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sexta-feira, 26 de maio de 2017

Mais que demais

Todos os dias, na mesma hora, quando chegava o final de tarde e eu deixava o escritório, ouvia aquelas músicas que vinham da janela do segundo andar ao fundo de um prédio azul e branco localizado no centro de uma cidade qualquer. A primeira música que ouvi, fui descobrir depois, era La Camisa Negra. “Tengo la camisa negra. Hoy mi amor esta de luto. Hoy tengo en el alma una pena. Y es por culpa de tu embrujo”. Era impossível não prestar atenção naquela música que mesclava um estilo caribenho com bandinha alemã. Com aquele som alto, imaginava que havia algum tipo de festa por lá, um happy hour secreto e badalado ao mesmo tempo. No segundo dia, ouvi “Despacito” pela primeira vez. Semanas depois, essa música viraria hit e tocaria em todas as rádios e canais fechados especializados em música pop. “Uma caribenha”, pensei. Mas, no terceiro dia, Mallu Magalhães mandava o recado: “Você não presta”. E a vontade de sair dançando pela rua desajeitadamente, num desejo reservadamente gaúcho de ser carioca, tomou conta do meu corpo. Comecei a desacelerar o passo toda a vez em que passava na frente daquele prédio, só para curtir as músicas que vinham de lá, daquele fundo. Até fiz o teste de passar por ali em outros horários ou nos finais de semana. Mas, nesses casos, só encontrei o silêncio.
Numa segunda-feira Lord Huron cantava “The Night We Met”. Na terça, “Shape of you”, de Ed Sheeran. Na quarta, deu vontade de entrar no prédio, bater na porta, e tirar a pessoa do outro lado “da mesma” para dançar no meio da sala no embalo de Vance Joy, com Riptide. Na quinta, confesso que cheguei a ficar parado na entrada do corredor que leva para a garagem do prédio, que não tem nenhum portão, e que me permitiu ficar escorado na parede ouvindo Entrelaços, de Scalene.
Fiquei olhando pela janela de onde vinha a música e apenas vi uma sombra, que quase desaparecia com o pôr do sol, mas que revelava cabelos lisos e um corpo feminino solitário dentro do apartamento.
Um dia um cliente chegou perto das seis. Fiquei tenso, não queria perder a música da sexta-feira. Nervosamente, perdi um ótimo negócio, despachando o sujeito para um ex-colega meu, que me contou posteriormente que ganhou uma boa grana com ele. Foda-se, naquele dia tocou Love Someone, de Jason Mraz. Já estava me acostumando a ficar naquele horário na entrada da garagem ouvindo as músicas que saíam da janela lá do fundo. Vezemquando um carro chegava ou saia, mas ninguém dava muita bola para a minha presença. Apenas uma vez uma senhorinha de cabelos brancos pensou que eu estava passando mal e perguntou se eu precisava de ajuda. Eu respondi que não e ela entrou prédio adentro, desconfiada. Na outra semana, cada dia tocava uma música do Holzier: Work Song, Someone New, From Eden... Quando pensei que a moça era muito internacionalizada, ela colocou “Fica”, de Anavitória com Matheus & Kauan. Fazia mais de um mês que eu seguia essa rotina de final de tarde, de segunda à sexta-feira. De vez em quando eu via por alguns segundos aquela sombra dançante, e noutras, sendo levemente mais ousado, tentei me aproximar da janela, para ouvir mais a música e menos o som das gotas de água que despencavam com toda a força no meu guarda-chuva. Um dia o som estava mais baixo, e cheguei a ir até a porta de entrada do prédio para ouvir Long Drive, de Jason Mraz.
Mas o dia que nunca vou esquecer foi aquele em que tocava uma música qualquer, que sequer consigo lembrar, pois foi abafada pelos latidos daquele cachorro. Ele era peludo, me fez lembrar o velho Pingo, o meu cachorro favorito, que ganhei quando tinha cinco anos e morreu 16 anos depois.
Era baixinho, patas curtas, pelos longos, marrom claro com preto e orelhas pontudas. Quando cheguei ao portão ele começou a latir e a correr em direção a porta de entrada, como se quisesse me mostrar algo. Por instinto, resolvi segui-lo. Paramos na frente da porta de entrada do prédio. Ele passou a latir mais forte e a abanar o rabo. “Deve ser de alguém do prédio e ficou para fora”, pensei. Vi que alguém descia as escadas. Só podia ser o dono ou a dona. O cachorrinho colocou as duas patas nas minhas coxas, pedindo carinho. Acariciei a cabeça dele. Quando olhei para a porta, suspendi a respiração por um tempo ao ver aqueles olhos verdes e curiosos me fitando:
- Olá – disse ela.
Demorei para colocar o cérebro à processar novamente.
- Olá – respondi, quase sem fôlego – É seu?
Ela sorriu. E no seu sorriso, no seu olhar, no seu gesto, eu reconheci quem ela era: a moça do apartamento dos fundos de onde vinham todas aquelas músicas. Aliás, naquele momento “Nobody knows” de The Lumieers começava a tocar.
- Não... Não é meu...
Perdi a voz. Não sabia o que falar. Nem precisava, ela falava por nós:
- Faz dias que ele vem aqui. Fica na garagem um tempo, e vai embora.
Fitei o cachorro, que me respondeu com olhar cúmplice. Estava de língua de fora, com cara de feliz, abanando o rabo.
- Desci porque essa foi a primeira vez que ele latiu – confessou, com um leve sorriso no rosto.
Eu estava totalmente hipnotizado: seus olhos verdes, seus cabelos negros, combinando com a pele branca, seu sorriso envolvente, sua voz sedutora e o gosto musical, revelado todos os dias na mesma hora, me deixaram completamente desarmados. Apontei para a janela e arrisquei:
- É você que mora... lá?
- Sim, sou eu. Por quê?
- Nada não. Gosto dessa música.
Ela sorriu. O cachorro latiu. Acariciamos a sua cabeça ao mesmo tempo.
- Bom, se você não é a dona do cachorro, nem eu...
Ela jogou o cabelo para trás da orelha esquerda, fitou meus olhos, e sorriu, antes de dizer:
- Ele fica aqui um tempo e vai embora... Nem esquenta...
- Acho que entendo ele perfeitamente.
- Entende?
O cachorro, percebendo que um dialogo mais extenso começava, sentou-se e ficou ali, esperando. Depois de alguns longos minutos de conversa, despedi-me. O cachorro latiu, também dizendo um “até logo”. Ele me seguiu até em casa e não pude deixar de convidá-lo a entrar. No dia seguinte, saí do escritório mais cedo para pegar o cachorro em casa para me acompanhar, afinal, ele também adorava as músicas dela. E, tão acostumado que estava, escorei-me no muro e fiquei ouvindo, dessa vez, “Mexeu comigo”, de Tiê. Quando ela cantou a última frase “você veio e mexeu comigo” eu olhei para a janela. E ela estava lá, me olhando e sorrindo. Ela também veio e mexeu demais comigo. Mais do que demais.

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