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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O dia em que eu quis ser um dentinho


Uma vez quase virei dentinho. Manja aqueles caras que ficam no centro de Porto Alegre vestidos de dentinhos entregando panfletos para uma revisão odontológica de graça? Pois é, eu queria ser um dentinho, mas não me deixaram. Foi uma tremenda injustiça, e vou contar porque.
Lá estava eu, morando no bar do meu tio no primeiro semestre de 2007. Já era jornalista formado, recém aprovado na seleção de mestrado da Unisinos que não pude cursar porque não tinha dinheiro, e, como era de se esperar, estava procurando emprego. O dinheiro que eu trouxera de Ijuí com a minha saída do Jornal da Manhã estava acabando, e tinha duas opções: seguir procurando emprego em Porto Alegre ou voltar para o interior e ficar desempregado na casa dos pais. Optei por seguir correndo atrás em Porto. Mas passei a atirar para todos os lados. Pegava o jornal e circulava os anúncios em que eu me encaixava. Às vezes, saía com minha pastinha cheia de currículos e ia entregando em praticamente todos os pontos comerciais do centro de Porto Alegre. O resto do tempo dividia entre o estágio voluntário na Rádio Gaúcha, horas sentado no balcão do bar do tio observando todo aquele circo humano, uma hora na lan house da José do Patrocínio para mandar currículos e mensagens para a namorada que estava longe, e leituras deitado no colchão jogado no meio da sala do 2° andar do bar do tio.

Para você que nunca precisou circular os anúncios de emprego para enfrentar uma fila, ou fazer um roteiro encaixando os horários para participar de umas cinco entrevistas em um dia, eu explico. Em 90% dos anúncios eles não falam do que se trata. Diz apenas “comércio”, ou “cobrador interno POA”, ou ainda “auxiliar de serviços gerais para carga e descarga”. Então, você vai no lugar marcado e mesmo que chegue com meia hora de antecedência já haverá uma fila formada por, no mínimo, umas 30 pessoas. Até o horário da entrevista a fila já dobra a esquina. Toda a segunda-feira é a mesma história. Pois bem, se você não está habituado a procurar emprego, apenas dê uma olhada nos anúncios de qualquer Classificados, e saia no centro de Porto Alegre numa segunda-feira de manhã, e você entenderá superficialmente do que estou falando.

A minha tia Leila, que não é a minha tia do bar, sabia mais do que ninguém da minha situação, afinal, pelo menos uma vez por semana eu ia lá para conversar com ela. Tem pessoas que te deixam a vontade para que você fale tudo o que você pensa, e minha tia é uma dessas pessoas, logo, adorava ir lá. E numa dessas conversas, eu reclamando que não arranjava emprego nenhum, ela disse que sempre saia nos classificados vagas para panfleteiros e que geralmente contratavam de 20 a 30 numa só tacada. No primeiro final de semana depois dessa conversa, comprei a Zero Hora e, coincidentemente, havia uma empresa contratando 20 panfleteiros. O salário era 20 reais por dia mais refeição e transporte. Já dava para ficar em Porto Alegre por mais um tempo, pelo menos para seguir fazendo meu estágio, até arranjar algo melhor. Fiz o roteiro. Ia começar com os panfletos, depois iria num anúncio de uma locadora, e depois mais duas vagas para o comércio, que não explicava nada direito, mas que suspeitava que era para ser vendedor externo. Sinceramente, me via mais como panfleteiro do que como vendedor externo. Cheguei no endereço marcado, uma rua acanhada que não lembro o nome próximo a Voluntários da Pátria. No anúncio dizia às 9h, mas cheguei às 8h30. Como o esperado, já tinha uma fila formada por aproximadamente 20 pessoas. Até às 9h, a fila já saía do prédio e seguia rua afora.
A fila foi andando, e minha vez foi chegando. Uma mulher baixa e gorda dava uma rápida olhada nos currículos e fazia algumas perguntas.
- Então você fala inglês?
- É.
- Fala e lê?
- Sim.
- Where did you work before?
- Que que é?
- Próximo!

- Então você já entregou panfletos?
- Já.
- Qual seu último emprego.
- Portocred.
- E por que saiu de lá?
- Ah, os cara eram muito xaropes. Ficavam pegando no pé do cara.
- Como assim?
- Ah, se passavam. O maninho roubou meu cliente ai dei umas bifas nele, aê a chefia me mando embora.
- Hmmmmm. Próximo...

- Hmmm. Você é formado?
- Sim.
- E por que quer entregar panfleto?
- Porque to sem dinheiro.
- Hmmmmm. Olha, eu não dou muita conversa pra ninguém. Mas vou falar pra você. Esse anúncio é para ficar vestido de dentinho entregando panfleto o dia todo, de pé. E você é formado...
- Sim, eu sei. Mas não tenho de onde tirar dinheiro.
- Eu não vou deixar você trabalhar aqui. Você é formado! Pode conseguir algo melhor!
- Escuta, eu não tenho daonde tirar dinheiro para comer um pão com banha e ninguém quer me dar emprego na minha área, tá entendendo? Se você não me der emprego, vou seguir procurando em outros lugares.
A gordinha anota uns rabiscos num papel e me entrega. É o endereço de uma agência de empregos.
- Vai lá. Você pode conseguir algo melhor.
- Mas eu quero ser dentinho.
Ela ri.
- Porra, nunca vou conseguir emprego desse jeito – dou as costas e saio. Os primeiros da fila que ouviram a conversa ficam me olhando, com ar de pena. Devem ter pensado “pô, o cara formado não consegue emprego, imagina eu, que parei de estudar com 10 anos e já estou com 30”. Pois é, eu pensava nisso tudo enquanto ia para o segundo anúncio, que estava marcado para às 10h. Como perdi quase uma hora nesse, cheguei um minuto atrasado. Mas como as outras pessoas também estavam em outras filas, algumas na mesma que eu estava, então, não haviam muitos na minha frente, considerando o horário. Deviam ter ali, quando cheguei, umas 50 pessoas. Atrasou uma hora, e eu comecei a pensar “se foi a entrevista do auxiliar de serviços gerais. Que merda”. Um gordinho negro de cabelo pixaim ouvia um mp3 com fones de ouvido e começou a cantar La Gasolina. Eu olhei para ele com a mesma cara que o Garfield olha para o Oddie. Ele tirou o fone e disse:
- Escuta só esse som.
Coloquei um fone na minha orelha.
- Sóóóó. Maneiro.
- To ligado. Pô, os caras não vão chamar a gente – disse ele, mudando a expressão do rosto, ficando com a testa franzida de preocupação.
- Pois é, já perdi o anúncio da 14 de Julho.
- Para serviços gerais?
- É – respondi.
- Só, eu vi esse. Mas eu queria ir naquele de cobrador interno.
- Hmmm. Não lembro desse. Acho que precisava ter experiência na área...
- Escuta rapaziada – nos interrompe um senhor negro de cabelos grisalhos – esse anúncio é pra fazer o quê?
- É de uma locadora – respondi – só não sei pra fazer o quê.
- Deve ser de atendente – diz o gordinho com cara de Oddie.
- Só, vou encarar essa fila. Valeu gurizada.

Existe um clima estranho entre quem está na fila. Parece que todos pertencem a mesma família, que todos são irmãos. Todos estão ali lutando por uma vaga, mas o tom de amizade que domina as conversas dá a impressão de que cada um está torcendo para que o outro se de bem. Na verdade todos estão mal e sabem que todo mundo ali está numa pior, levantando todas as manhãs para tentar tirar dinheiro de algum lugar para não precisar pegar uma arma e apontar para a cabeça da primeira velhinha que dobrar a esquina com uma bolsa. Alguns estão nessa situação há meses. Outros há mais de ano. Lá pelas onze e meia as portas da tal locadora, que não tinha fachada, se abriram e a fila começou a andar. Foi rápido. Um cara forte falava para quem entrava: “larguem os seus currículos nessa caixa e entraremos em contato com quem for selecionado. Muito obrigado”. Parecia fila de quartel. A, esqueci um detalhe do anúncio. A locadora estava selecionando somente rapazes maiores de 18 anos. Quando entrei, entendi o porque: se tratava de uma locadora de filme pornô. Larguei meu currículo e pensei: “esses caras não vão ter culhões para contratar um jornalista formado para trabalhar num lugar desses. Filhas da puta, se ao menos fizessem uma entrevista. Preconceito com quem é formado, porra!”. Sai dali com raiva.
De lá, fui para os outros dois anúncios de vendedor externo sem a mínima vontade no corpo. Conheci mais umas pessoas, que também já tinham participado de outras entrevistas na parte da manhã e também já estavam perdendo a esperança de procurar emprego. “Faz meio ano que toda a segunda-feira faço esse roteiro. É triste, mas é o único jeito”, me disse uma guria de 18 anos que tem uma filha de dois anos. “Vai dar tudo certo. Quando você menos espera, vai aparecer alguma coisa”, disse à ela, sem muita convicção.

Fui almoçar eram quase três horas num restaurante na Borges de Medeiros. De lá, segui para o bar do tio, com a cabeça baixa, pensando em uma forma de conseguir emprego. Então tive uma idéia brilhante! Lembrei do pessoal que entregava panfleto na João Pessoa e sempre me davam um. Olharia o endereço, iria até lá, pediria para falar com o “cabeção” do negócio, contaria minha situação e estaria empregado! Simples, fácil e rápido. E foi assim que fui parar nos panfletos para empréstimo pessoal que já contei em outra coluna, e que certamente ainda voltarei a falar outras vezes! Ah, e tem a história do curso de porteiro, mas ai já é outra crônica, ônica, ônica....

2 Comentários:

  • "olhei para ele com a mesma cara que o Garfield olha para o Oddie."

    eheh essa foi muito boa

    Por Blogger Zaratustra, às 26 de fevereiro de 2008 às 17:02  

  • Quanta experiência vais adquirindo nestas tuas andanças. Pelos teus textos, pode-se ver o quanto és determinado, um lutador de verdade.
    ~Tens razão, um escritor não é criado, já tem o talento nato, mas a experiência de vida ajuda muito.

    Por Blogger Unknown, às 11 de março de 2008 às 17:48  

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