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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A morte da poesia dominical matinal

Tudo começou de forma mais do que perfeita. Os olhos se cruzaram repentinamente e subitamente a respiração ofegou, a dádiva se deu e teve início a história trágica. Um curta metragem do amor numa mescla de arcaico com pós-moderno. Ela tímida, ele bêbado. O álcool evaporou de seu cérebro no momento em que ela lhe viu como o príncipe encantado da infância. A não ser pelos óculos. E pelo jeito de falar. Em pouco tempo, ele a convenceu de que era a concretização carnal de suas fantasias sonhadas desde a adolescência. Lábios passaram a se tocar naquela festa de mais um sábado à noite. Mãos subiam e desciam nos corpos suados do verão. Os dois flutuavam em pânicos de prazer e delírio sem fim.
A ressaca do outro dia foi muito mais de paixão do que de qualquer produto bioquímico que eles pudessem ter ingerido. Uma dádiva ressaca. Depois disso, tardes vazias e dias e noites cheios de beijos, abraços, suores, promessas diferentes de qualquer outra já feita até então. Falas e versos que transformavam as declarações de Dom Quixote à senhora Dulcineia Del Toboso em apenas sentenças apáticas e sem sal. Mentes e corações que saíam de seus corpos em melodias suaves visitando mares e montanhas dos quatro cantos do mundo. Brigas e reconciliações, que tornavam tudo mais inesquecível, mais incrível, mais eterno. Noites que nunca terminavam: com apenas começo e meio. Gritos em que o nunca mais é sinônimo de para sempre. A satisfação dela apenas nos gestos dele. A plenitude dele exclusivamente nos olhares dela. O mundo em suspiros, gemidos e sussurros ao pé da orelha. Viagens para qualquer lugar: para o passado, o presente, o futuro e o espaço. Via terra, via ar e via mar. Exclusividade amorosa.
A poeticidade da vida em presépio de amores durou três meses. Depois de uma noite que chegou cheia de eternidade, com rimas, cânticos apaixonados e coisas mais lindas que são mais lindas que as coisas mais lindas do universo, ela o acordou às 10 horas da manhã e pediu, secamente, sem rima, sem encanto, sem magia, sem amor:
- Querido, você não vai no posto da esquina e traz quatro pãezinhos e um jornal dominical?
Domingo de manhã. Ainda zonzo de sono, ele perguntou aonde estava a poesia. Aonde estava a beleza daquela donzela e do mundo aonde pisavam. Onde tudo foi parar? Meio atordoado, ele se vestiu, sem saber ao certo o que estava fazendo. Enquanto isso, ela preparava um café sorridente, assoviando Carnaval em Veneza. Domingo de manhã. Dez horas. Logo ele, que não acordava em um domingo antes do meio dia desde que completara quinze anos. Não podia ser real.
Com o coração partido, ele saiu pelo portão. Ela ainda gritou, ao longe:
- Quatro não! Traz oito! Porque o pai e a mãe vão chegar de viagem de tarde.
E piscou com um olho, aquele mesmo pedaço de corpo humano redondo que o deixou apaixonado três meses atrás. Era o fim. Acordar domingo de manhã para comprar jornal e pãozinho não era uma vida que ele desejava. Não era vida para ele. Ele foi embora. Nunca mais voltou e nunca mais deu qualquer sinal de que pudesse estar vivo.
Fim.

Foto: Key West, by Eduardo Ritter

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