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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Guerra e Paz – Parte 3


           

  Não consegui cumprir a meta de ler o terceiro volume em dez dias. Explico-me: vieram as eleições americanas e tudo parou. Fiquei de terça até sábado sem ler uma mísera página. Além dos compromissos profissionais e dos desafios do Fifa 21, acompanhei a virada histórica de Biden contra o representante do Demo na Terra. Assisti a tudo como se fosse uma final de Copa do Mundo. E, assim, atrasei a leitura e fui terminar esse terceiro volume apenas ontem.

            Se no volume dois a guerra tinha ficado de lado, ela voltou com tudo no terceiro volume. Não sei precisar exatamente os motivos, mas creio que esse foi o melhor trecho do Guerra e Paz que li até agora. De início, Tolstói começa explicando a banalidade do início da guerra. Em síntese, Napoleão estava entrando cada vez mais na Rússia, mas de boas, como se estivesse passeando acompanhado do seu exército, quando um funcionário do império russo pediu os documentos dele. Pra quê! O imperador megalomaníaco tomou isso como ofensa pessoal e, somando-se a outros motivos fúteis, ele declarou guerra ao seu até então amigo, o imperador russo Alexandre. A partir de então, tudo muda. E são tantos os pontos para reflexão, que certamente a maioria deles vão ficar de fora por lapso de memória desse que vos escreve.

            Primeiro, diante desse cenário e da expectativa de uma nova guerra há uma divisão na sociedade russa. E isso justifica a tática de Napoleão para tomar a Rússia: dividir para conquistar. Ele apresenta como objetivo invadir a Rússia e criar uma Europa única, mantida sob a sua espada. Na cabeça ele, essa era uma boa ação: no império europeu ele seria o imperador, faria justiça com as próprias mãos, todos seriam felizes e não haveria injustiças nem tristezas. O curioso é que hoje a gente ainda se surpreende quando vemos pobres e trabalhadores defendendo políticos dos magnatas e dos ricaços, como o patético Bolsonaro no Brasil ou o demoníaco Trump, nos Estados Unidos. A gente não consegue entender como imigrantes adoram um político que odeia imigrantes! Como negros apoiam um político racista! Como mulheres defendem com todas as forças um presidente machista! E assim por diante... Mas, lendo Guerra e Paz, percebo que isso sempre existiu, pois fica evidente que havia uma divisão na sociedade russa entre os pró-Rússia e os pró-Bonaparte. Ou seja, mesmo com Napoleão invadindo a Rússia, matando e devastando o que encontrasse pelo caminho, havia aquele grupo (geralmente da elite, diga-se de passagem) que achava que era melhor para a Rússia ficar sob o comando de Napoleão. Assim, havia dualidade e polaridade política na Rússia das guerras napoleônicas de 1812.

            Um personagem que ilustra isso é o príncipe Vassili. Ele, como bom capacho, circula pelos dois ambientes. Então, quando ele está num jantar chique pró Napoleão, ele fala como se fosse um bonapartista. Porém, quando ele está em um ciclo pró Rússia, ele age como se odiasse o imperador francês. Mas, nessas descrições, Tolstói apresenta cenas que parecem acontecer no Brasil ou nos Estados Unidos de 2020. É como se o personagem circulasse entre sociedades trumpistas e pró-Biden, ou bolsonaristas e petistas. Muito bizarro.

            Natascha, como uma jovem adolescente, sai da depressão de ter perdido o noivo e o amante em uma tacada e começa a se empolgar com toda a movimentação da guerra como se fosse uma brincadeira. Pétia, o irmão caçula dos Rostov, implora tanto aos pais que o deixem ir para a guerra (ele está com 16 anos) que o conde e a condessa Rostov acabam cedendo, mas tomando o cuidado para que ele fosse para um regimento mais seguro. André Bolkonski, o príncipe abandonado por Natascha, vai para a guerra, bem como Anatole, o amante frustrado. Pedro Bezukov fica em Moscou acompanhando tudo, mas ele vai ao campo de batalha em uma cena muito cômica, apenas por curiosidade. Ou seja, os exércitos estão se matando e ele está zanzando por ali, como um turista... É muito engraçado, mas Tolstói usa muito bem essa cena humorística para descrever o terror da guerra. Assim, ele consegue algo raro: ao mesmo tempo em que diverte, ele também deixa o leitor impressionado com cenas realistas das atrocidades que o homem é capaz de cometer. Como escreveu Tolstói: “A finalidade da guerra o homicídio; suas armas são a espionagem, a traição, a ruína dos habitantes, o saque e o roubo organizados para a manutenção do exército, a fraude e a mentira mascaradas como astúcias de guerra” (p.954).

            Outra semelhança com a contemporaneidade: o desencontro de informações. Boatos correm como se fossem fake news de whatts app. Uns dizem que os franceses querem invadir Moscou, outros não acreditam. Uns dizem que os franceses estão sendo expulsos pelo glorioso exército russo, outros alegam o contrário, e assim por diante. O troço todo vai indo, há toda uma descrição das posturas dos comandantes dos dois exércitos, há cenas memoráveis envolvendo Napoleão, mas o ponto alto é a batalha de Borodino, um povoado próximo a Moscou. As tropas de Napoleão marcham em direção a Moscou e param próximo a essa cidade, que está tomada pelo exército russo, que promete defender a capital até a morte. Os dias se passam com angústia e há uma grande expectativa no ar. Os dois exércitos estão confiantes, mas ao mesmo tempo não tem certeza da vitória. Eis a complexidade da batalha. O confronto começa (e é nesse que Pedro está zanzando entre os soldados, apenas observando, como se fosse um turista) e logo se percebe que o exército francês é mais forte. Porém, o exército russo é mais determinado. Os dois exércitos se massacram. No entanto, Napoleão poderia ter ganho essa batalha se sacrificasse a sua velha guarda, porém, ele sabia que seria eternamente criticado por seus apoiadores se fizesse isso. Pelo que entendi, houve um empate. Os franceses não avançaram, mas os russos ficaram em frangalhos. Assim, os franceses mesmo sem ter oficialmente ganho essa batalha apenas esperaram os russos saírem dali para avançar sobre Moscou. Claro que o exército francês também estava destroçado e havia tido milhares e milhares de baixas.

            E aqui entra outra descrição histórica, através dos personagens: a fuga de Moscou. Os condes, príncipes e fidalgos todos resolvem abandonar a cidade, levando tudo o que podiam. Assim, quando o exército russo chega em Moscou encontra apenas poucos moradores, uns que não acreditavam que os franceses realmente chegassem, outros bêbados, outros criados que foram abandonados pelas famílias junto com as casas, além de presos e loucos, soltos dos hospícios e das prisões. Em uma cena histórica, o governador de Moscou – pouco antes da chegada dos franceses – para livrar a cara com a população, pega um preso qualquer (que por curiosidade é um sujeito que havia sido capturado por ter traduzido textos sobre Napoleão do alemão para o russo) e o joga para a população dizendo que ele é o culpado pela tragédia da Rússia. É uma cena dantesca que acaba com a cruel morte do sujeito, diante de moradores novamente divididos: enquanto alguns caem na ladainha do governador e partem pra cima do sujeito, outros ficam horrorizados diante da crueldade, principalmente sabendo que aquilo não era verdade. Enfim, como disse, são tantos os pontos impressionantes desse volume que não terei como abordar todos. Vale ressaltar, no entanto, que Tolstói mescla realidade e ficção: essa cena da execução do preso aconteceu de verdade, no entanto, a reconstrução foi toma imagética, mesclando muita criatividade e inventividade com pesquisa histórica.

            Mas, creio que o principal mesmo, afora a fuga dos personagens, a permanência de Pedro em Moscou com um plano mirabolante para tentar matar Napoelão, o curioso encontro entre André e Anatole (os rivais que brigaram por Natascha) na enfermaria, ambos gravemente feridos, um novo reencontro entre o príncipe André à beira da morte com Natascha, a descrição dos preparativos da fuga de Moscou por parte dos personagens, e muito mais, o ponto alto é uma divergência histórica sobre o incêndio de Moscou. Tolstói coloca que os franceses acusaram os russos de incendiar Moscou para não deixar nada pra eles, enquanto os russos acusam os franceses de terem incendiado Moscou por terem encontrado a cidade deserta. Na visão de Tolstói não foi nem uma coisa, nem outra. Ou melhor, foi um pouco de cada. Por um lado, ele relata que incêndios eram comuns em Moscou naquela época, que era uma cidade toda de madeira. Portanto, em uma cidade deserta, se há um incêndio e não há quem o apague, obviamente esse fogo se alastra facilmente. As cenas que envolvem o incêndio também são espetaculares e dão a entender exatamente isso: alguns focos do incêndio foram acidentais, outros foram postos por incendiários, principalmente russos. Mas Tolstói desmente categoricamente que o incêndio tenha sido uma sacada genial do exército russo para ferrar com os franceses. Foi algo que aconteceu mais espontaneamente, ou por iniciativa de alguns populares que ficaram em Moscou, do que possa ter sido algo planejado estrategicamente por generais e militares do alto escalão do exército russo. 

            Enfim, em resumo, o terceiro volume dessa edição da L&PM termina justamente com o incêndio e a prisão de Pedro, que acaba avançando em um soldado francês ao vê-lo roubar o colar de uma moradora qualquer (a essa altura, os militares franceses estavam literalmente saqueando a cidade). No entanto, antes disso, Pedro salvou a vida de um alto oficial francês, que seria atingido por um tiro disparado por um maluco bêbado, e esse disse dever a vida a Pedro, o que me leva a imaginar que, possivelmente, esse militar francês vá salvar a vida de Pedro no volume quatro. São suposições. Natascha e André estão juntos no mesmo acampamento e, novamente, há uma dúvida se André vai sobreviver ou não e se ele e Natascha vão casar caso ele se recupere. Anatole está sumido, ferido, mas também há a expectativa de que tenha morrido. Helena, a essa altura, já pediu o divórcio a Pedro para se casar com outro. Ah, e o pai do príncipe André já faleceu e Nicolau Rostov está sumido da narrativa desde que salvou Maria, irmã de André, e eles meio que se apaixonaram (apesar de Nicolau ter prometido a Sônia, a sua prima pobre, casar-se com ela depois da guerra). Há outras e outras tramas, mas essas são as que me ocorrem agora. O interessante é que você pensa nessas histórias todas como se fossem de pessoas que você conhecesse. Parece que alguém está me perguntando: “e o príncipe André, tem ouvido falar dele?”, e eu estivesse respondendo, “ah, sim, ele foi para a guerra mas está gravemente ferido, de novo, aquele descuidado. Agora está lá, jogado numa nas palhas de uma estalagem, gemendo feito um condenado, tendo delírios de febre, enquanto Natascha está cuidando dele, sonhando com o seu perdão e querendo um novo noivado...”. “E a Helena?”, pergunta-me o imaginário interlocutor. “Ah Helena? Você não vai acreditar! Arranjou dois amantes e pediu divórcio ao Pedro. Decidiu se casar primeiro com o mais velho, pois logo que ele morrer ela já pensa em casar com o mais novo, assim ela leva o dote dos dois!!! Certamente o pai dela, o príncipe Vassili, deve estar extremamente orgulhoso, apesar que o velho esta sofrendo pelo desaparecimento do seu filho mais novo, o Anatole., e....”.

            Enfim, enfim, vamos ao quarto e último volume! Como dizem os russos de Tolstói: vamos a isto! Vamos a isto! Vamos a isto!        

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