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sábado, 20 de outubro de 2018

A marca humana

Eu gostaria de viver 200 anos apenas para poder ler todos os livros que gostaria de ler. Ontem, por exemplo, terminei o primeiro livro que peguei de Philip Roth. E, assim como Roth, há outras centenas de autores e livros clássicos e não clássicos que eu pretendo ler, porém, sei que para terminar a infinita lista eu teria que chegar, no mínimo, até os 200 anos. Justamente essa finitude e essa complexidade que é a vida humana, aliás, é o tema abordado por Philip Roth em “A marca humana”.
Racismo, sentimento de culpa, mentiras, desejos, prazeres, amores, família, amigos, isolamento, raiva, ódio, excitação, retórica, curiosidades, enfim, sentimentos de todos os tipos permeiam a ficção. Vou tentar dar uma pincelada de uma das obras mais complexas e completas que já li sobre a humanidade.
Norton é o narrador, mas que aparece muito discretamente ao longo do romance. Ele conta, não exatamente como uma biografia, a vida de Coleman Silk. Porém, para entender o contexto, é preciso pensar na história dos Estados Unidos. O fato principal da obra acontece em 1998, ao mesmo tempo em que ocorre o processo de impeachment contra Bill Clinton (que seria absolvido) depois do assédio a Monica Lewinsky.
Porém, em 1998, tanto Coleman quanto os outros personagens estão na faixa dos 60 e 70 anos. Ou seja, boa parte do que é narrado ocorreu dos anos 1940 até 1970, pegando aí a Guerra do Vietnã. Agora, sim, vamos ao que interessa: o enredo.
Coleman Silk é um sujeito branco, mas de família negra. O que no Brasil chamamos de mestiço. Porém, ele cresce justamente no período da segregação racial americana, ou seja, negros e brancos estudavam em escolas e universidades diferentes, utilizavam bebedores diferentes, sentavam em lugares diferentes dentro do ônibus, etc. Um parêntese: não é nessa ordem que os fatos são narrados, pois Roth começa pelo ápice da narrativa, mas para ficar mais fácil de entender essa resenha, optei por essa logística cronológica. Então, Coleman é, para os americanos dos anos 1950/60, um negro, pois apesar da pele clara, tem o sangue africano. Quando o pai de Coleman morre, ele vai estudar na New York University (ele e a família são de New Jersey, do lado de Nova York). Morando em Nova York, Coleman namora uma moça de descendência europeia e, depois de dois anos com a moça, resolve a levar para conhecer a sua família, sem contar nada a respeito de seus pais e irmãos. O jantar transcorre tranquilamente, mas quando os dois voltam para Nova York, ela chora em seu ombro e, em uma das paradas, ela pula fora do vagão do trem para abandoná-lo para sempre.
O tempo passa e Coleman arranja outra namorada, Iris, que viria a se tornar sua esposa. Para não perder a namorada, ele vai até a casa de sua família e diz que, a partir daquele dia, sua mãe não era mais sua mãe, sua irmã não era mais sua irmã e seu irmão não era mais seu irmão. Ele resolve apagar totalmente o seu passado e a sua origem. A primeira vez que ele tinha feito isso, aliás, foi quando ingressou na Marinha: ao preencher o formulário, onde havia “raça”, ele colocou “judeu” ao invés de “negro”. Tudo porque ele tinha uma descendência distante de judeus, mas que justificava a alternativa. Assim, ao renegar a sua família, ele resolve trocar novamente a raça negra pela de judeu (o que num contexto pós-Guerra, com a perseguição aos judeus, era algo positivo, pois a humanidade ainda tentava “compensar” o holocausto). Em síntese, assim como João Dória, Coleman foi um cara que tentou aproveitar totalmente todas as oportunidades para não ser excluído da sociedade, mesmo que isso implicasse em renegar o seu passado, a sua família. Assim, ele acabou excluindo de sua vida a sua mãe, os seus irmãos e amigos. Em seguida, Walt, o irmão mais velho, liga para Coleman e diz que ele está proibido, até o fim da vida, de tentar contatar de qualquer forma a mãe deles. E ele realmente faz isso.
Em Nova York, para Iris, então sua namorada, ele inventa que era filho único de uma mãe solteira que já morreu. Não tinha irmãos nem notícias de parentes. Enfim, um sujeito sozinho no mundo. Coleman casa, tem filhos e se torna professor universitário decano de uma universidade em Athena, uma cidadezinha do interior americano (não sei se é a Athena de Oregon, ou se é uma cidade fictícia, não me ative a esse detalhe). Ponto.
Chegamos, então, ao ponto com que Roth, ou melhor, Norton, inicia a narrativa do livro. Coleman fazia a chamada na terceira ou quarta semana de aula e, ao chamar dois alunos que ele nunca tinha visto na vida, ele pergunta “esses dois são spookers?”. Spooker, em inglês, quer dizer fantasma. Porém, no período da escravidão e do segregacionismo, o termo também foi utilizado para se dirigir de forma pejorativa aos negros. E por coincidência, os dois alunos em questão eram negros. Incentivados Delphine, uma professora francesa (que não vou entrar aqui na história dela, mas que é um personagem importante na narrativa), eles processam Coleman. Desse desgastante processo, acontecem duas tragédias pessoais a Coleman: ele resolve se aposentar da universidade e a sua mulher, Iris, morre em decorrência do estresse sem saber nada sobre a verdadeira história de Coleman. É nesse momento da narrativa que Coleman contata Norton para que ele conte a sua história (o que ele faz, mas de maneira independente, depois da morte de Coleman).
A narrativa vai seguindo, até que Coleman, então com 71 anos, se envolve com Faunie, a faxineira da universidade, de 34 anos. Abusada na infância e adolescência pelo padrasto, ela foge de casa aos 14 e, então, passa a sofrer nas mãos dos homens. Em resumo, casa-se com Les, um sujeito mais velho que vai para a Guerra do Vietnã e retorna completamente maluco. Eles têm dois filhos mas, depois da separação, enquanto ela estava no carro chupando um namorado, a casa pega fogo e os dois morrem. Les, então, a culpa pela morte das crianças e resolve persegui-la. E, assim, com o envolvimento de Faunie com Coleman, o professor universitário passa a entrar no campo de visão do perseguidor. Roth conta mais detalhadamente a história desses personagens, que são fantásticas, mas não vou reproduzir aqui o livro inteiro, caro imaginário leitor.
Em síntese, Coleman passa a ser novamente execrado publicamente: ele agora, além de racista, também abusa sexualmente de uma mulher analfabeta e sofrida na vida com metade da sua idade. É um tarado. Racista e tarado. Seus filhos viram-lhe as costas. Ex-colegas o abandonam. E Coleman fica completamente isolado. Ele e sua amante.
Para encurtar a história, Les mata indiretamente o casal. Ele pega o seu caminhão e o lança contra o carro de Coleman, que para desviar, sai da estrada e cai em um rio. Os dois morrem. E apenas Norton sustenta essa versão. Para todos, Coleman se matou e matou junto Faunie. Delphine, a professora francesa que encabeçou a acusação de racismo, agora também se aproveita da situação: alega que ele usou Faunie para atingir a universidade. Coleman é, então, um monstro. Essa é a constatação. Tudo sem saber a verdadeira história dele.
Como disse, há vários labirintos nessa história, que não entrei aqui. Essa é, em síntese, a narrativa do livro. De um lado, a história de Coleman. De outro, o seu cruzamento com personagens complexos. Todos julgam todos. Todos defendem o seu lado. Coleman entrou de gaiato em um relacionamento. Faunie, depois de toda a sua tragédia, encontrou alguém com o dobro da sua idade que lhe desse suporte sentimental e sexual. Les quis a vingança da assassina de seus filhos e de tudo o que tivesse perto dela com os traumas e os fantasmas da guerra em sua cabeça. Delphine se achava uma justiceira que iria fazer com que o professor vilão, tarado e racista tinha que ser condenado, mesmo que para isso tivesse que inventar coisas. Coleman se considerava uma vítima da sociedade que teve que renegar tudo para poder tentar levar uma vida normal, sem ser perseguido pela sua raça. Ou seja, pelo seu ponto de vista, cada um tinha a sua razão. E a razão de um se choca frontalmente contra a razão de outro. Com isso, mentiras e indícios são tidos como verdade. Tudo soa contemporâneo para o brasileiro de 2018, não? Exatamente. Foi o que senti ao ler o livro.
A história toda, a marca humana, a complexidade humana, pode ser facilmente jogada para a briga política e ideológica entre anti-PTs e anti-Bolsonaros. Cada um defende o seu ponto, olha para o seu umbigo e demoniza o outro. Há razões para isso? Certamente, mas na obra nos damos conta de como é fácil transformar o ódio em uma bola de neve que nos cega. Eis, por exemplo, um trecho da obra, que fala sobre a campanha que fizeram para execrar completamente a imagem pública de Coleman, na reflexão do personagem narrador Norton. Trata-se de uma acusação falsa que Delphine faz contra Coleman logo depois que ele morre, dizendo que ele havia arrombado o seu gabinete, destruído tudo, e mandado um email para os outros professores (que na verdade foi ela mesma que mandou).
“E como provar o envolvimento de Coleman? Impossível. Mas as pessoas acreditam assim mesmo. Por mais absurda a ideia de que ele arrombou a sala, destroçou os arquivos, entrou no computador, mandou a mensagem eletrônica para os colegas dela – todos acreditam, querem acreditar, não perdem uma oportunidade de contar a história mais uma vez. Uma história sem pé nem cabeça, implausível, e no entanto ninguém – pelo menos em público – faz as perguntas mais simples”. Perfeito. Parece até que o Coleman é do PT. “Basta fazer a acusação que ela está provada. Basta ouvir a alegação para que se dê crédito a ela. Não é preciso encontrar uma motivação para o perpetrador, não é preciso que haja nenhuma lógica nem razão. Basta um rótulo. O rótulo é a motivação. O rótulo é a prova. O rótulo é a lógica. Por que Coleman fez isso? Porque ele é x, porque ele é y, porque ele é as duas coisas. Primeiro racista, depois misógino. A esta altura do século XX, já não se pode dizer que ele é comunista, como se fazia antigamente”.
Encerro esse texto aqui, esperando que o meu tom spoiler não faça ninguém a desistir de ler esse livro, pois ele é muito mais complexo e fascinante, em suas 450 páginas, do que essa singela resenha de quase 4 páginas de Word.

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