.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Galeria Fosca

Quanto mais leio a obra de Erico Verissimo, mais eu me impressiono. Fico impressionado principalmente com textos e livros não tão conhecidos e que se fossem lidos hoje, sem indicar o ano da produção e o autor, poderiam ser creditados a qualquer escritor contemporâneo (da qualidade do Erico, se é que existe). Estou lendo no momento Galeria Fosca, uma publicação da Editora Globo, com crônicas e contos publicados, principalmente, na Revista do Globo. Achei esse livro num sebo em Blumenau (SC), durante o Intercom Sul, e comprei-o por míseros R$10. Acho engraçado como as pessoas reclamam do preço dos livros (R$15, R$20, R$30, R$40) mas vejo sempre elas gastando esses mesmos valores em cerveja, ingresso para tudo que é coisa, guloseimas, etc. Inclusive esse que vos escreve às vezes gasta R$20, R$30 em alguma bobagem qualquer e reclama de comprar um livro por R$20. É a vida...
Enfim, como dizia, estou lendo a Galeria Fosca, e destaco aqui dois textos do Erico. No primeiro, “Pobre João da Silva”, ele faz uma comparação entre um escritor ficcional britânico e um brasileiro. Em resumo, enquanto o britânico (Hot Potatoes) cresce freqüentando bibliotecas, tendo conversas sobre literatura, filosofia e metafísica no jantar e no almoço com seus pais, e fazendo viagens à países exóticos para enriquecer seus romances, o brasileiro João da Silva cresce jogando bola em chão batido, fazendo rimas tipo limão-sabão, e vai lendo desordenadamente por conta própria autores que vão de Júlio Verne a Zola. E termina perguntando: “agora me digam: pode-se comparar em pé de igualdade os romances do cultíssimo Mr. Hot Patatoes com os do nosso pobre e simpático João da Silva?”. Acredito que todos saibam a resposta...
Já o segundo texto que quero mencionar aqui, esse sim, pode ser lido como se fosse atual, mesmo tendo sido escrito em 1937. O título é “Reflexões sobre o romance-rio”. Agora, vejam só se não há nada de familiar com a contemporaneidade nos seguintes trechos:
“Houve bons tempos tranqüilos em que o ritmo da vida era lento e suave. Havia vagar para tudo. Para longos serões familiares. Para leituras demoradas. Para jogos de salção. As mulheres bordavam toalhas eternas. Os homens jogavam paciência e decifravam charadas. Os velhos dormitavam ao balanço das cadeiras esperando a morte. Ninguém tinha pressa. Nem o Tempo. Nem a própria Morte. Para que fazer hoje o que se podia deixar para amanhã?
(...)
Que vemos hoje: A vida batendo recordes de velocidade. Toda a gente aforismada, suada, aflita, endoidecida, correndo às tontas dum lado para outro. Olhos só voltados para fora. Adeus, serões do passado! Adeus, tranqüilidade de outros tempos! Adeus, vida íntima, interiorizada e doce!
Aviões passam roncando no céu, espantando as últimas pombinhas líricas que dormem nos derradeiros telhados coloniais. Brocas elétricas rechinam e trepidam nas ruas, furando trilhos, triturando pedras. Os bondes produzem uma trovoada de fim-de-mundo. Cartazes berram anúncios vertiginosos. Cinemas exibem fitas cada vez mais aperfeiçoadas, cada vez mais delirantes. Novos artigos e novas facilidades de venda retratam a fúria aquisitiva das populações. O rádio enche o ar de ondas sonoras. Os alto-falantes arremessam melodias, anúncios, conferências científicas, sketches, teatrais, romanceses sintéticos (...) Agências de turismo tentam, com promessas de maravilhosas viagens, o Marco Pólo que dorme no fundo de cada um de nós. Os jornais, narrando delírios de velocidade, aumentam a nossa pressa, fazem crescer a nossa ânsia, a nossa aflição. Anúncios por todos os lados. Nas paredes. Nos muros. No ar. No chão. Contra as nuvens. (...) As revistas – publicando romances inteiros num só número – fazem guerra ao livro. (...) Todo mundo tem pressa. A vida se tornou tão múltipla, tão estonteante tentacular, que o homem, no afã de tudo gozar, de tudo aprender, de tudo penetrar, procura a síntese, sofre da mania do comprimido, vive assombrado pelo relógio a procurar o máximo de prazer e de experiência no mínimo de tempo (...)”.

E assim, Erico segue adiante, nessa crônica publicada na Revista do Globo em 30 de outubro de 1937, mas que poderia ser publicada hoje em qualquer jornal ou revista falando sobre os tempos contemporâneos. Mas, mais adiante, ele aborda justamente a resistência dos romances longos em meio a tudo isso, destacando que na época os livros continuavam sendo publicados aos montes, em 500, 700, 1000 páginas. E hoje, com a televisão e a internet, que não existiam naquele tempo, também vejo as listas de best-sellers e as livrarias cheias de livros de 500, 700 e 1000 páginas sendo lançados e comercializados aos montes. Ou seja, acredito que tenho a resposta para aqueles que defendem que a internet provocará o fim do impresso (livro, jornais, revistas, etc). Por fim, encerro citando o último parágrafo do texto do Erico, numa espécie de reflexão sobre o ato de escrever:
“Quem quer que tenha o feio vício de escrever sabe como é importante encontrar leitores, acordar ecos. O mais importante, porém, continua sendo “escrever”, dar forma à nossa inquietude, dar expressão a essa anciã singular que se avoluma dentro de nós e acaba rompendo todas as barreiras e se espraiando num romance-rio... Rio largo, formado pelos pequenos afluentes que são as experiências e leituras de cada dia. Rio que corre ignorado ou sob olhares de aplauso e censura. Mas corre, para obedecer a uma força misterioosa...” E sigamos em frente!

4 Comentários:

Postar um comentário

<< Home