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terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Las trincheras de la esperenza


O que você pensa sobre o Afeganistão? Fico me questionando agora sobre todas as coisas que já pensei sobre o Afeganistão e o Oriente Médio em geral ao longo da minha vida. Já fui um idiota. Quer dizer, ainda sou em alguns aspectos, mas já fui muito mais idiota. Um idiota quase que completo. Enfim, um idiota quase tão idiota quanto figuras como Bolsonaro ou Ratinho (e seus respectivos fãs e eleitores fanáticos). Mas evoluí. Passei dessa fase. Estudei e deixei a ignorância de lado. Já tive aqueles pensamentos típicos de extremistas (de direita e de esquerda, pois há, também, MUITOS idiotas de esquerda) que só olham para o próprio umbigo, do tipo: deixe que se matem. Ou ainda: já que eles querem matar por religião e estão atacando o ocidente, os Estados Unidos poderia jogar uma bomba e acabar com tudo de uma vez. Especialmente depois da onda de informações confusas que nos chegaram na época do atentado às torres do World Trade Center. E, naquela época, eu com meus 20 anos, praticamente não lia e me informava pelos clichês da grande mídia. Enfim, como disse, eu era um grande idiota que fui salvo pelos livros. Concluo, ainda, que a idiotice é uma tendência humana. Provavelmente, se você é um idiota, você não se identifica como tal. Mas se você ler, estudar e se colocar no lugar do outro, você vai, gradativamente, deixando de ser um idiota. E, depois de cruzar essa ponte da ignorância à luz, você vai olhar para trás e pensar: eu era um idiota. E dos grandes! Ponto.
Escrevo isso, fazendo uma pausa nas narrativas da viagem a Europa, porque acabei de ler o livro “Las trincheras de la esperenza”, de Antonio Pampliega. Comprei esse livro numa livraria em Burgos, na estante de narrativa de viagens. Eram várias possibilidades e escolhi a dedo essa. Pampliega é um jornalista madrilhenho que cobre, principalmente, os conflitos no Oriente Médio. Já foi sequestrado e preso durante 10 meses pela Al Qaeda (dessa experiência há um outro livro dele, “En la oscuridad”, que ainda vou comprar). Já a obra que acabei de ler é recém saída do forno: foi escrito e publicado em 2018. Atuais mas atemporais, afinal, como um bom livro-reportagem, faz uma puta contextualização histórica e humanizada do Afeganistão. E, lendo esse livro (que infelizmente não tem em português), concluo, mais uma vez, que já fui um idiota quase que completo.
Na narrativa humanizada de Pampliega (foto)
, ele relata diversas histórias de afegãos, de variadas etnias, que foram ou são atendidos pelo centro ortopédico da Cruz Vermelha. O personagem principal, no entanto, é o italiano Alberto Cairo, um fisioterapeuta que trabalha na Cruz Vermelha do Afeganistão há 28 anos. São histórias, acima de tudo, humanas. Eu, por exemplo, já cheguei a pensar “ah, os caras lá nem devem sofrer tanto por perder parentes e amigos, pois estão acostumados com isso”. Lendo o livro você percebe que, sim, eles sentem exatamente a mesma tristeza que nós, ocidentais, sentiríamos – afinal, somos todos igualmente humanos. E basta imaginar as histórias deles acontecendo com a gente: um grupo de extremistas invadindo sua casa e matando toda a sua família na sua frente e deixando você como sobrevivente para contar para os outros (exatamente da mesma forma que foi descrito pelos bolsonaristas que ameaçaram Jean Wyllys nos textos dos mails). Você ou seu filho ou filha de 3 anos pisando em minas, perdendo as pernas. Você levando tiro de metralhadora e ficando paraplégico ou tetraplégico em um país em que os deficientes são vistos como algo a ser escondido. Você, sendo mulher, ficado proibida de sair às ruas, de ir à escola, de ir ao supermercado, e trabalhar, tendo como único objetivo de vida casar com alguém que pague à sua família uma alta quantia de Euros. Você sendo proibido de rir na rua pelos talibãs. Você tendo a sua mão cortada por pensarem que você roubou algo (ou que você roubou mesmo, para não morrer de forme). Enfim, são muitas e muitas histórias que acabam com o misticismo de “ah, eles concordam que seja assim”. Não, eles acham tudo isso tão absurdo quanto nós. Pelo menos uma grande parte da população que é governada pelo medo, pela ameaça, pelo fanatismo e, principalmente, pela vontade dos poderosos de manter as coisas como estão. Uma população majoritariamente analfabeta, justamente para evitar qualquer tipo de levante. Uma população massacrada por uma guerra que está ininterrupta há 40 anos (sem contar as anteriores).
Vou fazer um esqueminha para tentar fazer você entender essa complexidade, pelo menos como eu entendi ao ler o livro. O Afeganistão entrou em guerra contra os soviéticos em um conflito que oficialmente durou 10 anos: de 1979 e 1989. Para vocês terem uma ideia, ainda há centenas ou milhares de minas desse período que ainda estraçalham corpos afegãos, pois as mina de guerra não tem prazo de validade. Pode durar séculos e, se alguém pisar, POW! Por isso, o Afeganistão é um país com um número impressionante de mutilados. São milhares ou milhões de pessoas sem uma das pernas ou sem as duas.
Quando essa guerra acabou, com os soviéticos deixando o país (no filme do Rambo 3, de 1988, o Rambo luta contra os soviéticos ao lado dos afegãos... Estranha ironia, pensando no Bin Laden...), começou a guerra civil pela disputa pelo poder, que estava nas mãos de um grupo que eu não lembro o nome. Enfim, a partir de então os talibãs passaram a lutar contra os muyahidines para tomar o poder. Os talibãs que defendem um estado islâmico, com a religião sendo lei. Foi uma guerra sangrenta, com vários grupos matando uns aos outros – especialmente civis. E, Alberto Cairo, com a Cruz Vermelha, viveu todos esses confrontos. A guerra durou até 1994 quando os talibãs tomaram o poder. E, então, o bicho seguiu pegando pesado.
Com os talibãs no poder as mulheres não podiam sair de casa. Os condenados por serem acusados de ter feito qualquer coisa contra a religião muçulmana eram executados em estádios de futebol durante o intervalo dos jogos ou em praça pública. Aliás, o presidente derrubado e outros integrantes do governo foram assassinados e arrastados mortos até uma praça pública, onde os seus corpos ficaram expostos para a população entender como seria o governo dali pra frente. A lei do olho por olho, dente por dente entrou em vigor (como a exaltada pelos bolsonaristas brasileiros). E as punições eram ali, na rua, na hora. Porém, a fome e a miséria atingiram picos estratosféricos. O sujeito, mesmo sabendo de tudo isso, arriscava roubar comida para não morrer de fome. E era espancado e morto na hora. Criança que chorasse na rua era morta pelos talibãs. Homens que não estivessem com a medida certa da barba, eram presos, torturados e, geralmente, executados, independente de idade. Enfim, chegou-se a proibir as pessoa de darem risada em público. Esse é o resumo sutil do que era o governo talibã.
Aí veio 2001. Com Bin Laden reivindicando o ataque às torres gêmeas, os Estados Unidos derrubaram os talibãs. Algo louvável e comemorado pelos afegãos, apesar das milhares de mortes da guerra. Porém, em pouco tempo, todos perceberam que nada mudaria. A “democracia” imposta pelos ocidentais fez com que os senhores da guerra, os antigos governantes, ocupassem os postos de presidente, vice, deputados, ministros, etc. Mais do mesmo. Lá como cá. O maior exemplo é a situação da mulher no país. Elas seguiram sendo um objeto descartável, que não tem voz nem vez. Um bicho de estimação que só serve para limpar a casa, cuidar dos filhos e fazer sexo. Não é a toa que os números de mulheres suicidas no Afeganistão são um dos mais altos do mundo: muitas tiram, ou tentam tirar, a própria vida. Elas não se conformam. Mas não tem força nem apoio de nada e de ninguém.
Em resumo, os ocidentais tiraram os talibãs do poder em 2001. Eles fugiram para as montanhas, mas sempre estão presentes, cometendo atentados suicidas, atirando bombas, escondendo minas, etc. A retirada das tropas internacionais faz com que eles ganhem cada vez mais força e, a tendência, infelizmente para os afegãos, é de eles voltarem ao poder em breve, pois ainda hoje, se você digitar no Google notícias sobre isso, vai ver que as tropas ocidentais no país estão gradativamente diminuindo (afinal, quem liga para o Afeganistão? A comunidade internacional só volta os olhos para eles quando há algum atentado... E aí, pra variar, é tarde). Sem o mundo dar a mínima para eles, o campo fica livre para os talibãs voltarem ao poder.
E, sobre os atentados, os ataques suicidas, o que dizer? Geralmente os ocidentais não entendem muito sobre isso (já estou falando como se estivesse passado por lá, mas é essa a sensação que você tem ao ler o livro). Como já comentei aqui no livro sobre o Iran, os talibãs também apostam no analfabetismo da população e, também, nas pequenas cidades, onde as culturas milenares valem mais do que qualquer tecnologia (por exemplo, lá eles acham que a vacinação contra a poliomielite é uma tentativa do ocidente de dominá-los e vai contra a religião islâmica). Então, você pega essa população, que não tem em grande parte nem energia elétrica (muito menos internet. Teve entrevistado que não sabia onde ficava a Espanha, por exemplo) e diz que ela está na situação de miséria porque Alá quer assim ou porque essa pessoa está pagando por algum pecado (que pode ser até ter tido pensamentos ruins e/ou infiéis). E você convence que, para essa pessoa se salvar e ir para o paraíso ela tem que matar infiéis. Simples assim. Dá arma para essas pessoas e, assim que ela ver um ocidental ou alguém de outra etnia que não a dela, vai mata-lo.
E, se precisar, vai se matar junto também. Fácil de entender, não? Essas pessoas, sem ter qualquer contato com o mundo exterior e sem ter qualquer aparato cognitivo para questionar uma narrativa dessas, acredita, obviamente. E, assim elas detonam bombas e mais bombas sem nenhum peso na consciência, pois estão servindo a Alá. Claro que não é o país inteiro, mas há muito e muito disso tudo. Há questões mais complexas, como: quem financia as armas? Como há armas americanas lá? Etc, etc. O resumo do resumo é o seguinte: tudo pelo dinheiro. A população se arma e se mata, enquanto os governantes e os empresários (o Afeganistão é o maior produtor de ópio do mundo – usado para fazer a heroína) ficam cada vez mais ricos. Estão cagando. Como o mundo inteiro está. Exatamente da mesma forma que funciona no ocidente. Igualzinho ao que acontece com as tragédias brasileiras que se repetem e que seguem eternamente impunes. Pela minha perspectiva de muitos anos atrás, aliás, um estrangeiro que olhasse para o Brasil diria: “eles merecem, já passaram por isso outras vezes e seguem fazendo errado. E a população, que não faz nada?”. Por isso, prefiro ir sempre contra as sentenças simplistas. O buraco, sempre, é mais embaixo. Sempre é mais humano do que a falta de humanidade que a deusa cadela do dinheiro fez com que milhões e milhões de seres humanos vendessem a sua capacidade de amar o próximo por alguns reais, dólares ou euros. E sabem o que é mais irônico nisso tudo? É que é tudo em nome da religião.
Os senhores das guerras e da política fazem as guerras e a política pelo dinheiro e o povo se mata pela religião e por ideologias. E assim o sangue segue rolando. Sangue religioso. Sangue talibã. Sangue de bolsonaristas com perfil talibã. Sangue de extremistas religiosos. Sangue de pessoas de esquerda. Sangue de pessoas de direita. La puta humanidade!
Bom, ainda teria outras mil coisas a escrever sobre outros mil pontos do livro, mas vou me limitar agora à indicar a leitura desse livro na íntegra mesmo...  Hasta!

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