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segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Guerra e Paz - Parte 1

 

         

      Guerra e Paz, de Leon Tolstói, por muitos e muitos anos esteve fora do meu radar de objetivos de leitura. Mas, como disse na minha última coluna no jornal Diário Popular, no texto “Influências literárias”, os motivos para escolher um livro para ler são os mais diversos e curiosos. E, no caso de Guerra e Paz, fiquei instigado pela história depois de ter visto um episódio do Snoopy, uns cinco anos atrás, com a Larissa. Nele, o Charlie Brown tem que escolher um livro para fazer um resumo para a escola. Na tentativa de impressionar a Garotinha Ruiva, por quem tem um amor platônico, ele vai à biblioteca e pega um verdadeiro tijolo de papel: Guerra e Paz, de Tolstói. Charlie Brown fica lendo por dias e dias e na hora de escrever a redação ele pensa e pensa e pensa até que coloca no papel as seguintes e sábias palavras: “Primeiro veio a guerra...” – aí ele pensa mais um pouco, coça o queixo com a caneta, olha para o horizonte, e conclui – “e depois veio a paz. Fim.”. Genial.

            Como postei aqui outro dia, aproveitei a quarentena e o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19 para ler David Copperfield. Quando acabei, tive uma crise e fiquei algumas semanas sem ler nada. Nesse meio tempo, até peguei um livro aqui, de um autor que não vou mencionar o nome, mas achei muito chato – li 100 páginas e desisti. E aí pensei: vou aproveitar para ler algum clássico que dificilmente eu leria em uma situação “normal”, ou seja, sem quarentena. E, assim, aquele nome de Guerra e Paz voltou e fui atrás. Comprei a edição da L&PM. A minha intenção era comprar a outra da ed34, mais famosa, em um único volume, mas não tinha. Como estou brigando com os Correios porque não recebi ainda um livro que encomendei em julho, preferi comprar pessoalmente na livraria e só tinha essa edição de quatro volumes da L&PM. Terminei de ler ontem o primeiro e, assim, vou seguir esse ritmo para resenhar a obra: quatro textos, um por volume. Obviamente é uma resenha completamente pessoal, não acadêmica, e que serve para consulta futura, quando minha massa cinzenta tiver deletado toda a história e os personagens do meu cérebro. Mas, se alguém cair aqui por acaso e quiser ler, eu não me responsabilizo, enxerido leitor.

            Guerra e Paz é um daqueles livros que você tem que saber que você vai entrar na história apenas depois de ler algumas páginas, pois são muitos e complexos os personagens. É mais ou menos como aconteceu comigo, no passado, ao ler alguns livros de Shakespeare – demora um pouco para você associar os nomes aos personagens. Nesse caso ainda se tem o agravante dos nomes e sobrenomes serem russos. Por isso é importante a lista de personagens apresentada no início dessa edição da L&PM – toda a hora eu voltava para ver quem era quem e até o final desse primeiro volume volta e meia eu confundia um personagem com outro (atribuo isso aos sobrenomes russos e aos postos militares e de nobreza: conde, general, infante, marechal, etc). Aliás, escrevi numa página em branco a hierarquia dos títulos de nobreza e militares para saber quem era mais importante. No entanto, há muitos e muitos príncipes, condes, tenentes, generais, etc, etc, que te deixa zonzo. O único impossível de confundir, obviamente, é o imperador Alexandre I, visto pelos outros personagens como uma espécie de Deus encarnado na Terra.

            Bueno, aproveito para fazer o parêntese da história. Guerra e Paz trata justamente das guerras napoleônicas e, mais especificamente, da incursão de Napoleão em direção à Rússia, iniciada em 1805 (todo o primeiro volume se passa nesse ano). Resumindo, Napoleão tinha uma intensão um pouco parecida com a de Hitler de querer dominar a Europa. A diferença é que ele de certa forma respeitava os adversários (por exemplo, ele não executa, mas sim torna prisioneiros de guerra a maioria dos sobreviventes) e ele não quer exterminar e escravizar o inimigo, mas sim, conquistar o seu território e ampliar o império francês. A impressão que tenho é que Napoleão é muito mais um militar estratégico que vive e respira 24 horas o exército enquanto Hitler era mais um psicótico lunático que queria usar o exército para exterminar ou escravizar qualquer um que não fosse “ariano” puro. Feito esse parêntese, vamos à narrativa do primeiro volume.



            Esse primeiro volume é dividido em três partes. Na primeira, os personagens estão em situações sociais, como jantares, bailes e em suas casas. É apresentada a alta sociedade russa. O grande destaque é a história da família Bezukov. Resumindo: o conde Cirilo Bezukov é um poderoso aristocrata do tempo de Catarina, a Grande. Ele tem um filho bastardo que é enviado para o “estrangeiro” (depois é possível deduzir que ele foi para a França) ainda criança e é chamado de volta à Rússia quando o conde está no seu leito de morte. Ele é o único filho, mas, por ser ilegítimo, há uma grande trama quanto a herança do conde. Personagens secundários aparecem rodeando o leito de morte do conde como urubus na tentativa de dar uma mordiscada na tal herança, principalmente as sobrinhas do conde, que são quem efetivamente conviveram com ele nos últimos anos. Nisso, o príncipe Vassili Kuraguine (não se impressione, pois há uma porrada de príncipes na história) tenta fazer um plano para anular o testamento do velho, que quer deixar tudo para o filho ilegítimo. Ou seja, se o testamento do conde chegar ao imperador, Pedro deixará de ser um filho ilegítimo para ser legítimo, herdando assim o título de conde e toda a herança de Bezukov. E Pedro é apresentado como um personagem atrapalhado, que comete gafes nos jantares, que não sabe se comportar, e é descrito como “gordo” e desajeitado. E para piorar: é um admirador de Bonaparte. Resumindo, o conde morre, o plano do príncipe Vassili falha e Pedro herda tudo, conforme previsto no testamento: a fortuna e o título de conde. Assim, a vida dele muda completamente de uma hora para a outra: de sujeito que ninguém dava a mínima ele passa a ser bajulado e recebe importantes cargos no império.

            O príncipe Vassili, no entanto, não se dá por vencido e trata de empurrar para o novo conde a sua bela filha Helena Kuraguina. É muito hilária essa parte, pois o coitado do Pedro vai indo, vai indo e quando vê está noivo e, em breve casado, sem ter tido chance de se esquivar do casamento enfiado goela abaixo. Nessa primeira parte, esse é o resumo da história do pobre e rico Pedro.

            Tendo como intermediário o próprio príncipe Vassili, chegamos a outros personagens ainda nessa parte da alta sociedade russa. O príncipe Vassili tem dois filhos além de Helena: Hipólito Kuraguine, que praticamente não aparece nessa primeira parte, e Anatole Kuraguine, que seria o que hoje chamamos de playboyzão: só quer saber de farra e torrar a grana do velho. Para tentar dar jeito no filho mais novo, ele tenta enfiá-lo em um casamento com a desarmoniosa Maria Bolkonkaia, filha do príncipe Nicolau Bolkonski. O velho é uma figuraça: rabugento e cheio de manias. Ele mora isolado, fora da cidade, e xinga todo mundo, sem se importar se é ou não alguém acima ou abaixo dele hierarquicamente. Acorda reinando e desconta tudo em quem estiver por perto. A que mais sofre é a própria Maria, descrita como feia e desajeitada. Ela é humilhada pelo velho a toda hora. Sabendo que Maria é feia, mas rica, o príncipe Vassili trata de levar o filho para tentar casar com ela. O velho tem ataques de fúria a toda hora, mas acaba deixando que a filha decida. Resumindo, como a criada dela se apaixona por Anatole (e ela os flagra de namorico no jardim) ela rejeita a proposta. Essa narração toda é uma das mais hilárias do livro, pois tem os ataques de rabugentice do velho (que a toda hora chama a filha de feia e tonta), tem o desespero do príncipe Vassili em tentar casar o filho com uma moça rica a todo o custo e tem o lado “tô nem aí” de Anatole, que vê aquele teatro todo como uma grande comédia em que ele caiu de paraquedas.

         Agora deixemos de lado o príncipe Vassili e sua família para ficarmos na família Bolkonski e, assim, chegamos a segunda parte do livro: a descrição do front. O filho mais velho de Nicolau é o príncipe André Bolkonski, capitão e membro do estado maior. Ele aparece na história chegando na casa do pai para largar a mulher grávida aos cuidados dele para ir para a guerra. O velho segue tendo ataques de rabugentice que torna a história toda muito cômica – obviamente ele implica com a nora, que por sua vez, é uma tagarela. André não suporta a esposa e tudo indica que ele está indo para a guerra para ficar longe dela.

          Durante a guerra, os personagens principais são o próprio príncipe André, que faz um trabalho mais de ajudante de campo, ou seja, levando recados de um lado para o outro e tentando bajular os superiores e devotando o imperador como se fosse uma cadela apaixonada no cio, e Nicolau Rostov. Chegamos, agora, na família Rostov. Trata-se de uma família rica encabeçada pelo velho conde Ilia Rostov e pela mulher Natália, que são completamente coadjuvantes. Nicolau, o filho, é um jovem destemido que vai para a guerra como hussardo (guerreiros da região onde hoje é a Croácia e que geralmente não passam dos 30 anos, pois vão para a guerra para matar ou morrer). Peter, chamado de Pétia, é o irmão mais novo, de apenas nove nos nessa parte do romance. Natália Rostovna (mesmo nome da mãe) nessa altura tem 13 anos e não aparece muito, apesar de na descrição dos personagens ela estar apresentada como personagem feminina central. E Sônia é a prima pobre que mora com eles e com quem Nicolau Rostov tem um caso e promete casar-se assim que ela atingir a maioridade. Natália, por sua vez, tem um namorico com Boris, um personagem secundário em que a mãe percorre a alta sociedade russa na tentativa de transferir o filho para o cargo de ajudante de campo para não correr tantos riscos na guerra. Com a intervenção do príncipe Vassili, ela consegue esse objetivo.



            E a guerra. Ah, a guerra, é muito difícil descrever. O destaque é a terceira parte desse primeiro volume quando ocorre a batalha de Austerlitz, onde hoje é a República Tcheca, deixando cerca de mil mortos franceses e 15 mil mortos russos (e aliados). Essa foi a primeira grande batalha das guerras napoleônicas contra a Rússia, e ocorreu no final de 1805. É espetacular a descrição que Tolstói faz do amor incondicional que André e Rostov sentem pelo imperador, que ilustra o sentimento de milhares e milhares de soldados e militares. Eles literalmente querem morrer pelo imperador. E, antes da batalha, há um consenso de que essa é uma batalha ganha. Tudo parece estar a favor. No entanto, eles são surpreendidos pelos franceses de Napoleão e são destroçados. A primeira parte acaba justamente com o fim dessa batalha que resulta num encontro de Rostov com o imperador, que está arrasado pela derrota. Na verdade, ele apenas observa o imperador de longe, pois assim como um guri apaixonado que trava na hora de conversar com a adorada, ele perde a língua e não consegue dizer nada ao seu líder supremo. Enquanto isso, André é ferido e levado pelas tropas de Napoleão. É curioso que nesse trecho Napoleão é um dos personagens do livro, falando, agindo, comentando, rindo, etc.

            No livro ainda há um índice dos personagens reais que aparecem no romance, como o imperador Alexandre I e Napoleão. Ainda há outros personagens secundários, mas se eu fosse descrever todos, esse texto ficaria deveras gigantesco. Assim, termino essa resenha do primeiro volume de Guerra e Paz. É um livro muito foda, em todos os sentidos, pois têm mergulho no psicológico dos personagens (tanto quando estão em situações da alta sociedade, quanto em família ou na guerra) e há uma descrição muito foda do que era a sociedade russa naquele período – e chama a atenção as semelhanças com qualquer alta sociedade do planeta, com todas as hierarquias, formalidades e tentativas de manter uma boa imagem diante dos outros e a preocupação com o que os outros vão pensar. Há ironia, humor, crítica e descrição. Vale a pena, mas fica duas dicas para o enxerido leitor que quiser ler: primeiro, não subestime a lista de personagens do início. Até o final do primeiro volume eu ainda confundia o príncipe André com Nicolau Rostov, principalmente quando os dois estão no front. Segundo, vale a pena estar com o celular do lado para checar alguns termos ou regiões geográficas no Google. Isso ajuda a imaginar a história toda – por exemplo, eu tive que pesquisar o que era hussardo e junker, dois termos que aparecem bastante durante a descrição da guerra. Ah, e tem ainda o Dolokov, um maluco que perde o seu alto posto no Exército para voltar a ser soldado depois de tomar um porre, apostar (e vencer a aposta) que conseguia tomar um litro de rum em um só gole sentado numa janela alta sem usar as mãos para se apoiar e se meter numa trolagem em que amarraram um policial nas costas de um urso e o largaram em um rio (assim, o urso saiu nadando com o policial amarrado nas suas costas).

            Bueno, para a segunda parte, imagino que Pedro deva aparecer mais – pois ele é meio que um apoiador de Napoleão por ter sido criado na França, mas vive na alta sociedade russa em certa proximidade com o imperador e a cúpula do império – e também Natália, que na primeira parte tem apenas 13 anos e não aparece tanto.

            É isso, leitores imaginários! Como dizem os soldados russos: em frente!

 

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