O mistério de Ferdinando
“Acho que você deveria estudar grego...”, certa vez lhe disse em tom sério. Intrigado, ainda se deu ao trabalho de perguntar o motivo daquela sugestão e ouviu a seguinte resposta: “Porque parece que eu falo grego e vocês não entendem nada! Fazem tudo ao contrário do que eu digo! Não é possível! Suma da minha frente!”. É, o cachorro que ali estava deitado, com a cabeça sob as patas tinha mais respeito do que ele.
Outro problema é que, mesmo trabalhando em uma capital, onde ocorrem diariamente grandes acontecimentos, nunca fizera uma grande cobertura, uma grande matéria, uma grande reportagem. Era um mísero repórter da editoria “interior”. Seu trabalho desde que entrara no jornal consistia em selecionar releases enviados por prefeituras, instituições, empresas e outras entidades do interior, para publicar os mais interessantes. A sua preocupação maior era achar uma pauta um pouco melhorzinha para abrir a página. Quando saía de férias, tiravam um estagiário de qualquer editoria para fazer o seu trabalho. O chefe lhe jogava na cara freqüentemente a sua insignificância dentro da redação: “só não te demito porque tenho pena de você. Está entendendo? E porque você não reclama de nada. É um crápula cagalhão”. O sentimento que tinha pelo seu chefe era estranho. Não queria esbofeteá-lo, nem mata-lo, nem nada. Queria apenas provar de que era capaz de fazer uma grande cobertura. Já estava de saco cheio da editoria “interior”. Queria passar para a polícia, para o esporte, para a política, até para a geral já servia. Porém, não tinha coragem de falar isso para o chefe.
Teve a infeliz idéia de fazer o pedido logo que entrou na empresa. Lembra-se bem. Fazia um ano que havia sido efetivado, quando entrou trêmulo na sala do chefe e pediu para ser trocado de editoria. O chefe tirou o charuto da boca, soltou uma baforada, olhou para a nuvem de fumaça que se formou, olhou de novo para o interlocutor e disse: “saia da minha sala antes que você perca o seu maldito emprego”. Ele baixou a cabeça e resmungou um “sim senhor”.
Eram quase nove da noite quando o telefone tocou. Era Rudiero, seu amigo de trago:
- E aí cagalhão! Tenho uma pauta pra ti. Com essa tu vai deixar essa bosta de editoria e vai subir na vida. Finalmente meu irmão!
- Fala sério... hoje não estou com espírito para brincadeiras...
- To falando! Tem uma bruxa que mora na Loureiro da Silva, próximo à Lima e Silva. A velhinha tem uns 100 anos, no mínimo! Ela faz todo o tipo de bruxaria. Cara, você não vai acreditar! Eu também não acreditava, mas vi ela rogando uma praga num cachorro que não parava de latir, e poucos minutos depois o bicho foi atravessar a rua e foi atropelado. Outro dia, um gurizinho estava chamando ela de “bruxa do 71”, e ela falou umas palavras incompreensíveis, e o guri ia olhando para ela e dando risada, quando veio um ciclista a toda a velocidade, bateu de frente com o infeliz, e o guri morreu de traumatismo craniano! Essa é quente! Vai lá! Pede para falar com ela, o número do prédio é... e o apartamento é 709.
Ferdinando ficou pensando por um momento. E se o amigo tivesse razão? Por alguns segundos fez-se um silêncio.
- Alô! Ferdinando, está ai?
Ferdinando desligou o telefone e ficou a pensar. Essa era a chance de fazer um furo inédito.
Imediatamente ele saltou da cama, se vestiu rapidamente e correu para o endereço indicado. Havia três seguranças na porta do prédio. Nenhum interfone. O maior deles questionou-lhe:
- O que deseja?
- Quero falar com a senhora do 709.
- Como é seu nome?
- Ferdinando. Trabalho no Francisco’s Jornal.
Ele pegou seu rádio e discou um número. O que falavam não dava para ouvir.
- Ela não quer falar com você.
Ele baixou a cabeça, murmurou um “ok”, como fizera a vida toda, e saiu andando pela calçada, desanimado. Mas e se ele pegasse ela no flagra, fazendo alguma feitiçaria ou algo assim? Decidiu que deveria entrar naquele prédio. Ou faria isso ou morreria. Fez a volta na quadra e ficou a espiar o trio de seguranças atrás do muro da casa vizinha. Já eram quase três da madrugada, e nada. Eles permaneciam ali, firmes. Até que chegou um carro e o portão da garagem se abriu. Curiosamente os três não se mexeram, nem para olhar o portão. O carro entrou, e enquanto o portão ia fechando ele correu rápido para dentro. Porém, um dos seguranças ainda viu seu vulto entrando prédio adentro. Não sabia onde estava o elevador. Deduziu que o apartamento seria no sétimo andar. Viu uma escada na sua frente e começou a subir correndo. Chegou ao segundo piso ofegante. Ouviu os passos que o seguiam e as vozes que o ameaçavam. “Entregue-se que vai ser melhor para você”. Ele não dava ouvido, decidiu que essa era a hora. Era a sua apoteose. Subia obstinadamente degrau a degrau. Na medida em que chegava em um novo andar via o número de um dos apartamentos. Passou pelo 205, 305, 405, 505. Quando chegou no 605, sentiu que os seguranças estavam muito próximos, mas não quis olhar para trás. Chegou no 705, e havia um corredor para cada lado. Não teve tempo de parar e escolher o lado a seguir, e dobrou sem pensar para a direita. Viu na última porta o número: 709. Começou a dar socos na porta, e ao mesmo tempo em que os seguranças chegaram, a porta se abriu. Uma senhora, que realmente devia ter mais de 100 anos, olhou duramente para os seguranças, que viraram as costas, baixaram a cabeça, e desceram as escadas, como se tivessem recebido uma ordem. A bruxa olhou para Ferdinando, que estava sem palavras, ainda ofegante. Ela pegou ele pelo colarinho e puxou-o para dentro do apartamento. Ele ficou com os olhos arregalados quando ela começou a beijar-lhe a boca. Ele afastou-a com suas mãos, mas sentiu que aquela pele enrugada começou a ficar lisa, e aqueles cabelos brancos estavam ficando pretos, e aquela barriga inflamada começou a ficar reta. De relance, Ferdinando puxou a bruxa fortemente contra o seu corpo e beijou-a sofregamente, aliciando cada centímetro do monumento que se formou instantaneamente na sua frente.
Depois daquela noite Ferdinando nunca mais foi visto. E seu desaparecimento rendeu apenas cinco linhas na editoria de polícia do Francisco’s Jornal. Já seu amigo Rudiero, ficou com o cachorro de Ferdinando, com quem mantém até hoje a mais sólida das amizades.
2 Comentários:
“Você só me traz problemas, problemas, problemas! Eu preciso de alguém que me traga solução, e não mais problemas do que eu já tenho! Suma daqui, sua ameba!”.
Pô Ritter, esse chefe era comum quando a gente foi colega.
Por cão seguidor de carros (orelha torta), às 15 de abril de 2008 às 16:45
OQ ACONTECEU COM FERNANDINHO????????
Por Carolina, às 23 de abril de 2008 às 14:14
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