Se tem alguma coisa que vou lembrar
dessa quarentena provocada pelo Covid-19, vai ser a leitura do livro “David
Copperfield”, do escritor inglês Charles Dickens. Cheguei a essa obra por
indicação do meu amigo e escritor Sérgio Stangler. Como sou fã de seus textos e
confio plenamente em seu gosto literário, não pude deixar de correr atrás
daquele que Stangler revelou ser seu livro preferido, the number one entre todos. Sei que cada um tem seus motivos
pessoais para fazer essa escolha e David Copperfield sem dúvida nenhuma entrou
na minha lista dos 5 mais, no entanto, ainda creio que “Dom Quixote”, de
Cervantes, nunca vai perder o posto de número 1 da minha lista. Como mencionei,
cada um com seus motivos.
Mas vamos à obra. A resenha que
faço aqui, como as tantas outras que já postei no blog, serve apenas para
consulta particular do próprio autor e, portanto, não deve ser lida por
ninguém. Quem se atrever a não parar aqui e seguir adiante vai perder o nariz
nos próximos dois anos.
A narrativa pode ser dividida em
várias partes. Como a obra completa tem cerca de 1.200 páginas na edição da
Penguin da Companhia das Letras, dividi em três partes dando conta de 400
páginas cada. No entanto, considero as primeiras 200 páginas um caso a parte,
pois realmente marca um ciclo na vida do personagem: do nascimento até os 10
anos de idade, ou seja, a infância, parte da vida mais importante de uma
pessoa, no meu humilde entendimento.
Para contar a vida de Copperfield,
Dickens utiliza a primeira pessoa. Ou seja, é um livro de memórias do
personagem fictício. O curioso é que ele publicou essa obra quando tinha
exatamente a mesma idade que tenho ao escrever essas linhas: 38 anos. Não posso
negar que sinto uma inveja boa do autor inglês, pois nunca seria capaz de
escrever tamanha obra prima, nem com 38, nem com 58, nem com 78, nem com 108
anos. Mas, vamos lá. O resumo da infância de Copperfield é o seguinte:
Copperfield já nasce sem pai, pois
ele morre ainda durante o período de gravidez da senhora Copperfield. Na noite
do nascimento aparece uma tia rabugenta do pai de David, chamada Betsey. Ela é
completamente maluca e mal humorada e diz que vai cuidar da nenê que vai nascer
assim como se fosse sua própria filha. No entanto, ela é surpreendida pelo
médico que faz o parto:
“- E ela. Como está ela? –
minha tia perguntou, ríspida.
O Dr. Chillip inclinou um pouco
mais a cabeça para o lado e olhou minha tia como um afável passarinho.
- A bebê – disse minha tia – Como
ela está?
- Minha senhora – retomou o dr. Chillip
-, achei que soubesse. É um menino” (p.29).
Então, tia Betsey vai embora para
nunca mais voltar àquela casa. Não vou transcrever a obra completa aqui, então,
vou dar um geralzão na sequência.
Copperfield nasce e vive seus
primeiros anos com a mãe e a babá, Peggotty. Os três estão felizes da vida até
que a mãe de Copperfield começa a ser cortejada por um homem chamado sr.
Murdstone. David, então, é enviado para passar 15 dias na casa do Sr. Peggotty,
irmão da babá, onde lá ele conhece outros personagens secundários, sendo que
alguns são mencionados mais para frente. Bueno, quando David volta para casa,
encontra tudo diferente, o sr. Murdstone sentado no sofá e a mãe dele agindo
completamente diferente. Adivinhem? Eles casaram e agora o sr. Murdstone é o
padrasto de David. A relação entre David, o sr. Murdstone e a irmã dele,
chamada Jane (ah, conheço Janes tão bruacas quanto ela) é um dos pontos altos e
dramáticos de toda a história. Confesso que devorei essa parte do livro com
angústia, curiosidade pelo que vinha em frente e torcendo muito pelo
protagonista. Tudo porque as atitudes do Sr. Murdstone e de sua irmã são
facilmente identificáveis em pessoas que conheço; e a própria história de
Copperfield, de certa forma, assemelha-se com a história da infância de meu
pai, tios e tias, que também perderam a figura paterna muito cedo e foram
“criados” por um padrasto tirano que a essa hora deve estar ardendo nos fogos
do inferno ou penando pelo purgatório do além.
A relação que se estabeleceu foi a
seguinte: o sr. Murdstone censurava qualquer demonstração de afeto que a mãe de
Copperfield pudesse ter com o filho. Ele e Jane tomaram as rédeas da casa,
decidindo sobre tudo e exigindo gratidão por parte da mãe de Copperfield por
eles terem entrado na sua vida para organizar tudo. Conheço gente assim:
chegam, tentam bagunçar tudo, querem mandar nas tuas coisas e ainda cobram
gratidão (em síntese, o perfil do típico bolsonarista contemporâneo). No meu
caso, consegui dar um chute na bunda de um casal que parecia o Sr. E a Sra.
Murdstone pois eles tentaram fazer exatamente o mesmo, honrando a péssima fama
caricatural de sogros e sogras. Só pensam em dinheiro e odeiam crianças. Filhos
da puta. Mas, feito esse parêntese, totalmente pessoal, em determinada altura
da narrativa o sr. Murdstone, irritado por Copperfield não conseguir resolver
problemas matemáticos, resolve leva-lo para o quarto para dar um corretivo
nele. Durante a surra, a criança morde a mão do padrasto. Como punição, ele é
enviado para um colégio interno onde um tirano tão ruim quanto o Sr. Murdstone
comanda tudo batendo e humilhando os alunos. Além disso, o guri faz o trajeto
da cidade onde mora até a cidade onde fica a escola praticamente sem dinheiro e
com a recomendação para que todos tomem cuidado, pois o moleque teria a triste
e estranha mania violenta de morder as pessoas... Chegando na escola (no
período de férias, como mais uma parte do castigo) é colocada uma placa escrito
“cuidado, ele morde”, em suas costas.
Começando as aulas, o pequeno Copperfield
faz algumas amizades, sendo que a que mais se destaca é com Steerforth, mais
velho e líder entre os alunos. Aliás, o único estudante respeitado pelo diretor
devido à condição financeira de sua família. Durante a estadia no internato, Coppefield
faz uma viagem para casa, onde fica 30 dias sendo humilhado e perseguido pelo
sr. Murdstone e a irmã, com mãe acompanhando tudo aflita mas sem fazer nada,
bem como Peggotty – que é uma personagem importante na história, mas que não
vou me aprofundar aqui para não me estender além da conta. Copperfield volta
para a escola e, no dia de seu aniversário, é chamado pelo diretor. Ele imagina
que vai receber uma cesta cheia de presentes enviados por Peggotty, no entanto,
lhe é comunicada a morte de sua mãe e do bebê recém nascido, seu meio irmão.
Ele é enviado de volta para casa, porém, está completamente sozinho no mundo:
sem pai nem mãe. Para piorar, Peggotty é demitida e se casa com o sr. Burkis, o
simpático cocheiro que lhe trouxe de volta para casa.
Durante esse período, Copperfield
descreve que o sr. Murdstone e a irmã simplesmente não ligam para ele. Ou seja,
não o maltratam, mas também não o ajudam. Ele fica zanzando pela cidade ou pela
casa, sem nada para fazer, pois a dupla decide não lhe enviar de volta para a escola
(para não gastar, algo tão típico desse tipo de gente...). Quando completa 10
anos, o padrasto decide enviar Copperfield para Londres para trabalhar na
fábrica da sua empresa que produz vinho. Assim, como se fosse um adulto, ele
passa a morar em um quartinho em uma pensão e a trabalhar desde cedo da manhã
até as oito horas da noite. Copperfield conhece algumas pessoas e faz amizade
com a família dona da casa onde o quarto é alugado, mas tendo que trabalhar
como operário de fábrica para ganhar dinheiro apenas para comer umas migalhas,
a situação fica insustentável e ele resolve fugir para procurar a tia Betsey. A
jornada de Londres até a cidade da tia é absolutamente angustiante e triste.
Logo na saída ele é roubado e fica apenas com a roupa do corpo e algumas
moedas. Após seis dias caminhando e dormindo ao relento (penhorando seu colete
e outras peças de roupa para ter o que comer) ele chega à cidade. Após novo
sofrimento para encontrar a casa da tia Betsey, finalmente ele chega lá, para
surpresa dela. Com a mesma postura firme com que é descrita no início do livro,
ela ouve toda a história do sobrinho e, após alguns dias, resolve escrever para
o padrasto, que decide ir até a cidade para levar o garoto de volta e lhe dar
novo corretivo para deixar de ser um garoto ruim e ingrato. Eis um detalhe
interessantíssimo: a sra. Betsey é uma feminista ferrenha (apesar de não ser
descrita com essa palavra). Era tão feminista, que ao ver que o bebê que havia
nascido anos atrás não era uma menina, decidiu renega-lo, pois ela considerava
os meninos e os homens o grande mal da humanidade. Sendo assim, há cena
absolutamente genial e inesquecível em que há o confronto entre a sra. Betsey,
o sr. Murdstone e a irmã Jane, que não vou descrever aqui pois deve ser lido
obrigatoriamente na íntegra. Confesso que vibrei como se fosse um gol do Grêmio
contra o Inter no final, quando a sra. Betsey expulsa o sr. Murdstone e fica
com o garoto. Ah, outro personagem intrigante é o Sr. Dick, descrito como um
sujeito com problema mental, também adotado no passado pela sra. Betsey. Ele é
muito empático e divertido, sempre agindo como uma criança de 10 anos.
Aí começa uma nova vida para
Copperfield, que é enviado para outra escola. Há um salto grande, entre as
páginas 200 e 400, pois quando a gente menos espera Copperfield já está com 17
anos. Também há vários personagens secundários que aparecem e reaparecem ao
longo da narrativa, mas que não tenho como descrever a todos. Os principais, no
entanto, passam a ser a tia Bertsey, o diretor da escola, Sr. Strong, a esposa
dele, o primo da esposa dele, que não me recordo o nome, a Peggotty, o irmão
dela (sr. Peggotty), a pequena Emily (adotada pelo sr. Peggotty e que é o
primeiro amor platônico de Copperfield) e o amigo Steerforth. Deve ter outros,
mas são desses que me recordo agora.
Ao concluir os estudos, a tia
Bertsey envia Coppefield para uma viagem de 30 dias para a casa da babá
Peggotyy, no entanto, no caminho ele encontra Steerforth. Depois de ficar uma
semana na casa dele (como mencionado, ele vinha de família rica) o amigo
resolve lhe acompanhar no resto da viagem. Assim, depois de anos, ele
reencontra a babá Peggotty e seu marido cocheiro, o sr. Peggotty e sua família,
inclusive a pequena Emily, que agora está noiva de Ham, outro rapaz órfão
adotado pelo sr. Peggotty lá no início do livro. Confuso, não? Claro, tudo
parece bastante claro se você está lendo a obra de Dickens.
Essa última parte da narrativa é
mais alegre e demonstra a formação de Copperfield enquanto pessoa.
É interessante
porque nos faz lembrar as nossas raízes, nossos amigos de escola, os primeiros
amores platônicos, os parentes e familiares que há anos não vimos e os que já
partiram. É uma obra escrita para ser um clássico, com linguagem de fácil
compreensão, mas com uma estética literária impressionante. E, o principal, faz
com que você leia páginas e páginas e não sem se cansar, muito pelo contrário,
a cada dezenas e centenas de páginas você fica curioso para saber o que está por
vir na sequência. E, lendo esse livro, adquiri um novo hábito para leitura:
tenho ouvido música clássica e, às vezes, tomado um vinho ou uma cerveja
enquanto “ouço” Copperfield contar a sua história. Em síntese, encontrei um
novo prazer na vida: ler um puta livro ouvindo música clássica e misturando
tudo em meu cérebro com um pouco de álcool para dissolver e curtir esse prazer.
E era isso que tinha para falar
sobre as primeiras 400 páginas de David Copperfield. Se você chegou até aqui,
tome cuidado com seu nariz!
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