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sexta-feira, 21 de março de 2008

Tripas fritas


Quando ele acordou, esticou bem as pernas, e ficou ali, deitado, se espreguiçando. Virou de lado, ergueu a cabeça para reconhecer o lugar onde estava, como se fosse um guaipeca que acabara de ser acordado pelos carros que passam pela rua. “Malditos carros!”, ele pensaria se fosse um guaipeca. Mas como não é, ele enxerga o seu aparelho de som velho no canto do quarto, ao lado do armário que tem a TV em cima. Sente vontade de ligar a TV, mas se lembra que não tem mais controle, desde que atirou ele no irmão e errou por pouco. O controle se espatifou na parede, e saltaram parafusos e botões para tudo que é lado. A sova que tomara do pai naquele dia, em um primeiro momento achou exagerada, mas agora, pensando bem, olhando para a TV desligada, chegara a conclusão que até saiu barata. Tentou calcular quantos anos atrás aquele episódio teria acontecido, mas não conseguia lembrar. Cinco, seis, oito, onze anos? Quem sabe. Tentou lembrar a última vez que apanhou do pai, mas também não conseguiu lembrar. Sentia saudades do velho, apesar do ranço em que se encontrava, sempre cobrando para que “dê um jeito na vida”. Lembrava os primeiros ensinamentos dele, como por exemplo, bater uma falta com o peito de pé. Tornou-se especialista em cobranças de falta na escola. Sabia que não era bom jogador mas tinha duas qualidades que garantiam um lugar no time titular: batia bem na bola, principalmente faltas, e marcava. Além disso, com seu jeito explosivo, jamais aceitaria a reserva. Como era bom de briga, os outros não queriam arriscar em deixar ele fora do time. Lembrou de certa vez, quando estava na 5ª séria e o time da turma jogaria um amistoso contra os grandões da 7ª. A turma tinha quatro ótimos jogadores e um goleiro. Ele seria o sexto. Mas escalaram ele porque sabiam que era melhor perder sem apanhar do que ganhar apanhando. O resultado: empate em 1 a 1. O time da 7ª até saiu ganhando, mas o empate veio depois de uma dividida em que ele discutiu com o 10 do adversário e colocou o dedo na cara do próximo rosnando: “se a gente perder esse jogo amanhã é melhor vocês não virem no colégio”.
Sabia que se eles quisessem, todo o time sairia dali quebrado e ninguém bateria nos alunos da 7ª série no outro dia. Mas, o local onde morava e a raiva que tomava conta de seus gestos quando estava irritado pareciam torná-lo um gangster. Agora, deitado na cama, refletia que a árvore genealógica que a irmã montou certa vez não estava de toda errada. Segundo ela, um de seus tataravôs veio fugido para o Brasil em 1890, em meio a Revolução Federalista. Pelas pesquisas da irmã, ele era foragido da justiça alemã, e ela jurava que o tataravô cometera homicídios na Alemanha, Itália, Áustria, Inglaterra, Espanha e Portugal, sendo que neste último havia decidido acalmar sua vida, porém, fora descoberto, o que o levou a se esconder em um navio que sairia de Porto rumo ao Rio de Janeiro. Chegou em solo carioca, e logo veio para o Rio Grande do Sul, com o objetivo de ficar o mais longe possível dos grandes centros. Foi para Cruz Alta, e mesmo sendo estrangeiro, logo ficou do lado dos federalistas e arranjou uma gaúcha, filha de descendentes italianos. Logo na virada do milênio, a prenda teve três filhos, um em 1900, outro em 1903 e o terceiro em 1905, todos machos. Os dois últimos morreram de tuberculose antes de 1920. Já o sobrevivente estava com 24 anos quando Luis Carlos Prestes fez o levante em Santo Ângelo, e na passagem por Cruz Alta ele se juntou as tropas do revolucionário. Porém, ele voltou para Cruz Alta quando a Coluna chegou em São Paulo. Não por se acovardar, mas porque ficou sabendo que seu pai havia morrido.
Retornando a sua terra natal, um ano depois estava casado, e no primeiro ano de matrimônio já teve o primeiro, dos 10 filhos de sua família oficial. Segundo a irmã de Lorenzo, o bisavô deve ter tido outros 10 filhotes fora do casamento, sendo que os primeiros devem ter sido feitos no próprio trajeto da coluna. “Nosso bisa não prestava. Ainda bem que as pessoas morrem, senão eu ia cuspir na cara dele”, dizia a mana, que garantia que os soldados da coluna, e de todas as tropas do mundo, sempre abusaram das famílias que estavam em seu caminho. Já Lorenzo, gostava mesmo era de ouvir os feitos do bisavô na Batalha da Ramada, uma das primeiras, mas das mais importantes e sangrentas de toda a Coluna. Lembrava-se que seu avô contava que nessa batalha o Neco, como era conhecido o bisa, matara 8 homens, sendo que sete foram na faca. “Ele não gostava muito de atirar, e sempre falava que matou o primeiro com tiro. Mas depois de errar o alvo em dois inimigos e quase ser surpreendido, adotou uma tática diferente. Atirava no cavalo, e quando o inimigo caia, ia com tudo para cima dele. O resultado foram sete na faca. O último implorou para não morrer. Ele fez um corte na perna do próximo e ia deixando o desgranido fugir, já que a batalha estava ganha. Mas o infeliz se virou e tentou acertar o Neco. Rã? Pra quê? Ele pegou o nigromante pelos cabelos e arrancou até as tripas do diabo. Dizem que guardou elas e fritou para comer de noite”, relatava sempre o avô, que foi o primeiro dos dez filhos, vindo a nascer no final de 1925. Na 2ª Guerra Mundial, em 1943, ao completar 18 anos, foi enviado para a Itália como pracinha. “Foram quase dois anos vendo balas passando pertinho da minha cabeça”, contava o avô. Ao contrário de seu Neco, que faleceu logo após ver o filho embarcar para a segunda guerra, o avô de Lorenzo, que ganhou o apelido de Chiru, só foi ter filho aos 28 anos, em 1953. Porém, o pai de Lorenzo, seu Juvenal, só nasceu em 1960, no Rio de Janeiro. E foi de lá que ele, ainda criança, viu seus pais fugirem constantemente dos Pedros e Paulos da ditadura. O resultado foi o retorno do casal para a terra natal, onde vivem até hoje.
“Todos os meus antepassados lutaram por alguma causa, lutaram contra um inimigo, pegaram em armas, estriparam gente, fizeram a história. Mas e eu? O que estou fazendo aqui? Minha mãe está lá, na casa da vizinha, perguntando se eu vou me casar com a filha dela, ou se a gente só está saindo para curtir. Meu pai está ralando no escritório em Passo Fundo para manter o padrão pequeno burguês que sobrou da nossa família, e só vem nos visitar nos finais de semana. Meu irmão entrou nessa merda de Exército, justo agora, que essa porcaria não tem função nenhuma. E minha irmã, se formou em medicina e, apesar de todo o serviço, ainda acha tempo para fazer essas pesquisas e querer enfiar goela a baixo toda essa história de nossos antepassados serem heróis guerreiros. Mas e eu? Estou com 30 anos, deitado nessa cama de merda, com uma ressaca desgranida de vinho, pensando se a filha da vizinha realmente toma pílula ou vai “pegar” filho, como dizia o meu avô. Mas que importância isso tem para a história do mundo? Do Brasil? Do Rio Grande do Sul? De Cruz Alta???? O melhor era morrer e torcer para nascer em um lugar onde eu possa lutar por alguma causa...”. Lorenzo pensava sobre tudo isso, enquanto sua mãe abre a porta do quarto e diz: “Não vai levantar? Já são onze horas! Além de não trabalhar ainda arranja sarna para se coçar na vizinhança... quero ter uma conversa séria contigo”.
Lorenzo fica olhando para a TV desligada, enquanto ouve sua mãe fechar a porta do quarto. Fica imaginando qual é o gosto que tinham as tripas que seu bisavô fritou na batalha da Ramada, há mais de 80 anos....

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