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quarta-feira, 8 de abril de 2009

A preocupação de Ferdinando

Ferdinando lia tranquilamente a autobiografia de Edgar Morin deitado em sua cama, quando sucessivos pensamentos começaram a inquietar a sua mente. E não foi pela complexidade que ele segurava em suas mãos, mas sim, porque ele lembrou de algo que um dia a sua namorada lhe disse: “eu não quero ter filhos”. Algo simples, dito quando estavam começando o namoro, há aproximadamente quatro anos, depois de uma madrugada regada a sexo ardente, tão comum quando dois jovens a flor da idade se conhecem intimamente. Na época, ele nem ligou para isso, aliás, nem se passava em ter um barrigudinho naquele momento. Iria colocar a sua movimentada vida sob risco. Na época, ainda faltavam dois anos para se formar. Trabalhava o dia inteiro, à noite ia para a aula, e, na saída da faculdade, revezava: às vezes ia nos bares com os amigos, às vezes ia para a casa dela, para passar a noite escondido do sogro e da sogra. Aqueles momentos mágicos, que por uma questão de segurança, tinham que ser em silêncio. Ele controlava bem a empolgação, mas às vezes era necessário tapar a boca dela, se não acordaria não só a casa, como a vizinhança inteira. Mesmo assim, aquele “ahmmm” abafado o excitava muito. Começava a sentir saudades disso.
No entanto, o tempo passou. Ele se formou, ela também, e os dois iriam morar juntos dentro de algumas semanas, quando aconteceria o tão esperado e sonhado casamento. Inicialmente, os pais dela foram contra. Totalmente contra. Julgavam-no um mal partido. Aliás, mal não, péssimo. Desde que havia se formado, só tinha conseguido sub-empregos (era sim que o seu sogro se referia aos seus trabalhos) fora da área de Psicologia, curso na qual dedicou preciosos quatro anos de sua vida. Por sinal, um curso muito difícil em todos os sentidos. Os professores eram exigentes, e, por ser um dos poucos homens heterosexuais na sua classe, foi difícil resistir a tentação e as cantadas que as colegas lhe impunham quase que diariamente. Para sua sorte (ou competência), Alice nunca lhe deixara não mão. Nunca negara aos seus caprichos. Enquanto ouvia as queixas dos seus amigos, que reclamavam das dores de cabeças e indisposições de suas respectivas namoradas, Alice sempre estava bem disposta, faça chuva ou faça sol. Talvez por saber da forte concorrência.
Ferdinando não chegava a se considerar bonito, mas sabia que tinha a manha. Sabia como agradar a uma mulher. Isso desde os primeiros anos da puberdade (palavrinha brega essa). Enquanto no colégio, ouvia os amigos brigando com as gurias, ele as encantava. Nem ele sabia como fazia aquilo, mas sabia que levava jeito para a coisa. Perdeu a virgindade com uma prima dez anos mais velha. Ele tinha 14, ela 24. Recém havia acabado com o noivo, e sua madrinha (mãe dela) o convidou para posar lá, como era comum desde que se lembrava por gente (ele adorava ir lá por que era tratado a pão de ló). Só que naquela ocasião, ele ganhou mais do que pão de ló. Agora, lembrando da conversa que teve com sua prima, deitado em sua cama, ele ria e se espantava de como podia ser tão esperto naquela idade. A prima entrou em seu quarto para desabafar. Ele passou a consolá-la, a elogiá-la, a dizer como sempre a achara linda, meiga, inteligente e tal e coisa, mesmo percebendo que na verdade ela estava lá para outro tipo de consolo. Fingiu que acreditava nela, assim como ela fingia que acreditava nele, tudo para chegarem a um ponto em comum, como de fato, chegaram. Também teve que ser em silêncio. Para a primeira vez, até que foi melhor do que o esperado. O curioso é que ele sempre achava que iria se apaixonar pela mulher que lhe tirasse a virgindade. Mas isso não aconteceu. E mais: foi ela quem se apaixonou por ele. Procurava-o, ia visitar os seus pais, só para o ver, mas ele não queria saber. Já estava noutra. Volta e meia, quando se encontrava sem outras opções, ligava para a prima. Nos primeiros meses de namoro com Alice, até chegou a cair em tentação, mesmo com a prima namorando um sargento cabeça-dura. Depois deu um basta. Sabia que essa história não acabaria bem, ainda mais depois que o sargento lhe mostrou as bazucas que usava diariamente no quartel. “Que sejam felizes e tenham muitos filhos”, pensou, aliviando a sua consciência.
Mas enfim, depois da prima veio a vizinha, a filha do padeiro, a filha e a mulher do porteiro, a mulher do síndico, a outra prima (que na verdade era segunda prima), as coleguinhas do colégio (iam caindo na rede uma a uma, como se fossem marrecas em dia de caça), até a professora de inglês do terceiro ano do segundo grau. Contudo, quando estava no segundo ano da faculdade, conheceu Alice. No início parecia ser só mais um lance. Como foi dito, chegou até a cair em tentação com outros rolos, mas depois parou. E mais: resistiu a pressão das colegas da Psicologia. Inclusive das que já tinham passado por suas rápidas mãos. E inclusive a Maria Valéria, sonho de consumo de todos os homens da faculdade. Aliás, da faculdade não, de Porto Alegre inteira. Ela o tentava, sussurrava em seu ouvido com aquela voz de leite-condensado com gelatina: “vamos ter que sair, só nós dois, uma hora dessas”. Essa frase fazia com que seus pelos ficassem arrepiados do mindinho até a o último fio de cabelo, passando pelos pentelhos e pelo sovaco. Mas, como o soldado Ryan no front, resistiu bravamente a cada investida daquele diabo vestido em pele de deusa.
Agora, deitado na cama lendo Edgar Morin, que na verdade era um dos livros da Alice, que fazia mestrado em Sociologia, voltou-lhe a sua mente a frase dita naquela madrugada de sábado chuvosa: “eu não quero ter filhos”. Pois ele, Ferdinando, queria ter um lumbriguentinho. Ah, queria! E teria. Quisesse Alice, ou não. Se não fosse com ela, seria com a empregada da mãe dela (que coxas tinha aquela mulher!). Iria falar com Alice naquela noite. Ah, iria! Colocaria os pingos nos is. Se ela o amava, teria que ter um pequeno herdeiro para o império que estava construindo! (pelo menos em sua mente). Um centroavante do Inter, quem sabe! Iniciaria nas categorias de base do seu clube do coração, e depois ainda enxeria os seus bolsos indo para o Barcelona ou para o Milan. Mas só depois de conquistar, no mínimo, um Brasileirão. Iria vetar qualquer transferência sem deixar ao menos um troféu importante no Beira-Rio. Até imaginou as manchetes nos jornais: “Transferência de Ferdinando Júnior para o futebol europeu é vetada pelo pai do jogador”. Encheu o peito, de satisfação. Ou, quem sabe, se ele não herdasse as habilidades futebolísticas do pai, poderia ser político. Mas político grandão, tipo um senador ou algo assim. Vereador é muita chinelagem. Olhou para a capa do Meus Demônios, e pensou, balançando a cabeça e vislumbrando o futuro brilhante de Ferdinando Júnior: “vai que o guri se torne um intelectual que mude o pensamento de sua época, como esse cara aqui. Grande Morin”. Estava pensando nisso tudo, quando o celular tocou. Era Alice.
- Oi amor – disse ela.
- Oi amor – disse ele.
- Tudo bem aí? – perguntou ela.
- Sim, meu amor. E aí?
- Também. Estou com saudades.
- Eu também.
Silêncio.
- Amor – disse ele – precisava falar contigo, mas pessoalmente. É algo sério.
- O que é? – perguntou ela, nervosa.
- Só pessoalmente.
- Aiiii amor, eu não vou dormir desse jeito.
- Só pessoalmente – repetiu Ferdinando, friamente.
Alice estremeceu. Nunca o tinha ouvido falar daquele jeito. E, de fato, naquela noite, nem Alice, nem Ferdinando, dormiram. No outro dia, combinaram de almoçarem juntos. Ferdinando quis conversar somente após a refeição, para evitar problemas na hora do almoço. Aprendera com sua mãe que as horas das refeições são sagradas, apesar do ateísmo da maioria dos autores que costumava ler. Mãe é mãe, sempre concluía. Após o almoço, em um restaurante da Cidade Baixa, Ferdinando olhou com os seus olhos que estavam tomados por olheiras pretas gigantes para os olhos de garça órfã de Alice, e, trêmulo, perguntou:
- Meu amor. Aquele papo de que você não quer ter filho... é.... é.... er.... era.... era... era brincadeira né?
- Como assim amor? Que papo? Eu nunca disse que não queria ter filho!
- Er... – murmurou com um nó de choro na garganta – você disse sim, uma vez, quando começamos a namorar, lembra?
Alice gargalhou. Ela passou a noite pensando que ele iria terminar o namoro, que havia encontrado uma mulher mais atraente, que fazia algo mais louco do que o sexo tântrico, enfim, que havia o roubado. Mas agora, não sabia se o beijava, ou o abraçava. Acabou fazendo os dois.
- É claro que era brincadeira, meu amor. Não fique assim. Você sabe que eu te amo.
Ele sorriu para ela, e ela sorriu para ele, e eles se beijaram ternamente. Ainda face-a-face, Alice falou para Ferdinando:
- Amor. Também tenho uma coisa para te falar.
- O que é, meu amor?
- Eu estou grávida.
- Como assim?
- Estou grávida.
- Gr... Gra... Grávida?
- Sim, grávida.
Nesse momento, passou um gol do Grêmio na tela do Globo Esporte, e Ferdinando desmaiou. E depois de nove meses, no país das maravilhas, nasceu Edgard Morin do Nascimento, filho de Ferdinando e Alice. Do Nascimento.

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