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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Esse mundo está perdido, seu moço!

Quando começou a esquentar, resolvi deixar o abrigo. Quer dizer, não sei até hoje se fui eu quem decidiu sair do abrigo, ou se foram eles que decidiram sair comigo. O fato é que assim que o frio passou, comecei a chegar de madrugada, bêbado, e era acordado aos berros antes do meio-dia e chutado para a rua. Enfim, chegou um ponto que não dava mais e fui definitivamente para a rua. Todo o início de primavera é assim. Aliás, na minha idade isso não é nada. Em 64 anos de vida já passei por muita coisa, seu moço. Hoje não tenho nada. Mulher e filhos, nunca mais ouvi falar. Provavelmente se me encontrassem, eu seria execrado e crucificado por eles. Com razão ou não? Vá saber. Não preciso de ninguém para dizer o que já sei: que sou um velho bêbado e fracassado. Agora vivo disso: esmola na Rodoviária, no centro, nas portas de restaurantes, e por aí vai. Já quando a noite chega, acho um canto escuro e durmo. Geralmente vou ao mesmo lugar por um tempo, até que o guardinha da rua ou o proprietário da casa ou um dos moradores dos prédios resolve me tocar como um cachorro sarnento. Às vezes o pessoal da prefeitura tenta me levar de volta para o abrigo, mas lá já me conhecem. Vou um dia, no outro estou de volta às ruas. Acho que se pudessem, me mandavam de volta para a cadeia. Já aconteceu comigo, sabe? Acusaram de um crime que não cometi só para me tirar de circulação. Mas, até eu, um vagabundo sem condições de contratar um advogado qualquer, cedo ou tarde acabo liberado. Posso até assumir a culpa, pedir para ficar lá, que eles me soltam. Lá não é muito diferente do que aqui. Pelo menos na minha idade. Chego lá, fico no meu canto, ninguém mexe. Eles estão mais preocupados em comandar os negócios que rolam no lado de cá das grades.
Já vi de tudo nessa vida, seu moço. Presenciei assassinato enquanto tentava dormir na madrugada. Nem dei bola, fingi que não era comigo. Certa vez, dois caras esfaquearam um ruivo num canto escuro onde eu pestanejava. Fugiram. Eu estava completamente bêbado, e segui dormindo. Os policiais me acordaram quando acharam o defunto, todo furado, e me levaram junto para a delegacia. Não tinha muito o quê contar. O morto era um conhecido deles, e sabiam que eu não tinha nada a ver com a história. Chutaram-me para fora da delegacia e ainda disseram: “fique longe de confusões, velho, estamos de olho em você”. Eu heim. E eu sou lá de me meter em confusão? Só quero viver. Ou melhor, sobreviver. Apesar de que às vezes tenho dúvidas do quanto eu quero isso. Estou cansado, sabe? Durante um período eu arranjava uns amigos. Cachorros de rua, óbvio. Só neles é que se pode confiar. Mas sempre algum maldito adolescente desmiolado acabava miseravelmente com a vida de algum deles, e isso me consumia, me deprimia. Desisti. Agora não deixo nem os cachorros me acompanharem. Outro dia, acordei com dois cachorros trepando ao meu lado. Malditos. Porém, coisas desse tipo são comuns. Quando não são os cachorros, são as pessoas. Num lugarzinho que tirei pra dormir durante mais ou menos um mês, toda a noite as prostitutas e travestis das redondezas levavam uns caras lá para fazer o serviço. Eu acordava com aquela gemeção. Saía um, vinha outro. No início até espiava, me empolgava... Mas com o tempo, nem ligava mais. Sempre a mesma história: chomp, chomp, chomp, chomp... ahhh... silêncio, acerto de contas, e segue a noite. Até que um dia o dono do lugar (uma lanchonete que fechava cedo), de saco cheio de chegar toda a manhã e ter que limpar a sujeira que faziam, ficou de tocaia. Eu até vi o desgraçado escondido, mas fingi que não era comigo, e quando a prostituta estava trabalhando legal no cara, o dono do lugar saltou com o revólver em punho e foi grito pra tudo quanto é lado. Confesso que até eu pulei. O cara se assustou comigo, e botou o revólver na minha cabeça. De novo foi parar todo mundo na delegacia: eu, o dono da lanchonete, a prostituta e o gordo que estava com ela, que só dizia “pelo amor de Deus, não me entreguem, pago o que quiserem, eu sou casado, por favor...”. Eu só pensava em sair dali e voltar a dormir.
Mas é isso, seu moço. Assim eu tenho passado meus dias. Se espero que minha vida melhore? Pois olha, seu moço, pra minha vida melhorar só se um anjo baixar aqui e me consagrar. Afinal, Jesus não tinha dito que quem quer ir para o céu deveria doar todos os seus bens materiais e se dedicar só a fazer o bem? Pois o que mais vejo são carrões estacionados na porta da Igreja nos domingos... e o pior é que os mesmos que estão lá, estão depois aqui nos escurinhos com as meninas... Esse mundo está mesmo é perdido, seu moço...Perdidinho da silva... Mas que nada, um dia uma delas cai no meu colo, seu moço!

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