Mais que demais
Numa segunda-feira Lord Huron cantava “The Night We Met”. Na terça, “Shape of you”, de Ed Sheeran. Na quarta, deu vontade de entrar no prédio, bater na porta, e tirar a pessoa do outro lado “da mesma” para dançar no meio da sala no embalo de Vance Joy, com Riptide. Na quinta, confesso que cheguei a ficar parado na entrada do corredor que leva para a garagem do prédio, que não tem nenhum portão, e que me permitiu ficar escorado na parede ouvindo Entrelaços, de Scalene. Fiquei olhando pela janela de onde vinha a música e apenas vi uma sombra, que quase desaparecia com o pôr do sol, mas que revelava cabelos lisos e um corpo feminino solitário dentro do apartamento.
Um dia um cliente chegou perto das seis. Fiquei tenso, não queria perder a música da sexta-feira. Nervosamente, perdi um ótimo negócio, despachando o sujeito para um ex-colega meu, que me contou posteriormente que ganhou uma boa grana com ele. Foda-se, naquele dia tocou Love Someone, de Jason Mraz. Já estava me acostumando a ficar naquele horário na entrada da garagem ouvindo as músicas que saíam da janela lá do fundo. Vezemquando um carro chegava ou saia, mas ninguém dava muita bola para a minha presença. Apenas uma vez uma senhorinha de cabelos brancos pensou que eu estava passando mal e perguntou se eu precisava de ajuda. Eu respondi que não e ela entrou prédio adentro, desconfiada. Na outra semana, cada dia tocava uma música do Holzier: Work Song, Someone New, From Eden... Quando pensei que a moça era muito internacionalizada, ela colocou “Fica”, de Anavitória com Matheus & Kauan. Fazia mais de um mês que eu seguia essa rotina de final de tarde, de segunda à sexta-feira. De vez em quando eu via por alguns segundos aquela sombra dançante, e noutras, sendo levemente mais ousado, tentei me aproximar da janela, para ouvir mais a música e menos o som das gotas de água que despencavam com toda a força no meu guarda-chuva. Um dia o som estava mais baixo, e cheguei a ir até a porta de entrada do prédio para ouvir Long Drive, de Jason Mraz.
Mas o dia que nunca vou esquecer foi aquele em que tocava uma música qualquer, que sequer consigo lembrar, pois foi abafada pelos latidos daquele cachorro. Ele era peludo, me fez lembrar o velho Pingo, o meu cachorro favorito, que ganhei quando tinha cinco anos e morreu 16 anos depois. Era baixinho, patas curtas, pelos longos, marrom claro com preto e orelhas pontudas. Quando cheguei ao portão ele começou a latir e a correr em direção a porta de entrada, como se quisesse me mostrar algo. Por instinto, resolvi segui-lo. Paramos na frente da porta de entrada do prédio. Ele passou a latir mais forte e a abanar o rabo. “Deve ser de alguém do prédio e ficou para fora”, pensei. Vi que alguém descia as escadas. Só podia ser o dono ou a dona. O cachorrinho colocou as duas patas nas minhas coxas, pedindo carinho. Acariciei a cabeça dele. Quando olhei para a porta, suspendi a respiração por um tempo ao ver aqueles olhos verdes e curiosos me fitando:
- Olá – disse ela.
Demorei para colocar o cérebro à processar novamente.
- Olá – respondi, quase sem fôlego – É seu?
Ela sorriu. E no seu sorriso, no seu olhar, no seu gesto, eu reconheci quem ela era: a moça do apartamento dos fundos de onde vinham todas aquelas músicas. Aliás, naquele momento “Nobody knows” de The Lumieers começava a tocar.
- Não... Não é meu...
Perdi a voz. Não sabia o que falar. Nem precisava, ela falava por nós:
- Faz dias que ele vem aqui. Fica na garagem um tempo, e vai embora.
Fitei o cachorro, que me respondeu com olhar cúmplice. Estava de língua de fora, com cara de feliz, abanando o rabo.
- Desci porque essa foi a primeira vez que ele latiu – confessou, com um leve sorriso no rosto.
Eu estava totalmente hipnotizado: seus olhos verdes, seus cabelos negros, combinando com a pele branca, seu sorriso envolvente, sua voz sedutora e o gosto musical, revelado todos os dias na mesma hora, me deixaram completamente desarmados. Apontei para a janela e arrisquei:
- É você que mora... lá?
- Sim, sou eu. Por quê?
- Nada não. Gosto dessa música.
Ela sorriu. O cachorro latiu. Acariciamos a sua cabeça ao mesmo tempo.
- Bom, se você não é a dona do cachorro, nem eu...
Ela jogou o cabelo para trás da orelha esquerda, fitou meus olhos, e sorriu, antes de dizer:
- Ele fica aqui um tempo e vai embora... Nem esquenta...
- Acho que entendo ele perfeitamente.
- Entende?
O cachorro, percebendo que um dialogo mais extenso começava, sentou-se e ficou ali, esperando. Depois de alguns longos minutos de conversa, despedi-me. O cachorro latiu, também dizendo um “até logo”. Ele me seguiu até em casa e não pude deixar de convidá-lo a entrar. No dia seguinte, saí do escritório mais cedo para pegar o cachorro em casa para me acompanhar, afinal, ele também adorava as músicas dela. E, tão acostumado que estava, escorei-me no muro e fiquei ouvindo, dessa vez, “Mexeu comigo”, de Tiê. Quando ela cantou a última frase “você veio e mexeu comigo” eu olhei para a janela. E ela estava lá, me olhando e sorrindo. Ela também veio e mexeu demais comigo. Mais do que demais.
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