Guerra e Paz - Parte 1
Como postei aqui outro dia,
aproveitei a quarentena e o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19 para
ler David Copperfield. Quando acabei, tive uma crise e fiquei algumas semanas
sem ler nada. Nesse meio tempo, até peguei um livro aqui, de um autor que não
vou mencionar o nome, mas achei muito chato – li 100 páginas e desisti. E aí
pensei: vou aproveitar para ler algum clássico que dificilmente eu leria em uma
situação “normal”, ou seja, sem quarentena. E, assim, aquele nome de Guerra e Paz
voltou e fui atrás. Comprei a edição da L&PM. A minha intenção era comprar
a outra da ed34, mais famosa, em um único volume, mas não tinha. Como estou
brigando com os Correios porque não recebi ainda um livro que encomendei em
julho, preferi comprar pessoalmente na livraria e só tinha essa edição de
quatro volumes da L&PM. Terminei de ler ontem o primeiro e, assim, vou
seguir esse ritmo para resenhar a obra: quatro textos, um por volume.
Obviamente é uma resenha completamente pessoal, não acadêmica, e que serve para
consulta futura, quando minha massa cinzenta tiver deletado toda a história e
os personagens do meu cérebro. Mas, se alguém cair aqui por acaso e quiser ler,
eu não me responsabilizo, enxerido leitor.
Guerra e Paz é um daqueles livros
que você tem que saber que você vai entrar na história apenas depois de ler algumas
páginas, pois são muitos e complexos os personagens. É mais ou menos como
aconteceu comigo, no passado, ao ler alguns livros de Shakespeare – demora um
pouco para você associar os nomes aos personagens. Nesse caso ainda se tem o
agravante dos nomes e sobrenomes serem russos. Por isso é importante a lista de
personagens apresentada no início dessa edição da L&PM – toda a hora eu
voltava para ver quem era quem e até o final desse primeiro volume volta e meia
eu confundia um personagem com outro (atribuo isso aos sobrenomes russos e aos
postos militares e de nobreza: conde, general, infante, marechal, etc). Aliás,
escrevi numa página em branco a hierarquia dos títulos de nobreza e militares
para saber quem era mais importante. No entanto, há muitos e muitos príncipes,
condes, tenentes, generais, etc, etc, que te deixa zonzo. O único impossível de
confundir, obviamente, é o imperador Alexandre I, visto pelos outros
personagens como uma espécie de Deus encarnado na Terra.
Bueno, aproveito para fazer o parêntese
da história. Guerra e Paz trata justamente das guerras napoleônicas e, mais
especificamente, da incursão de Napoleão em direção à Rússia, iniciada em 1805
(todo o primeiro volume se passa nesse ano). Resumindo, Napoleão tinha uma
intensão um pouco parecida com a de Hitler de querer dominar a Europa. A
diferença é que ele de certa forma respeitava os adversários (por exemplo, ele
não executa, mas sim torna prisioneiros de guerra a maioria dos sobreviventes)
e ele não quer exterminar e escravizar o inimigo, mas sim, conquistar o seu
território e ampliar o império francês. A impressão que tenho é que Napoleão é
muito mais um militar estratégico que vive e respira 24 horas o exército
enquanto Hitler era mais um psicótico lunático que queria usar o exército para
exterminar ou escravizar qualquer um que não fosse “ariano” puro. Feito esse
parêntese, vamos à narrativa do primeiro volume.
Esse primeiro volume é dividido em
três partes. Na primeira, os personagens estão em situações sociais, como
jantares, bailes e em suas casas. É apresentada a alta sociedade russa. O
grande destaque é a história da família Bezukov. Resumindo: o conde Cirilo
Bezukov é um poderoso aristocrata do tempo de Catarina, a Grande. Ele tem um
filho bastardo que é enviado para o “estrangeiro” (depois é possível deduzir
que ele foi para a França) ainda criança e é chamado de volta à Rússia quando o
conde está no seu leito de morte. Ele é o único filho, mas, por ser ilegítimo,
há uma grande trama quanto a herança do conde. Personagens secundários aparecem
rodeando o leito de morte do conde como urubus na tentativa de dar uma
mordiscada na tal herança, principalmente as sobrinhas do conde, que são quem
efetivamente conviveram com ele nos últimos anos. Nisso, o príncipe Vassili
Kuraguine (não se impressione, pois há uma porrada de príncipes na história)
tenta fazer um plano para anular o testamento do velho, que quer deixar tudo
para o filho ilegítimo. Ou seja, se o testamento do conde chegar ao imperador,
Pedro deixará de ser um filho ilegítimo para ser legítimo, herdando assim o
título de conde e toda a herança de Bezukov. E Pedro é apresentado como um
personagem atrapalhado, que comete gafes nos jantares, que não sabe se
comportar, e é descrito como “gordo” e desajeitado. E para piorar: é um
admirador de Bonaparte. Resumindo, o conde morre, o plano do príncipe Vassili
falha e Pedro herda tudo, conforme previsto no testamento: a fortuna e o título
de conde. Assim, a vida dele muda completamente de uma hora para a outra: de
sujeito que ninguém dava a mínima ele passa a ser bajulado e recebe importantes
cargos no império.
O príncipe Vassili, no entanto, não
se dá por vencido e trata de empurrar para o novo conde a sua bela filha Helena
Kuraguina. É muito hilária essa parte, pois o coitado do Pedro vai indo, vai
indo e quando vê está noivo e, em breve casado, sem ter tido chance de se
esquivar do casamento enfiado goela abaixo. Nessa primeira parte, esse é o
resumo da história do pobre e rico Pedro.
Tendo como intermediário o próprio
príncipe Vassili, chegamos a outros personagens ainda nessa parte da alta
sociedade russa. O príncipe Vassili tem dois filhos além de Helena: Hipólito
Kuraguine, que praticamente não aparece nessa primeira parte, e Anatole
Kuraguine, que seria o que hoje chamamos de playboyzão: só quer saber de farra
e torrar a grana do velho. Para tentar dar jeito no filho mais novo, ele tenta enfiá-lo
em um casamento com a desarmoniosa Maria Bolkonkaia, filha do príncipe Nicolau
Bolkonski. O velho é uma figuraça: rabugento e cheio de manias. Ele mora
isolado, fora da cidade, e xinga todo mundo, sem se importar se é ou não alguém
acima ou abaixo dele hierarquicamente. Acorda reinando e desconta tudo em quem
estiver por perto. A que mais sofre é a própria Maria, descrita como feia e
desajeitada. Ela é humilhada pelo velho a toda hora. Sabendo que Maria é feia,
mas rica, o príncipe Vassili trata de levar o filho para tentar casar com ela.
O velho tem ataques de fúria a toda hora, mas acaba deixando que a filha decida.
Resumindo, como a criada dela se apaixona por Anatole (e ela os flagra de
namorico no jardim) ela rejeita a proposta. Essa narração toda é uma das mais
hilárias do livro, pois tem os ataques de rabugentice do velho (que a toda hora
chama a filha de feia e tonta), tem o desespero do príncipe Vassili em tentar
casar o filho com uma moça rica a todo o custo e tem o lado “tô nem aí” de Anatole,
que vê aquele teatro todo como uma grande comédia em que ele caiu de
paraquedas.
Agora deixemos de lado o príncipe
Vassili e sua família para ficarmos na família Bolkonski e, assim, chegamos a
segunda parte do livro: a descrição do front. O filho mais velho de Nicolau é o
príncipe André Bolkonski, capitão e membro do estado maior. Ele aparece na
história chegando na casa do pai para largar a mulher grávida aos cuidados dele
para ir para a guerra. O velho segue tendo ataques de rabugentice que torna a
história toda muito cômica – obviamente ele implica com a nora, que por sua
vez, é uma tagarela. André não suporta a esposa e tudo indica que ele está indo
para a guerra para ficar longe dela.
Durante a guerra, os personagens principais
são o próprio príncipe André, que faz um trabalho mais de ajudante de campo, ou
seja, levando recados de um lado para o outro e tentando bajular os superiores
e devotando o imperador como se fosse uma cadela apaixonada no cio, e Nicolau
Rostov. Chegamos, agora, na família Rostov. Trata-se de uma família rica
encabeçada pelo velho conde Ilia Rostov e pela mulher Natália, que são
completamente coadjuvantes. Nicolau, o filho, é um jovem destemido que vai para
a guerra como hussardo (guerreiros da região onde hoje é a Croácia e que geralmente
não passam dos 30 anos, pois vão para a guerra para matar ou morrer). Peter,
chamado de Pétia, é o irmão mais novo, de apenas nove nos nessa parte do
romance. Natália Rostovna (mesmo nome da mãe) nessa altura tem 13 anos e não
aparece muito, apesar de na descrição dos personagens ela estar apresentada
como personagem feminina central. E Sônia é a prima pobre que mora com eles e
com quem Nicolau Rostov tem um caso e promete casar-se assim que ela atingir a maioridade.
Natália, por sua vez, tem um namorico com Boris, um personagem secundário em
que a mãe percorre a alta sociedade russa na tentativa de transferir o filho
para o cargo de ajudante de campo para não correr tantos riscos na guerra. Com
a intervenção do príncipe Vassili, ela consegue esse objetivo.
E a guerra. Ah, a guerra, é muito
difícil descrever. O destaque é a terceira parte desse primeiro volume quando
ocorre a batalha de Austerlitz, onde hoje é a República Tcheca, deixando cerca
de mil mortos franceses e 15 mil mortos russos (e aliados). Essa foi a primeira
grande batalha das guerras napoleônicas contra a Rússia, e ocorreu no final de
1805. É espetacular a descrição que Tolstói faz do amor incondicional que André
e Rostov sentem pelo imperador, que ilustra o sentimento de milhares e milhares
de soldados e militares. Eles literalmente querem morrer pelo imperador. E,
antes da batalha, há um consenso de que essa é uma batalha ganha. Tudo parece
estar a favor. No entanto, eles são surpreendidos pelos franceses de Napoleão e
são destroçados. A primeira parte acaba justamente com o fim dessa batalha que
resulta num encontro de Rostov com o imperador, que está arrasado pela derrota.
Na verdade, ele apenas observa o imperador de longe, pois assim como um guri
apaixonado que trava na hora de conversar com a adorada, ele perde a língua e
não consegue dizer nada ao seu líder supremo. Enquanto isso, André é ferido e
levado pelas tropas de Napoleão. É curioso que nesse trecho Napoleão é um dos
personagens do livro, falando, agindo, comentando, rindo, etc.
No livro ainda há um índice dos
personagens reais que aparecem no romance, como o imperador Alexandre I e Napoleão.
Ainda há outros personagens secundários, mas se eu fosse descrever todos, esse
texto ficaria deveras gigantesco. Assim, termino essa resenha do primeiro
volume de Guerra e Paz. É um livro muito foda, em todos os sentidos, pois têm
mergulho no psicológico dos personagens (tanto quando estão em situações da
alta sociedade, quanto em família ou na guerra) e há uma descrição muito foda
do que era a sociedade russa naquele período – e chama a atenção as semelhanças
com qualquer alta sociedade do planeta, com todas as hierarquias, formalidades
e tentativas de manter uma boa imagem diante dos outros e a preocupação com o
que os outros vão pensar. Há ironia, humor, crítica e descrição. Vale a pena,
mas fica duas dicas para o enxerido leitor que quiser ler: primeiro, não
subestime a lista de personagens do início. Até o final do primeiro volume eu
ainda confundia o príncipe André com Nicolau Rostov, principalmente quando os
dois estão no front. Segundo, vale a pena estar com o celular do lado para
checar alguns termos ou regiões geográficas no Google. Isso ajuda a imaginar a
história toda – por exemplo, eu tive que pesquisar o que era hussardo e junker,
dois termos que aparecem bastante durante a descrição da guerra. Ah, e tem
ainda o Dolokov, um maluco que perde o seu alto posto no Exército para voltar a
ser soldado depois de tomar um porre, apostar (e vencer a aposta) que conseguia
tomar um litro de rum em um só gole sentado numa janela alta sem usar as mãos
para se apoiar e se meter numa trolagem em que amarraram um policial nas costas
de um urso e o largaram em um rio (assim, o urso saiu nadando com o policial
amarrado nas suas costas).
Bueno, para a segunda parte, imagino
que Pedro deva aparecer mais – pois ele é meio que um apoiador de Napoleão por
ter sido criado na França, mas vive na alta sociedade russa em certa
proximidade com o imperador e a cúpula do império – e também Natália, que na
primeira parte tem apenas 13 anos e não aparece tanto.
É isso, leitores imaginários! Como
dizem os soldados russos: em frente!
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