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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

O beijo não vem da boca

Em 2005, durante a Jornada Nacional de Literatura, vi pela primeira vez o escritor Ignácio de Loyola Brandão, espécie de patrono geral do evento naquele ano. Durante todos os dias da jornada (que a memória não me permite lembrar quantos foram) ele estava por lá, ou palestrando, ou entrevistando, ou sendo entrevistado, ou mediando mesas. Ele – e todos os outros palestrantes, como Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro, Chico Buarque, Carlos Heitor Cony, Lobão, etc – contavam histórias que me deixavam de queixo caído. Desde então, fiquei com uma pulga atrás da orelha para ler esses autores. Até dezembro de 2016, faltava justamente o Ignácio.
Lá por 2011, numa Feira do Livro de Porto Alegre, escutei outra palestra dele, que foi fantástica.
Ignácio contou que foi chamado para falar em uma escola do norte do país para tentar incentivar as crianças a lerem. Era uma comunidade muito pobre, e havia todo o tipo de problema de comportamento entre os alunos. Então, Ignácio resolveu reunir os pais desses pequenos estudantes: trava-se de traficantes, assaltantes, prostitutas, contrabandistas, etc. Mas, ao invés de repreendê-los e excluí-los do processo de educação de seus próprios filhos, o escritor ouviu as histórias dos pais e conversou com os alunos, trabalhando a realidade deles. Conta ele que, depois de sua visita, os professores e a direção se surpreenderam com a mudança no comportamento e no desempenho das crianças, que passaram a demonstrar interesse nas aulas. “Eu simplesmente trouxe os pais para dentro da escola, pois eles não eram ouvidos e não queriam saber o que acontecia lá dentro. Trabalhei histórias e textos que diziam respeito à realidade deles”, contou.
Bom, nesse final e 2016, peguei o livro “O beijo que não vem da boca”, publicado em 1985. Eu ganhei esse livro de um amigo meu que mora no Rio, em 2013, antes de ir para NovaYork. Ele estava se desfazendo de algumas das obras e catei essa e mais meia dúzia para levar comigo (as em inglês acabei vendendo em um sebo em NY para levantar uns dólares...). No entanto, essa foi para os States e voltou, para ser lida nesse mês de dezembro de 2016. Entretanto, vamos ao que interessa.
O texto de Loyola é um daqueles que inspira e que faz, ao mesmo tempo, você reforçar algumas ideias que já tinha, mas mudar outras. É um livro que trata, principalmente, de relacionamento. Também aborda viagens (o personagem, Breno, é um paulista que mora em Berlim), política (na época havia o muro de Belim) e crises existenciais com solidão. Em síntese, é um livro que te faz deprimir e sonhar ao mesmo tempo. Segundo consta na orelha da edição que tenho, da Global Editora, Breno é um personagem semiautobiográfico de Loyola. Não conheço a fundo a biografia do escritor, mas algumas passagens e pensamentos são fáceis de identificar como sendo experiências vividas por ele, Ignácio de Loyola Brandão. Como por exemplo, quando conta que foi palestrar em Ijuí-RS e o público resolveu enfrenta-lo: “A gauchinha foi decidida. Aconteceu em Ijuí, cidade afogada em campos de soja, no Rio Grande do Sul. Falou no porão de uma igreja, único auditório onde cabia muita gente. Feliz por ver tudo tomado, ainda que ao chegar à mesa, o ego murchara. Ouviu um estudante comentar: ‘Só vim ver a cara de alguém que foi a Cuba [...]”. E assim segue...
Breno tem 45 anos e faz 46 ao longo do romance. Como Ignácio, é escritor e jornalista, sendo mais ou menos famoso por escrever scripts de novelas para a Globo. É separado e do primeiro casamento teve três filhos (duas meninas e um menino que faleceu ainda bebê). Entretanto, ele praticamente não fala dessa etapa da vida de Breno. As duas fases principais são: 1) o namoro com Luciana – apresentadora de TV – que ele ama e fica doente de ciúmes. Depois que Luciana finalmente troca ele por outro, após crises agudas de inconformidade, ele parte para Berlim (fase 2), onde se envolve rapidamente com duas mulheres (uma brasileira atriz de filme pornô e uma alemã). Um ou outro casinho, se não me engano, ainda aparecem nesse período. No entanto, ao longo de todo o romance ele troca correspondência com Ana, sua paixão da adolescência, mas com quem nunca tinha sequer dado um beijo. Ela, obviamente, estava casada e com filhos. Ignácio, então, realmente faz com que o leitor não tenha esperança que os dois vão acabar juntos, pois Breno é um legítimo anti-herói, meio arrogante e, apesar de mulherengo, bastante criticado pelas pessoas do sexo feminino. Porém, no final da obra, há uma reviravolta, que não vou contar aqui, para não acabar com uma eventual surpresa que um ou outro leitor que se sinta incentivado a ler esse livro possa ter.
No entanto (dando uma de banca de TCC), também há críticas a se fazer. Não sei se é intencional ou não, mas não ficou bem a constante mudança de ponto de vista da narrativa. Há capítulos em que acontece o seguinte: o texto inicia em terceira pessoa, de um parágrafo para o outro passa a ser de primeira pessoa (Breno), então no próximo é novamente em terceira e de terceira vai para a primeira pessoa de outro personagem. Ok, pode ser uma tentativa de genialidade narrativa literária, mas ficou ruim. Não colou. É confuso e, a meu ver, não acrescentou em nada positivamente à obra. Outra crítica são algumas longas e profundas lembranças e reflexões de personagens que não acrescentam em nada à história. Em resumo, se eu fosse editor, cortaria o número de páginas de quase 500 para cerca de 300. Não se perderia nada. Afora isso, o livro é excelente.
E o título? Bom, o título diz tudo: o beijo não vem da boca... Vem de onde? Do coração? Das genitais? Da alma? Na verdade, a narrativa inteira meio que tenta responder a essa pergunta. Particularmente, concordo com o título, o beijo (bom) não é o encontro entre dois lábios e duas línguas, que se enlaçam. O beijo – um único beijo – pode ser inesquecível. Beijar uma pessoa com amor, pode representar mais do que mil beijos que só vem da boca com outra. O olho no olho, o toque, o desejo, a espera, o frio na barriga, o acúmulo de energia, tudo isso torna o beijo – e outras coisas mais – muito melhores. Daí a ideia do tântrico, que uma das personagens fala para Breno durante o romance. A entrega total, que foi aguardada por bastante tempo, que acumulou bastante energia, que faz com que naquele momento nada mais exista: o passado, o presente, o futuro, o mundo exterior. É a entrega de corpos e de almas. Dois olhares colados, hipnotizados, o lábio que está sedento pelo outro lábio, até as línguas se encontrarem, e o coração entrar no outro coração. Enfim, é esse o beijo que não vem da boca.

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