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quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Trem noturno para Lisboa

Terminei de ler hoje “Trem noturno para Lisboa”, do escritor e filósofo suíço Pascal Mercier, lançado originalmente em 2004 e publicado pela Record em 2010. O livro, como um todo, é uma viagem. Em todos os sentidos. Às vezes é uma viagem na maionese. Noutras é uma viagem a sentimentos e pensamentos profundos da psicologia e da espiritualidade humana. Em determinados momentos é uma viagem lenta e vagarosa, que parece que não passa e não anda. Noutros, faz você ficar olhando pela janela, pensando na vida e nas suas loucuras.
Descobri esse livro totalmente por acaso. Como – se tudo der certo – vou viajar para a Europa pela primeira vez em breve, comecei a procurar livros com narrativas de viagem. Lembrei-me do “Trem para a Suíça” do David Coimbra e, pesquisando esse livro, acabou aparecendo no Google a obra de Mercier. Comecei a ler resenhas, vi que era da Record, pesquisei um pouco sobre a biografia do autor e, zaz, encomendei-o-ô, como diria Sambarilove. E é justamente sobre isso que trata o livro: o acaso. O acaso e muitas outras coisas, que tentarei explanar da maneira mais clara possível, pois não é fácil, pois há muitas considerações, de todas as ordens, para serem feitas. A começar pelo ritmo da narrativa.
Esse é um livro que eu não indicaria para qualquer pessoa. Um iniciante em literatura certamente iria odiar e, provavelmente, pegaria nojo de romances. Tudo porque o ritmo é lento, como o andar de um trem antigo (apesar da história já acontecer no século XXI). O que você imagina que vai acontecer e até torce para que aconteça, não se realiza. Principalmente o final (mas não vou dar uma de spoiler). Eu já tinha lido alguns livros que demoram pra engrenar. Lembro que o “Viver para contar”, do Gabriel Garcia Marquez, eu tive que pegar para tentar ler umas três vezes, até que finalmente passei da página 30, quando tudo começa a fazer sentido. Já li outros livros que levou mais tempo ainda, mas esse se superou. A história começa a te empolgar um pouco mais lá pela página 200 (o livro tem 460 páginas). Até então, o ponto alto é o início, quando o personagem principal, Gregorius, um professor de Filologia de uma universidade na cidade suíça de Berna, vê uma moça que ameaça se jogar de uma ponte. Eles têm uma sequência de cenas bizarras até que ela, uma portuguesa, vai parar sentada em uma classe de uma das suas aulas. De repente ela se levanta e deixa a sala. Coincidentemente, logo depois dessa cena, Gregorius encontra um livro em português em um sebo de autoria de um tal de Amadeu Prado. Ele compra esse livro e, como bom filólogo, começa a traduzi-lo. Então, o professor simplesmente se apaixona pela obra e pelo autor e resolve partir em um trem noturno para Lisboa, deixando tudo para trás, para investigar quem foi aquele sujeito que queria reinventar a língua portuguesa porque acreditava que as palavras já não davam mais conta da complexidade da vida.
Assim, ele acaba tentando montar um quebra-cabeça sobre quem foi Amadeu Prado. Para tanto, ele vai atrás das irmãs do escritor, dos amigos, dos inimigos, etc, afinal, o tal Prado, um médico, viveu no período da ditadura de Salazar. Gregorius tem quase 60 anos, enquanto os outros personagens ultrapassam a casa dos 80, o que não dá um caráter muito verossímil à obra, pois todos os personagens principais que se relacionaram com Amadeu Prato estão vivos, menos ele. Por quê? Porque o autor quis assim, ora pois. (Mercier, na foto)
Óbvio que essa trama toda tem mil nós que são desamarrados lentamente ao longo das mais de 400 páginas do livro, mas não vou me atrever a comentar mais nada sobre o complexo enredo. O que eu quero comentar aqui é, sim, os pontos da história que te deixam pensando sobre a vida (afinal, o autor é um filósofo). Há vários momentos em que o personagem se questiona sobre os detalhes, os acasos que mudam as vidas das pessoas. Alguém que você conheceu em um bar e, se você não estivesse naquele bar, naquele momento, você nunca teria conhecido, sendo que essa pessoa pode mudar para melhor ou para pior a sua vida. Outro ponto é o olhar sobre o outro. A todo o momento Gregorius pensa: como será que é ser aquela pessoa? Eu gostaria de ser aquele sujeito que fala uma língua que eu não compreendo, que leva outra vida, só para experimentar essa sensação. E, assim, o personagem sai da Suíça para ir ao outro lado da Europa, viver uma nova vida e, em pouco tempo, ele conhece pessoas que passam a fazer parte de sua existência. Em três ou quatro dias ele se sente como se aquelas pessoas que ele conheceu há tão pouco tempo dependessem dele e como se as pessoas que ele havia deixado para trás há 72 horas pertencessem a um passado distante, que já não tem mais nada a ver com a sua vida. Louco, não? Quem nunca se sentiu assim? Eu, particularmente passo por isso a cada mudança e, às vezes, a cada viagem. Quando eu estive um ano nos Estados Unidos a todo o momento eu me sentia como se aquilo agora fosse a minha vida e o que tinha ficado no Brasil fosse uma espécie de passado alcançável apenas pela força da memória. Depois voltei, e inverteu-se a situação.
Outra coisa que senti ao ler o livro é essa vontade que volta e meia toma conta de alguns (como eu) de uma hora para a outra ir para um lugar totalmente diferente começar uma nova vida, conhecer pessoas que eu nem sonho que existam e que vão entrar na minha trajetória, assim como eu vou entrar na delas. Como se eu girasse o mapa mundi e colocasse o dedo ao acaso em algum país da Ásia, da África, da Europa, da Oceania ou das Américas e resolvesse partir, sem futuro certo, sem saber o que está por vir. E o personagem passa por esses dilemas durante toda a narrativa: enquanto ele está em Lisboa, em determinados momentos ele quer pegar o avião de volta para a Suíça, e quando ele retorna para a Suíça ele fica a todo o momento tentado a voltar para Portugal. Na verdade é isso que somos: espíritos perdidos pelo mundo. Alguns se contentam em seguir o roteiro que foi imposto pelos seus pais e pela sociedade ao nascerem: estudar, trabalhar, juntar dinheiro, acumular coisas, ser cidadão de bem, procriar, ficar velho, acumular mais dinheiro e bem materiais e morrer. Tudo pela segurança. Tudo pelo medo do desconhecido, sendo que ao final, o desconhecido vence. O desconhecido é inevitável. E viajar para lugares onde as pessoas vivem outros tipos de vida é, no fundo, uma forma de flertar com o desconhecido. Acho que por isso eu me imagino morando em países como Nigéria, Japão, Suriname, Tasmania, Porto Rico, Islândia, Suécia, Polo Norte, Indonésia, Iran, Egito, etc. Por mais que a gente leia, veja filmes e se informe sobre qualquer lugar, a experiência prática é muito diferente. O maior exemplo é os Estados Unidos: é a cultura mais consumida do mundo. Todos já viram mil séries, filmes, documentários, já leram livros, já ouviram relatos de quem já foi pra lá ou leram blogs sobre pessoas que moram lá, porém, chegando em Nova York, Filadélfia, Los Angeles, Miami, Las Vegas, a sensação é completamente diferente. E geralmente a expressão que as pessoas usam é: “não tem nada a ver com o que eu imaginava”. Agora, imagina esse sentimento em relação a Abuja? A Casablanca? Ao Tehran? E, de certa forma, também é sobre isso o livro de Mercier. É um bom livro, para os que têm força de vontade e se sentem deslocados no mundo. Como eu disse, é uma viagem. Uma viagem lenta e por vezes cansativas, mas que quando termina, você pensa: valeu a pena.

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