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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Na minha pele

Nessas férias, vou compartilhar aqui meu “arquivo pessoal” de resenhas dos livros que estou lendo. Eu fazia isso nesse espaço tempos atrás, mas com a correria, acabei deixando de lado. Na verdade, gosto de “resenhar” os livros e publicar aqui para consultar sobre o que eles tratam daqui a décadas, quando a minha memória não me permitir fazer tal consulta. Vou começar com o livro que terminei hoje, “Na minha pele”, do Lázaro Ramos, e noutra oportunidade vou falar sobre o “Sexus”, do Henry Miller, que comecei a ler quando ainda estávamos em ano letivo e que terminei antes de viajar. Enfim, não são resenhas tradicionais, mas sim, comentários e impressões sobre cada obra. Segue a primeira:

Cheguei na casas de meus pais, em Xangri-lá, RS, para passar o natal e encontrei no quarto de minha mãe o livro “Na minha pele”, do ator e agora também escritor Lázaro Ramos. Não fiquei com muita vontade de ler, pois eu havia recém encerrado o “Sexus”, do Henry Miller, e ganharia de natal outros três livros, dois da minha mãe e um da minha irmã. Na verdade, queria aproveitar aqueles três dias antes do natal para descansar a mente. Assim, no primeiro dia dormi praticamente 24 horas ininterruptamente. Com o cérebro renovado e praticamente vazi, podendo passear a beira mar de tardinha, acabei não resistindo e peguei o livro de Lázaro. O que pensei antes de ler? Sinceramente, adoro biografias. E quando vi o livro pela primeira vez, pensei: “vou ler depois”, mas, quando a minha mãe disse que não era uma biografia, fiquei desestimulado. Mesmo a contragosto, quando comecei a ler as primeiras páginas, logo vi que, sim, tratava-se de uma autobiografia, porém, com ênfase na questão racial. No livro, Lázaro conta a sua vida, entretanto, destacando histórias e momentos que focam principalmente as dificuldades de ser negro no Brasil. Ele conta sobre a sua infância na ilha do Paty, na Bahia, da relação dele com os pais (separados, sendo que a sua mãe morreu quando ele tinha, pelos meus cálculos, uns 20 anos, ou menos), dele com a família, vizinhos, colegas, etc, o ingresso no teatro (contra a vontade do pai, que queria que ele fizesse um curso profissionalizante para “ser alguém na vida”) e muito mais. Enfim, essa parte mais biográfica compõe principalmente a primeira parte do livro, onde ele mais conta histórias da sua formação, com todas as dificuldades, dúvidas e incertezas, do que faz reflexões mais profundas sobre o racismo. Ponto.
Na segunda parte do livro, ele começa a falar mais sobre o Lázaro Ramos de hoje, casado com a atriz Taís Araújo e pai de um menino e uma menina. Nessa parte, ele flerta com a pesquisa e o texto acadêmico, citando outras referências, apresentando dados como se fosse uma grande reportagem autobiográfica sobre o tema. Em suma, nos faz pensar. E muito. Confesso que há pontos que concordo e outros que questiono, destacados mais à frente. Concordo com a dificuldade que os negros têm em ascender socialmente e economicamente no Brasil e no mundo, também me angustio quando penso que o passado das famílias negras foi praticamente (se não totalmente) queimados, igualmente me revolto com as diferenças abismais de tratamento e de salários entre homens brancos e mulheres negras (e entre homens e mulheres brancos com homens e mulheres negras), revolto-me com as abordagens policiais preconceituosas, etc (os problemas citados por ele em vários momentos são conhecidos da maioria – apesar de que ninguém faz muita coisa para mudar isso. Problemas como: poucos negros em cargo de chefia, praticamente nenhum professor universitário negro, poucos negros nas escolas particulares e universidades, poucos negros ocupando ministérios e cargos políticos, etc). Agora chego a alguns pontos que mais me marcaram na obra de Lázaro:
Ele apresenta algumas reflexões a partir da constatação de ele ser um dos poucos negros a ser chamado para campanhas publicitárias ou para ser capa de revista. Ele e Taís, aliás, foram os primeiros negros a serem capas em algumas revistas famosas. Isso revela o preconceito existente na mídia e no público. Também apresenta, quase que de forma acadêmica, a diferença de tratamento quando há notícias envolvendo crimes cometidos por menores negros e brancos (renderia bons artigos, TCCs, dissertações e teses, que poderiam ajudar a sociedade a andar para frente). E comenta a sua situação como ator, contando que geralmente era (e é) convidado para fazer papeis de negros estereotipados, ou seja, o escravo, o empregado, o motorista, o personagem secundário que é amigo do protagonista branco, etc. E que, a partir disso, ele luta para poder fazer o papel do protagonista, sem o viés do estereótipo. Ele conta a onda de ódio que foi despertada em alguns telespectadores quando fez um papel de galã meio vilão em uma novela da Globo (que não assisti, pois novelas da Globo não fazem meu estilo – nada contra quem assiste, uma mera questão de gosto). São inúmeras as situações e comentários feitos por ele que te deixam pensando. Eu, inclusive, testemunhei uma cena que ilustra muito bem a exclusão do negro, não na sociedade brasileira, mas na ocidental como um todo. Em Washington D.C., quando visitei o monumento dedicado a Martin Luther King, havia centenas de pessoas admirando e fotografando a gigantesca obra. Nenhuma negra. Ou seja, mesmo para apreciar uma escultura construída para homenagear um dos principais nomes da luta pelos direitos iguais e contra o racismo, os negros praticamente não têm acesso. E por que não tem acesso? Porque dificilmente um negro ocupa um cargo de chefia ou tem uma remuneração que lhe permita viajar para Washington D.C. para conhecer tal monumento. E isso que estou falando de uma cidade em que 70% da população é negra. Porém, possivelmente esses 70% estavam trabalhando no horário e no dia da semana em que eu estava lá, passeando. Foda, não? Mas, um dos pontos mais fortes da narrativa de Lázaro é quando ele fala dos filhos. E não apenas dos dele e de Taís, que são negros, mas de todos: dos negros, dos brancos, dos pardos, dos indígenas, etc. É obrigação, inclusive dos pais brancos, colocarem os seus filhos diante de protagonistas negros, heróis de historinhas negros, atores negros, escritores negros, etc. Tudo isso para evitar que, no futuro, os nossos filhos possam herdar essa cultura preconceituosa de hoje.
É uma tarefa gigantesca, mas que precisa ser feita. Assim, decidi encomendar como livro de historinhas infantis livre, que está na lista de material da Lary, o livro infantil escrito por ele mesmo, Lázaro Ramos: Caderno de rimas do João. E, outra pergunta que faço: se crianças negras podem ter bonecas loiras ou morenas de pele branca, por que crianças loiras não podem ter bonecas negras? Coisas simples, mas que praticamente não pensamos.
Agora chego aos pontos de questionamento sobre a obra. Na verdade, como professor, seriam pontos que eu pediria uma explicação um pouco mais detalhada, pois entendi o que ele quis dizer, no entanto, da maneira como ficou, achei muito generalista.
Primeiro, quando ele fala que era o único negro da escola e que, por isso, era tirado para amigo pelas moças. Ou seja, não era visto como um objeto de desejo. Aqui, ele poderia contar alguma história que exemplificasse isso. E não digo isso da posição do branco querendo dizer o que o negro deve fazer (como ele menciona várias vezes), mas de professor acostumado a analisar textos literários (e faço isso com livros de brancos também).
Ou seja, é uma questão meramente relacionada à narrativa. Digo isso porque, eu mesmo, vivi situações assim, sendo branco e vivendo em um estado e em cidades majoritariamente brancos. E muitos outros brancos, negros, japoneses, coreanos, argentinos, vivem o mesmo. Ser tirado para amigo pelas meninas que desejamos é uma situação normal, que atinge a maioria dos adolescentes, independentemente de raça, cor ou classe social. Por isso, fiquei sentindo falta de um exemplo que ilustrasse que isso, no caso dele, estivesse ligado ao racismo (como ficou parecendo ser a tese defendida por ele, de que ele era tratado como amigo, e não como amante em potencial, por ser negro. Como disse, isso aconteceu comigo e com quase todo mundo que conheço em alguma fase da vida N vezes).
Segundo, quando ele reclama de uma empresa que não aprovou um projeto dele e que, anos depois, quando o projeto fez o maior sucesso, essa mesma empresa veio correr atrás dele com mil elogios. Eu, e praticamente todo mundo que conheço que se deu bem (e muitos e muitos famosos de todas as raças e cores), tenho histórias parecidas. Eu ouvi, sem exagero, mais de 100 NÃOS em procura por emprego, em seleções, entrevistas, projetos apresentados, etc. Não atribuo isso a questão de raça. E, lendo a biografia de escritores e artistas brancos, como Bob Dylan, Bukowski, Thompson, etc, há mil histórias parecidas. Então, também senti falta dele explicar melhor porque ele considerou uma rejeição de projeto um ato de tratamento diferenciado por conta da cor. Claro que entendi que o projeto dele era bem pessoal, inclusive por tratar de questões relacionadas ao negro, mas olhando sob a perspectiva da empresa, ela deve ter tomado a decisão baseado no pensamento “vende ou não vende?”. E, obviamente, que aí da para aprofundar isso questionando porque uma história com ênfase em questões raciais não vende. Pois foi essa reflexão que senti falta nesse momento da narrativa.
Acho que as participações em bancas de TCC de final de ano fez com que me portasse assim: falar dos pontos positivos e não tão positivos assim de uma obra. Nesse caso, não chego a considerar esses dois aspectos mais críticos que fiz como pontos negativos. Aliás, lembrei-me de um terceiro: ele conta sobre uma intervenção do público em uma peça de teatro que uma mulher branca começou a dizer o que ele tinha que fazer, etc. Ele interpretou isso como a de uma mulher branca que está dizendo a um negro o que ele tem que fazer e como tem que fazer, com base na relação chefe-subalterno, senhorio-escravo, etc. É uma leitura. No entanto, atrevo-me a dizer que há MUITA GENTE CHATA NO MUNDO e as pessoas chatas são chatas com todo mundo. Eu conheço muita gente chata que vem querer me dizer que eu devo fazer isso, ou aquilo. Tem gente chata que acha que sabe mais sobre a minha profissão do que eu mesmo. Aí fico pensando: será que se eu fosse negro, eu interpretaria dessa forma, quero dizer, que essa pessoa chata está sendo chata por que eu sou negro? É uma coisa que nunca saberemos. Mas os chatos são chatos com todo mundo, não só com brancos ou negros. Há branco chato que faz o mesmo com outros brancos. Em resumo, chato é chato. Ponto.
Esses elementos todos apresentados nesse texto, obviamente, eu gostaria de discutir com o Lázaro sentado num boteco, tomando umas, ouvindo as suas histórias e contando as minhas, pois não é só nordestino que sofre preconceito no Rio e em São Paulo: qualquer pessoa de fora quando vai para outra região acaba em algum momento sofrendo preconceito e isso se reflete na análise de currículo, entrevistas de emprego, promoção, etc. Mas, como ele felizmente é um global (e torço para que cada vez mais vezes negros e negras se tornem globais), e eu sou um mero mortal, isso acaba se inviabilizando. E, devido a impossibilidade e a distância geográfica, econômica e de fama de poder conversar com o Lázaro num boteco, fico no aguardo de um segundo volume ou de qualquer outro livro escrito por ele. Para finalizar, fica a dica para a leitura.
Hasta!

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