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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O som e a fúria


             Acabei de ler o livro “O som e a fúria”, de William Faulkner. Eis um puta livro, que gostei, mas não recomendo para ninguém. Explico-me. Eu peguei “O som e a fúria” para ler enquanto estava na quarentena dentro da quarentena (vou comentar sobre isso, talvez, algum dia nesse espaço). Acho que acumulei energia e, mesmo com a sensação de cansaço no corpo, meu cérebro estava a mil: ou seja, não tinha sono. Então, eu consegui ler até que de certa forma tranquilamente até a página 184, sem sentir sono. Eu lia, lia, lia, não entendia quase nada, mas seguia lendo e lendo e lendo, tentando conectar uma coisa com a outra, tentando dar um nexo e um sentido a tudo. Não foi fácil. O que me ajudou, de fato, foi o fato de meu cérebro estar acelerado, a tal ponto que cheguei nessa mesma página 184 em três dias. O que isso quer dizer? Simples, o livro começa a fazer sentido apenas a partir da página 184. Na verdade, para entender a narrativa sob um olhar lógico e mais linear, você poderia simplesmente pegar o livro e começar a lê-lo na página 184. Diria que as primeiras 184 páginas de “O som e a fúria” é um nariz de cera gigante (conceito do jornalismo para se referir às enrolações que os jornalistas faziam antigamente antes de chegar ao principal da notícia).

      Mas, vamos à história. Mais uma vez ressalto que esse texto contém spoiler e que está sendo escrito, principalmente, para minha consulta futura, para quando minha massa cinzenta tiver apagado da minha memória tudo o que li nos últimos dias. A narrativa é dividida em quatro partes bem definidas, na voz de três narradores-personagens e de um narrador onisciente. Alguns anos depois, Faulkner escreveu um epílogo, contando o destino dos personagens, pois ao final da versão original (de 1929) é como se ele simplesmente tivesse abandonado a todos em meio de um labirinto sem você fazer ideia sobre o que possa ter acontecido com cada um. Penso que, provavelmente, por críticas e questionamentos, ele deve ter escrito esse epílogo cerca de 20 anos depois para resolver esse abandono dos personagens nesse labirinto literário.

            O primeiro narrador é Benjamin. Ele sofre de um profundo retardo mental. É interessante porque – pelo que tenho conhecimento – esse é talvez o único (se não o único, o mais famoso) personagem escrito na voz de um deficiente mental. Você consegue entender isso, mas aos poucos você também vai percebendo que o personagem mistura tudo, tempo, acontecimentos passados e presentes, personagens, histórias, etc. O que é um mérito, pois ele realmente parece ilustrar o pensamento de uma pessoa nessa condição. Nessa etapa, o personagem está com 33 anos e está quase sempre sendo cuidado por crianças de cinco a 14 anos, que o tratam como se fosse um bicho de estimação – mas sempre brigando com ele com um ar infantil, dizendo coisas como “Pare de chorar, seu bobão!” ou “toma, pega essa flor e fica quieto”. 

Ele chora a toda hora e por qualquer coisa e se acalma geralmente olhando o fogo ou quando dão para ele algum chinelo ou objeto qualquer. Ele tem uma afeição especial por Caddy, sua irmã, e chora sempre que ela sai de casa. Tudo isso dá para ir conectando com a linguagem desconexa desse trecho da narrativa. Ah, o nome dele originalmente é Maury, mas quando a mãe dele percebe que ele é deficiente mental ela resolve mudar para Benjamin para ver se muda a sorte do rapaz – obviamente que não resolve em nada. E a história toda se passa entre 1910 e 1928 – mas desisti de tentar pensar cronologicamente nessa parte e na próxima. Vencer essas páginas em condições normais (ou seja, cansado, com sono) seria impossível. Admito que só cheguei ao final desse capítulo devido a minha insônia e condição de cérebro acelerado, possivelmente pelo acumulo de energias de ficar parado na quarentena da quarentena.

            O segundo narrador é Quentin. Antes de seguir com ele, vale ressaltar que a narrativa gira em torno da família Compson, formada por Jason patriarca, Dona Caroline matriarca, e pelos filhos: Benjamin, Quentin e Jason filho (narradores) e Caddy, irmã que é marcante na narrativa dos três. Além disso, era época da segregação racial americana, então, fica explícito o total preconceito, racismo e desprezo da família branca em relação aos criados – chefiados por Dilsey, mãe de Fronny e Luster. Ainda há T.P, outro criado negro da família. Enfim, expressões como “Não se meta na coisa dos brancos” ou “esses negros não servem pra nada” ou ainda “trabalho o dia inteiro para ter um monte de negros comendo na minha cozinha” são comuns na narrativa. Não vou me ater a nenhum ponto específico da obra, pois há estudos e mais estudos de especialistas sobre isso, então, apenas vou apresentar o enredo mesmo. Apesar de Quentin não ter o mesmo problema mental de Benjin, ele também é completamente perturbado. Ele é apaixonado pela irmã, Caddy, e morre de ciúmes dela. Ele odeia qualquer pretendente ou namorado e fica possesso em pensar que ela possa ter perdido a virgindade. É completamente depressivo e alterna momentos de lucidez com misturas de fatos e épocas, o que confunde muito a leitura. Também há extensas frases sem sentido, o que pode fazer com que o leitor pegue no sono ou desista da obra. Enfim, apesar de ser mais linear e lógico que o texto de Benji, ainda não há um nexo completo e é preciso ir juntando milhares de peças de quebra-cabeça para tentar dar sentido a tudo. Por exemplo: você só vai entender que Quentin se matou na fala de Jason. Por falar nisso, chegamos ao terceiro narrador.

         Na terceira parte, que começa na página 184, Jason filho assume a narrativa. A essa altura Jason pai já morreu e a mãe, Dona Carolina, é uma espécie de senhora que passa o dia na cama sempre achando que está prestes a morrer. Quando ela é incomodada pelos choros de Benjamin, ela aparece na cozinha e briga com os criados, dizendo coisas como “não posso mais nem sofrer em paz?” ou “Jason, meu filho, logo não vou mais estar aqui e você será mais feliz”. Está sempre se queixando e não nega o favoritismo moral a Jason filho. No entanto, o personagem é um filho da puta de marca maior. Seria como um Bolsonaro de classe média americana. Racista ao extremo, golpista, ladrão, sem vergonha, mas que adora reclamar do governo, dos empresários e do mundo inteiro. É um revoltado que ficou puto porque viu os pais gastarem todo o seu dinheiro para mandar Quentin para Harvard (e ele se matou) e para o casamento de Caddy (que pouco depois foi abandonada pelo marido). Enfim, ele odeia o mundo e a hipocrisia é a sua marca maior. Eu conheço gente como ele, inclusive, em vários trechos sublinhei e marquei o nome de uma pessoa em especial, que tem atitudes exatamente como as de Jason. É um personagem revoltante que dá vontade de pegar e esfolar vivo.

           

    Agora, vamos montar o quebra-cabeças. Quentin é apaixonado pela irmã, Caddy, é enviado para Harvard e, pouco tempo depois de chegar lá, após se meter em algumas confusões até certo ponto cômicas, acaba cometendo suicídio logo que a irmã se casa. Caddy, no entanto, engravidou e casou com um sujeito para tentar salvar o nome, porém, o marido descore tudo e a abandona logo após a consolidação do matrimônio. Ela, por sua vez, que já mora em outra cidade, larga a criança para a mãe cuidar. Jason filho odeia a criança desde bebê, pois ele estava para conseguir um emprego em um banco graças ao cunhado. Então, ele atribui a perda da única chance que ele teria na vida ao nascimento da criança. Ele rouba o dinheiro enviado por Caddy até ela ter 17 anos. Além disso, ele inferniza a guria, sempre dizendo que saiu vagabunda igual a mãe, que matava aula para sair dando por aí, aquela coisa toda. O troço vai indo (vale lembrar que Caddy nunca mais voltou para ver a filha, até porque estava proibida de fazer isso pela família inteira) até que a guria, um belo dia, consegue entrar no quarto de Jason e pega toda a grana e se manda com um namoradinho que trabalha num circo que está na cidade. Jason fica louco, sai atrás deles, mas não acha. Tenta convencer a polícia a ir atrás, mas o próprio delegado conhece a peça e suspeita que a grana não era dele mesmo. Dona Carolina, apesar do filho traste, que sempre a humilha, tem uma devoção pelo filho da puta. Enfim, num resumo do resumo, a narrativa encerra com esses dilemas: Quintin (filha de Caddy, que recebeu o nome do tio suicida) foge com o cara do circo levando a grana, Dona Caroline segue na cama achando que vai morrer, Jason fica puto da vida sem saber o que fazer. Claro que os personagens, que são os criados, participam de toda a narrativa, comentando, tentando entender o que acontece, etc. A essa altura, Jason também já tinha mandado castrar Benji, depois que ele conseguiu escapar do portão da casa e atacar uma garota que andava pela calçada. Além disso, em outra cena, ele ganha ingressos para o circo e Luster, filho adolescente da empregada Dilsey, quer ir mas não tem nenhum centavo. Jason tenta vender os ingressos por 5 centavos mas, como o garoto não tem, então ele queima os ingressos na frente do guri. Contei isso para vocês terem uma ideia da filhadaputice desse filho da puta que parece com alguém que infelizmente conheço.

            Por fim, a narrativa fica por aí. Como disse, 20 anos depois, Faulkner voltou e deu um rumo para cada personagem, mas não vou repetir aqui, basta ler o epílogo da obra. A única que continuou sem paradeiro foi a Quentin, que apenas fica claro que ela fugiu e nunca mais voltou, mas Faulkner não conta o que aconteceu com ela, ao contrário do que faz com todos os outros (Benjamin, por exemplo, após a morte da mãe, é enviado a um hospício pelo irmão).

            Esse é o resumo do resumo de “O som e a fúria”. Um romance completamente fragmentado (segundo o tradutor, com forte influência de Ulysses, de James Joyce), mas com ação, movimento, dramas, perseguições, violência, racismo, amor, decadência, resistência e tudo o mais que pode ter uma boa narrativa literária de ação. Como disse lá no início, o problema é vencer as 184 páginas iniciais (metade do livro). Por isso, indico esse livro apenas para quem tenha essa paciência. Ou, então, para quem esteja de quarentena com o cérebro a mil, precisando um pouco de som e de fúria.

            Hasta!

 PS: as imagens são do filme, que ainda não vi.

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