorado.
A vida era um paraíso. Ele era o máximo. O Grêmio era o máximo. Mas o tempo passou e vieram os anos 2000, que começaram bem, com um título da Copa do Brasil. Ou seja, mesmo sem ser a máquina de outrora, o Grêmio seguia sendo campeão e o Inter continuava penando. Entre altos e baixos, nada parecia mudar. Porém, como diria Joseph Climber, a vida é uma caixinha de surpresas, e nos anos seguintes tudo se inverteu. A sorte de Hércules é que o colégio terminou e na faculdade ninguém ligava muito para futebol. No entanto, Hércules passou a sofrer. E deixou de ser o cara despojado, que falava alto e sem vergonha de ninguém. Hércules começou a ficar introvertido. Em 2010, ao completar 30 anos, já formado, depois que o Inter ganhou a Libertadores, Hércules resolveu juntar o útil ao agradável ao aceitar uma proposta de emprego nos Estados Unidos. Aceitou, mesmo que isso implicaria em não poder mais ver jogos do Grêmio na Azenha, sua atividade mais prazerosa na infância e juventude. No entanto, do jeito que a coisa ia, o melhor era partir.
E assim, depois de comemorar muito a vitória do Mazembe no Mundial (que também foi a sua festa de despedida) Hércules seguiu para solo americano. Ele já tinha um bom currículo e sabia que poderia voltar quando quisesse. Porém, fez uma promessa ao seu pai no hospital, pouco antes de perde-lo, três meses antes de partir: “quando o Grêmio for campeão novamente, sem contar título estadual, eu volto”. Foi uma promessa de fidelidade ao amor ao Grêmio, herdado pelo pai. E assim, Hércules partiu.
De início, ele estava com espírito aventureiro, pois sabia que o Grêmio poderia ser campeão a qualquer momento. Porém, os anos se passaram, e nada. Hércules foi vendo a vida passar e, sem muitas esperanças no seu tricolor, casou. Teve filhos. Todos americanos. Ganhou o Green Card.
Passaram-se 20 anos. Chegou 2030 e Hércules já estava com 50. Sua filha mais velha estava grávida: seria avô. 20 anos nos Estados Unidos sem ver o Grêmio ser campeão. Até que, no ano de 2030, o Grêmio tinha uma chance mínima de ser campeão brasileiro. Era a última rodada e o time de Hércules estava em quarto lugar. E o pior: o líder era justamente o Inter que, em uma das finais mais emocionantes de todos os tempos, enfrentaria o vice-líder Cruzeiro, no Mineirão. Ambos estavam com o mesmo número de pontos, mas os colorados tinham vantagem no número de vitórias. E em terceiro estava o São Paulo, um ponto atrás de Inter e Cruzeiro. Um ponto atrás do São Paulo, e a dois dos líderes, vinha o Grêmio. Para ser campeão, Inter e Cruzeiro teriam que empatar, o São Paulo não ganhar para o já rebaixado Vitória em Salvador e o Grêmio teria que vencer na Arena o Palmeiras.
Assim que terminou a penúltima rodada e se formou esse quadro, Hércules ficou nervoso como nunca na vida. Estava casado há 18 anos. No primeiro ano de casamento, teve a primeira filha, que nem havia chegado à maioridade quando engravidou. Cinco anos depois, teve o seu filho, Jonh. E dois anos mais tarde teve a caçula, Mary. Em todos esses anos ele nunca havia contado para ninguém da família sobre a promessa feita ao pai falecido (e que, no seu íntimo, era uma promessa ao Grêmio, que tinha o peso de toda a sua palavra e ética pessoal de 50 anos). Hércules passou a semana nervoso. Não dormia bem. Não conseguiu ter ereção para passar o rodo na mulher. Broxou com a amante. Vomitou três vezes. Teve caganeira. Até que na noite de sábado, resolveu reunir toda a família para contar a história da promessa.
Os filhos americanos nunca entenderam direito a paixão do pai por um time que não ganhava nada. E reclamavam que Hércules não conseguia se interessar pelos esportes americanos. A mulher, achou que ele tinha uma amante brasileira e estava inventando uma desculpa esfarrapada para abandoná-la. Disse que se ele voltasse, que fosse sozinho, divorciado, e que entrasse na Justiça para ver os filhos. Hércules ficou duplamente nervoso: por um lado, se o Grêmio ganhasse, a alegria e a explosão de êxtase seria inevitável. Por outro, ficaria triste de perder a família. O que fazer? Torcer contra o Grêmio estava fora de cogitação. Ainda mais se for para o Inter ser campeão! 20 anos nos Estados Unidos. Quase 30 anos sem título. Uma promessa feita com a sua alma.
O domingo chegou. Hércules acordou cedo. Rezou. Pensou em fazer promessas, mas a que tinha feito 20 anos atrás era mais do que suficiente. Roeu as unhas, foi cinco vezes no banheiro com diarreia. A mulher, em uma atitude de protesto, saiu com os filhos para a casa da mãe – aquela vaca. No mínimo deviam estar falando mal dele. O melhor era não pensar nisso. Tinha que se concentrar nos jogos. Rubinho era dúvida. Souza estava confirmado. Hércules juntou as três TVs da casa e colocou uma TV do lado da outra. Colocaria um jogo em cada TV. Na TV um, com o som ligado, passaria Grêmio x Palmeiras. Na TV 2 ficaria Cruzeiro x Inter e na última Vitória x São Paulo.
Rola a bola. O coração de Hércules está acelerado e ele pensa que vai enfartar, no entanto, não pode morrer sem saber quem será o campeão. 2030. 29 anos desde o último título importante. Durante a semana, Hércules já tinha pesquisado os preços das passagens para Porto Alegre e havia enviado currículo para grandes empresas de Porto Alegre. Estava tudo encaminhado. Aos 10 minutos do primeiro tempo, a primeira ducha de água fria: gol do São Paulo. E o pior que o Grêmio não jogava bem – por que a porra do Pará, treinador do Grêmio, não tirava o Juninho pra colocar o moleque Jubinha? Porra! Bom, ficar nos Estados Unidos com a família talvez fosse um consolo razoável. 39 minutos e o juiz apita uma falta na risca da área para o Palmeiras. Biribinha cobra com perfeição, gol do Palmeiras. Hércules começa a suar frio. É o fim. Morrer do coração na frente da TV. Melhor do que ver o Inter campeão. Termina de pensar isso e a tragédia começa a se concretizar: gol do Inter. Tudo errado. Aos 47, o Inter ainda amplia, calando o Mineirão.
No intervalo, Hércules vai até o quarto da mulher e pega um cigarro. Ele, que odeia o cheiro daquela merda, que não fumou nem quando os seus filhos nasceram, agora sentia a necessidade de ocupar as suas mãos com algo. Pegou o cigarro e fumou descontroladamente até começar o segundo tempo. Uma reviravolta era impossível. O Grêmio estava mal, o Inter dando show e, mesmo assim, o time do Vitória era muito ruim – e devia estar comprado. Baianos filhos da puta.
20 minutos do segundo tempo e tudo igual. Até que aos 22, a porra do Juninho arranca pela direita passa pelo marcador e acerta um chutaço no ângulo do gol palmeirense. Hércueles pula do sofá, grita, berra, da socos no ar! Ainda está comemorando quando o juiz marca pênalti para o Cruzeiro. Ele não acredita! Yes, we can, man!!! O gol do Cruzeiro foi sofrido: goleiro espalmou, a bola bateu no travessão direito e quicou dentro do gol. A veia do pescoço de Hércules está quase explodindo pelos batimentos cardíacos acelerados. O telefone toca. Hércules atende, sem tirar os olhos da TV. É a mulher querendo discutir o relacionamento. Ele simplesmente desliga. E desliga o celular. Não consegue pensar em nada além dos jogos. O Grêmio está a três gols de ser campeão. 29 anos. 20 em solo americano.
40 minutos. Um filme trágico começa a passar pela cabeça de Hércules, pois o Inter vai sendo campeão. A torcida colorada faz muita festa no Mineirão. O Cruzeiro está atordoado com os chios da própria torcida, a cada passe errado. Na Arena, todo mundo quieto, vendo o time jogar mal e sabendo que o rival vai ser campeão.
42 minutos e o zagueiro do São Paulo erra o passe.
Veiga, um moreninho rápido pega a bola e dispara, dribla o goleiro e toca para as redes do gol vazio. Hércules pula! GOOOOOOOOOOOL, PORRAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!! Ele está extasiado. No entanto, no Mineirão, o Inter ataca. Banzé toca para Marquinhos que chuta no travessão. A pequena torcida colorada faz o estádio tremer. Alguns começam a cantar “é campeão”. No rebote, o Inter segue com a bola. Banzé entra na área e cai. O time vai pra cima do juiz, mas o jogo segue. A defesa colorada está desarrumada e Lucas lança Matheus no fundo. Ele cruza para Moisés surgir por trás do zagueiro e meter a testa. O goleiro espalma para escanteio. Os colorados criam uma discussão pra ganhar tempo. Já passa dos 45 quando Matheus vai para a cobrança. No banco de reservas, os colorados pedem o fim do jogo. Nos Estados Unidos, Hércules está de joelhos na frente da TV. Reza tudo o que sabe, em inglês, português, espanhol e chinês. Matheus põe a bola na área, a zaga afasta e no rebote Lucas acerta uma pancada. A bola desvia no zagueiro Ronaldo e engana o goleiro. GOOOOOOOOOOLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLL! PORRAAAAAAAAAA!
Hércules está em fora da casinha! Pula, grita, xinga, dá soco nos móveis, quebra a mesa nova que a mulher ganhou da mãe, a vaca. Vira as cadeiras. Até que num flash de lucidez, se da conta de que se o Grêmio não marcar, o Inter vai sendo campeão, caralho! Ele tenta raciocinar – elaborar uma estratégia para ajudar o time a milhares de quilômetros de distância. Termina o jogo do São Paulo. Na Arena, o juiz deu mais cinco. Aos 48, termina o jogo do Inter. Um gol. Ninguém sai do Mineirão. Todo mundo ouvindo o velho e bom radinho (alguns olham o jogo do Grêmio em seus Ipads e afins). Aos 49, falta para o Grêmio a três passos da grande área. Hércules treme. Está pálido. Pede para o Todo Poderoso. Promete que, além de voltar para o Brasil, vai ser uma boa pessoa. Vai fazer serviço comunitário em prol dos pobres e oprimidos até o fim da sua vida. Pingu ajeita a bola. Hércules promete parar de beber. Pingu dá três passos para trás e fica com a mão na cintura esperando a autorização do árbitro. A barriga de Hércules dói. Ele peida e saí um pouco de merda. Foda-se. Pingu corre, a bola vai indo, indo, passa a 2 centímetros da cabeça do jogador que está no meio da barreira, continua indo e explode no travessão. Quica em cima da linha e no meio da confusão Dudu mete a cabeça na bola que morre no fundo do gol.
GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLLLLLLLLL! CARALHOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!!!!!
ÉÉÉÉÉ CAMPEÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOOOO PORRAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!!!!


E essas foram as últimas palavras de Hércules, que voltou para o Brasil, para ser enterrado junto com seus pais, no cemitério ao lado do velho Olímpico, na Azenha, em Porto Alegre.

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